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Dias de Junho, Paris, 1848 |
Joseph Déjacque foi um proletário que participou da revolução de 1848 em Paris, que foi a primeira tentativa do proletariado de transformação da sociedade. Buscava-se instaurar uma "República Social" (em contraposição à "república política"). Foi preso. Se exilou nos Estados Unidos, em Nova Orleans e Nova Yorque, onde publicou o jornal Le Libertaire - Journal du Mouvement Social, de 1858 a 1861 (nota: este foi o primeiro registro da palavra libertário, palavra hoje pilhada, falsificada e distorcida pelos anarco-capitalistas, que inventaram o "libertarianismo" para dizer que a empresa, essa tirania, é "a" liberdade).
Neste jornal ele expôs como série o que é considerado o seu magnum opus: "L´Humanisphère. Utopia Anarchique" (A Humanisfera - Utopia Anarquista) . Nele, defende uma utopia que apresenta pela primeira vez em forma escrita inúmeros temas (mas que certamente eram temas já comuns na fala daqueles que participaram da efervescência de Paris da década de 1840, da qual certamente Marx sofreu influências quando lá esteve em 1844, e cujas semelhanças de temas podem ser vistas nos Manuscritos de Paris) que foram mais tarde essenciais para diversas correntes revolucionárias anarquistas e comunistas (dos anarco-comunistas até a Internacional Situacionista).
A obra
L´Humanisphère
é considerada o primeiro texto a sistematizar uma concepção anarquista comunista, em ruptura com o proudhonismo. A diferença entre o anarco-comunismo e proudhonismo (que, junto com o bakuninismo, mais tarde foi chamado de anarquismo coletivista)
é que este último defende a manutenção de alguma forma de assalariamento (remuneração conforme a quantidade de trabalho, o chamado bônus de trabalho, ou remuneração igual para todos), enquanto que os comunistas criticam isso dizendo que qualquer forma de salário (isto é, de mercado) implicaria necessariamente um Estado ou classe que se coloca numa posição acima da população para medir, comparar e remunerar o trabalho de cada um. Numa sociedade sem Estado e sem classes, não pode haver salário (e, portanto, nem dinheiro e nem mercado), porque ninguém poderá estar numa posição acima das relações sociais que lhe permita medir o trabalho dos outros e nem compará-lo. Toda produção será realizada por seu valor intrínseco (sua necessidade ou sua capacidade de satisfazer os desejos humanos) e não mais pela régua alienante da comparação quantitativa (de dinheiro ou de trabalho incorporado nos produtos)
no mercado.
O anarco-comunismo, a partir da década de 1880
foi desenvolvido e difundido por, entre outros, Carlo Cafiero, Piotr Kropotkin, Elisée Reclus e Errico Malatesta, se tornando a teoria social predominante no movimento operário de muitos países (Brasil, Argentina, Espanha, por exemplo) até os anos 1920.
No seguinte trecho, Déjacque expõe as influências que recebeu:
“A astronomia, a física, a química, todas as ciências progrediram. Unicamente a ciência social permaneceu estacionária. Depois de Sócrates, que bebeu a cicuta, e Jesus, que foi crucificado, ela não teve nenhuma luz. Então, das regiões mais imundas da sociedade, em algo muito mais abjeto do que um estábulo, num comércio, nasceu um grande reformador. Fourier acabava de descobrir um novo mundo onde todas as individualidades tinham um valor necessário para a harmonia coletiva. As paixões são os instrumentos desse concerto vivo que tem por arco a fibra das atrações. Dificilmente teria sido possível que Fourier rejeitasse o hábito [froc] por inteiro; pois apesar de tudo, ele conservou de sua educação comercial a tradição burguesa os preconceitos da autoridade e da servidão que o fez desviar da liberdade e da igualdade absolutas, da anarquia. Porém, é diante desse burguês que descubro a mim mesmo, e eu saúdo nele um inovador, um revolucionário. Enquanto outros burgueses são anões, ele é um gigante. Seu nome permanecerá inscrito na memória da humanidade.
Veio então 1848, e a Europa revolucionária pegou fogo como uma trilha de pólvora. Junho, essa rebelião do século XIX, protestou contra os modernos abusos do novo senhor. A violação do direito ao trabalho e do direito ao amor, a exploração do homem e da mulher pelo ouro sublevou o proletariado e o deixou com armas na mão. A feudalidade do capital treme nas bases. Os altos barões da usura e os baronetes do pequeno comércio se debateram em seus balcões, e do alto de sua plataforma lançaram sobre a insurreição enormes destacamentos militares, enchentes escaldantes de guardas móveis. Numa tática jesuítica, eles conseguiram esmagar a revolta. Mais de trinta mil rebeldes, homens, mulheres e crianças foram jogados nas masmorras dos quartéis e das casamatas. Inumeráveis prisioneiros foram fuzilados, graças ao engodo de um aviso colocado em todos os ângulos das ruas, aviso que convidava os insurgentes a depor as armas e declarava que não haveria nem vencedores nem vencidos, mas irmãos – irmãos inimigos, queriam dizer! As ruas ficaram repletas de pedaços de cérebros. Os proletários desarmados foram empilhados nas catacumbas de Tuileries, do Hôtel de Ville, da Ecole Militaire, nos estábulos das casernas, nas pedreiras de Ivry, nas fossas do Champ-de-Mars, em todos os esgotos da capital do mundo civilizado, e lá foram massacrados com todos os refinamentos da crueldade! Os tiros choveram em todas as janelas das ruas, o chumbo caiu nos valões onde – entre os gemidos dos moribundos, os estilhaços de riso da loucura – os proletários eram atolados em urina e sangue, asfixiados pela falta de ar e torturados pela sede e a fome. Os subúrbios foram tratados como na idade média, um lugar tomado de assalto. Os arqueiros da civilização se posicionaram sobre as casas, desceram nos porões, vasculharam todos os cantos e recantos, passando pelo fio da baioneta todos que lhe pareciam suspeitos. Entre as barricadas desmanteladas e no lugar de cada paralelepípedo das ruas era possível colocar uma cabeça de cadáver... Jamais, desde que o mundo é mundo, viu-se semelhante carnificina. (...)
Eles pensaram que afogaram o Socialismo em sangue. Muito pelo contrário! O que lhe deram foi o batismo de fogo! Esmagado em praça pública, ele se refugia nos clubes, nas fábricas, como o cristianismo nas catacumbas, recrutando por toda parte prosélitos.(...)
1848 também teve Proudhon, um outro espírito rebelde, que em seu livro cuspiu a conclusão mortal no rosto da burguesia: “A propriedade é um roubo!” Sem 1848, esta verdade teria permanecido por muito tempo ignorada no fundo de alguma biblioteca privilegiada. 1848 iluminou-a, e lhe deu por quadro a publicidade da imprensa cotidiana, a multiplicidade de clubes a todo o vapor: ela foi gravada no pensamento de cada trabalhador. O grande mérito de Proudhon não é ser sempre lógico, longe disso, mas ter provocado os outros a buscar a lógica. Porém, o homem que disse também: “Deus é o mal, a escravidão é assassinato, a caridade é uma mistificação” e assim por diante; o homem que reivindicou com tanta força a liberdade do homem; esse mesmo homem, ai!, também atacou a liberdade da mulher: ele a baniu da sociedade, ele a decretou fora da humanidade. Proudhon é apenas uma fração do gênio revolucionário; metade de seu ser está paralisada e, infelizmente, é o lado do coração. Proudhon tem tendências anárquicas, mas não é um anarquista; ele não é humanidade, é masculinidade. Apesar disso, se como reformador há falhas no seu diamante, como agitador ele tem ofuscantes centelhas. De fato, é alguma coisa. E o Mirabeau do Proletariado não tem nada a invejar ao Mirabeau da Burguesia. Ele o ultrapassa de toda a altura de sua inteligência inovadora. Enquanto um só teve um impulso de rebelião, um lampejo, uma chispa que se extingue rapidamente nas trevas da corrupção. O outro fez ressoar golpes de trovão sobre golpes de trovão. Ele não somente ameaçou, ele explodiu a velha ordem social. Nunca homem algum jamais pulverizou, a sua passagem, tantos séculos de abuso, tantas superstições supostas legítimas.” LE LIBERTAIRE n°5: 31 de agosto de 1858
Tradução por Humana Esfera, a partir de http://joseph.dejacque.free.fr/libertaire/n01/n01.htm e https://we.riseup.net/jessecohn/experimental-translation-wiki-2. Julho de 2012.
Outros clássicos que traduzimos:
perfeito
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