Propriedade Absoluta (1982), de G. Kay & J. Mott

Traduzimos o texto "Propriedade absoluta", primeiro capítulo do livro “Political Order and the Law of Labour”, de G. Kay & J. Mott (Macmillan, London, 1982). Tradução para o português pela humanaesfera a partir da versão que pode ser encontrada em https://libcom.org/library/absolute-property-g-kay-j-mott. 

Publicamos a tradução em partes, correspondentes a um subcapítulo cada uma:



Introdução

1- Propriedade privada 

2- Propriedade intensificada 

3- A abstração e a crítica da natureza

4- Forma social

5- O Estado

6- Abundância






PROPRIEDADE ABSOLUTA
(Geoffrey Kay & James Mott)
[INTRODUÇÃO]
Na sociedade moderna, onde as condições de vida são propriedade privada, as necessidades são separadas das capacidades. Um estado de abundância alteraria isso. Necessidades e capacidades se encontrariam, fechando o espaço entre elas. Na sociedade moderna, esse espaço é ocupado pelas densas estruturas da propriedade privada – a ordem política e a lei do trabalho. Em um estado de abundância, elas não teriam lugar. Se as capacidades produtivas já existentes forem orientadas para as necessidades, o trabalho necessário seria reduzido ao mínimo, de tal modo que nada estaria entre os homens e o que eles precisam para viver. O dinheiro e a lei do trabalho perderiam sua força, e, desintegradas as suas fundações, o estado político desapareceria. O estado de abundância não é uma visão utópica mas uma possibilidade real das condições já existentes. De modo similar ao “estado de natureza” originalmente inventado pela filosofia política quando a sociedade moderna estava se formando, a abundância mantém viva a tradição da crítica.
A grande tradição da filosofia política do século XVI ao XVIII considerava que a propriedade privada e o contrato estavam no âmago da sociedade política. Ela contrastava o mundo com uma época conjecturada da qual se acreditava que ele se originou. Vendo a sociedade política à luz do passado ao invés do futuro, a filosofia recorria ao atavismo e dava proeminência a um estado ou condição humana natural. Nesse estado de natureza, o direito de propriedade estaria presente, mas impossibilitado de estabelecer uma ordem capaz de assegurar sua sobrevivência. Daí a necessidade de sua formalização em um estado político. Mas enquanto a propriedade privada podia ser extrapolada regressivamente ao estado de natureza, não é possível inverter o procedimento projetando-a progressivamente a um estado de abundância. Rousseau disse que os homens foram forçados a sair do estado natural porque seus poderes como pessoas se tornaram inadequados para sustentá-los: mas ele não considerou o imenso desenvolvimento das forças produtivas que começou com a revolução industrial. O desenvolvimento das capacidades humanas para se tornarem contidas em máquinas que se auto-regulam aponta para a possibilidade de satisfazer as necessidades de subsistência com o mínimo de trabalho vivo. Isto confirma o que o direito natural conclui – que a propriedade privada é o âmago da sociedade política –, apenas a ênfase é alterada. Enquanto a filosofia política acreditava que a propriedade privada era fundamental e aceitava o Estado como sua garantia, a teoria da abundância vê a propriedade privada como uma fase no desenvolvimento da produção social que o Estado hoje protege simplesmente para preservar sua própria existência. A medida que o crescimento das forças produtivas ameaça a propriedade privada, o Estado é forçado a uma organização cada vez mais enlouquecida para sua defesa. A simples verdade da sociedade política é que ela se fundamenta na propriedade privada: isso foi firmemente compreendido pelos filósofos do estado de natureza, mas eles não enxergaram além.
No coração da teoria da propriedade privada, o direito natural colocou o trabalho – a relação do homem com a natureza, posta em termos de pessoas legais e coisas. Isso deu surgimento à forma elementar da propriedade privada, persona-res. Mas, ao contrário do que parece à primeira vista, esta forma elementar da propriedade não é uma estrutura auto-contida de uma pessoa e uma coisa. É uma ordem social dentro da qual cada ato de propriedade é geral na medida em que o trespasse deve ser proibido. No entanto, embora a propriedade privada sempre assuma a forma de relação social entre pessoas, ela não é uma forma em que as coisas têm um papel passivo. Na sociedade política, as coisas tem vida própria.
No século XVIII, o homem não era concebido à parte da natureza; pelo contrário, ele era sua parte mais vital, já que era através do homem que a natureza se tornava consciente de si mesma. Uma categoria central da filosofia nessa época era a razão, que, como ordem unificada de pessoas e coisas, era tão natural quanto humana. Cada indivíduo seria capaz de participar da razão e prover a si próprio com materiais do conhecimento adequados. Mas ao mesmo tempo em que celebravam essa ordem unificada, os filósofos perceberam que ela estava sendo dilacerada pela propriedade privada e pela divisão do trabalho. A formação do proletariado no fim do século XVIII, uma classe de homens completamente despossuídos das condições de vida (isto é, da natureza), pôs fim a este projeto filosófico de ordem unificada. Após 1848, a filosofia da harmonia universal se dividiu em apologética da ordem existente e em oposição revolucionária a ela.





PROPRIEDADE PRIVADA
Ali onde a propriedade privada é o modo universal de apropriação, a forma legal persona-res é a ossatura que unifica a sociedade. A necessidade de uma tal amarra especialmente desenvolvida surge quando é negado aos elementos ligados por ela a possibilidade de estabelecerem uma unidade direta em si mesmos. A própria existência de uma amarra jurídico-legal entre pessoas e coisas pressupõe uma verdadeira separação. De fato, a propriedade privada pressupõe não apenas uma, mas toda uma série de separações das quais esta é a primeira: a saber, as condições materiais de vida são coisas jurídico-legais sobre as quais nenhuma pessoa pode exercer uma reivindicação direta. Nada na sociedade capitalista pode ser adquirido mediante a simples possessão ou direito natural, visto que não há relações diretas entre os homens e o mundo à sua volta. Assim, a primeira separação implicada pela propriedade privada como sua condição de existência, uma existência que continuamente reproduz essa condição, é a divisão categórica entre pessoas e coisas, cujo refinamento como sujeitos e objetos jurídico-legais, longe de superar a separação, na verdade a reforça. Esta primeira cisão é completada por uma segunda – a separação entre sujeito e sujeito e entre objeto e objeto – através da qual se faz com que a propriedade privada funcione como sistema.
O aspecto distintivo da propriedade moderna que a diferencia das formas mais antigas e menos desenvolvidas da antiguidade clássica e do feudalismo é que essas duas separações, que resultam em um mundo de sujeitos individuais de um lado e de objetos discretos do outro, se tornaram absolutas ao se combinarem para formar uma terceira: a separação do direito de propriedade face a todos os objetos. Na sociedade capitalista, as capacidades jurídico-legais que selam um indivíduo como detentor de propriedade não derivam da posse direta. Quando, neste sentido, a propriedade é absoluta (propriedade absoluta), uma cunha é colocada entre o direito de propriedade e todos os objetos, criando um abismo entre sujeitos e objetos e abrindo um espaço que é imediatamente preenchido pelo Estado. A sequência é lógica, não sequencial: a separação entre a subjetividade e os objetos não acontece primeiro criando um espaço que o Estado ocupa depois - os eventos ocorrem simultaneamente. O espaço é preenchido no mesmo momento de sua criação, dado que está na natureza deste espaço existir apenas como espaço ocupado. A fundação da propriedade absoluta e o estabelecimento do Estado são momentos recíprocos do mesmo processo.
Vale a pena seguir o caminho feito pelo direito natural, já que seus experimentos simples dão rápido acesso à propriedade privada. Considere a situação em que indivíduos se encontram sem regularidade para comerciar seus produtos. Cada ato de troca requer que cada parte reconheça cada outra como dona de propriedade, mas quando a troca não tem regularidade, o reconhecimento é específico no que diz respeito ao tempo, lugar, participantes e produtos. A necessita reconhecer os direitos de propriedade de B apenas na ocasião do escambo, e então apenas em relação ao objeto particular que busca adquirir dele; o reconhecimento de A por B é restrito de maneira similar. Mas na sociedade capitalista, em que a troca é geral e impessoal, o direito de propriedade não pode ser estabelecido dessa maneira fragmentada. Com efeito, ele é estabelecido independentemente de todo e qualquer especificidade de tempo, lugar, participantes e produtos. Ali onde o comércio ocorre irregularmente, os indivíduos estabelecem seus direitos de propriedade através dos atos de troca: na sociedade capitalista, eles são estabelecidos plenamente como proprietários antes de entrarem no mercado, e o direito de propriedade é ilimitado. Neste sentido, a subjetividade do indivíduo enquanto pessoa com a capacidade jurídico-legal de ter propriedade é universal. Subjetividade universal: (1) não se restringe a objetos particulares ou ocasiões; (2) se aplica a todos os indivíduos. Como portadores desta subjetividade universal, os membros da sociedade perdem todas as marcas de distinção e se movem em um mesmo plano como equivalentes.
A subjetividade universal apareceu apenas quando as forças produtivas e a divisão do trabalho alcançaram certo nível de desenvolvimento, mas mesmo então ela não surgiu espontaneamente. Assim, a propriedade privada se desenvolveu através de uma massa de leis que expressam suas condições e operações; e a fórmula jurídica persona-res sempre foi incorporada a um grande número de detalhadas leis de contrato, de delito, roubo, trespasse e assim por diante. Foi através destas leis que a subjetividade moderna surgiu e foi com sua elaboração que ela se desenvolveu na direção da universalidade. Mas seria errado ver o Estado nesse processo como uma constante ou um fator dado, visto que isso negaria seu caráter histórico. A legislação que fundou a propriedade moderna transformou os homens e suas condições de subsistência reais em sujeitos e objetos de propriedade. E ao mesmo tempo transformou o corpo legislativo em estado político. Os primeiros atos da propriedade moderna foram efetuados através dos postos [offices] do suserano feudal, que, no processo, assumiu o caráter despersonalizado de uma monarquia. Esta última foi então posta à distância das outras ordens feudais, abrindo caminho para a nova separação política entre Estado e sociedade civil. O direito de propriedade moderno não era totalmente novo no início, ele dependia pesadamente do direito romano, que já tinha desenvolvido os conceitos de personalidade jurídica e soberania do povo, embora não ainda na extensão plena e absoluta que viria a adquirir na sociedade capitalista. A transformação das ordens feudais por meio do direito romano demorou séculos; o resultado nunca foi inevitável e, como toda história real, percorreu um caminho incerto e vacilante. Porém o processo foi determinado a cada momento pela conexão entre propriedade privada e Estado, sem a qual não só o passado, mas também o presente pareceriam um caos sem sentido.
A estrutura lógica da propriedade absoluta compreende três elementos:
(1) os sujeitos são afastados dos objetos na medida em que a subjetividade não é definida em relação a nenhum objeto em particular;
(2) os sujeitos acessam os objetos através de um direito universal de propriedade já estabelecido, aplicável a qualquer objeto;
(3) todos os elementos do mundo natural são definidos como objetos na medida em que todos eles se qualificam para serem apropriados pelos sujeitos.
É uma estrutura que pressupõe a existência do Estado, pois é apenas por meio de um Estado que pessoas e coisas podem ser formalmente constituídas como sujeitos e objetos antes que suas colisões ocorram. Por outro lado, é igualmente certo que a autoridade política na sociedade assume a forma de Estado quando a apropriação real é efetuada mediante sujeitos e objetos jurídico-legais que são constituídos antes do ato de apropriação.
O encontro direto de um sujeito com um objeto significa a destruição do objeto, pois é o ato de consumo. Assim, de fato, a relação de propriedade somente floresce no hiato entre produção e consumo, quando o objeto se move na esfera da circulação e é trocado como mercadoria. O ato de troca que movimenta a mercadoria para a esfera do consumo é uma relação bilateral entre sujeitos na qual eles concordam em reconhecer um ao outro. Duas vontades independentes se encontram e se reconhecem uma na outra. A reciprocidade é tão completa neste ato, e na consequente identidade das partes envolvidas, que a filosofia clássica alemã concebeu a força motriz que funciona ali como sendo uma vontade comum ou universal que transcende os indivíduos realmente envolvidos, que meramente participariam dela. O caráter idealista desta concepção pode facilmente ser criticado, especialmente a ideia de que a vontade universal se origina de fora da prática real da troca; mas isso não diminui o feito da filosofia alemã ao reconhecer que a troca é mais do que uma série de colisões, que ela seria uma determinada estrutura desde o início. Enquanto o direito natural tomava como ponto de partida as trocas ao acaso que tinham que ser harmonizadas e estabilizadas, a filosofia alemã propôs que tudo isso veio ao mundo plenamente formado. Por esta razão, ela não podia apreender a história real da troca; porém, ela trouxe à tona o fato de que as trocas na sociedade moderna não são um sistema auto-suficiente, mas pressupõem uma força constitutiva.
Tanto o direito natural quanto a filosofia clássica alemã compreenderam de diferentes maneiras o fato de que a propriedade privada só pôde se tornar a forma geral de apropriação (propriedade absoluta) com a condição de que exista Estado. Ambas as tradições compreenderam que a troca ocorre nos termos que são estabelecidos de fora de sua esfera imediata. Do lado da objetividade isto é bastante explícito no fato de que a troca moderna é transacionada mediante um objeto universal (o dinheiro), que embora se origine da troca como um objeto como todos os outros, apenas começa a desenvolver sua universalidade quando se destaca e se torna um objeto político. A natureza política do dinheiro é evidente na sua aparência – ele sempre porta a cabeça do príncipe, ou algum emblema do Estado. Do lado da subjetividade, o mesmo se aplica: assim como o dinheiro é imediatamente intercambiável como objeto universal cuja validez não precisa ser verificada, também cada indivíduo é aceito pelo seu valor nominal como persona bona fide. O dinheiro é aceito porque é um objeto universal graças ao seu ser político: o indivíduo é universalmente reconhecido porque ele é um sujeito político – um cidadão.
No dia a dia, o assunto é tomado por garantido; em transações mais substanciais como a venda e a compra de uma casa, o título é verificado; mas essas verificações se restringem à declaração do vendedor de que é proprietário, e não se estendem à sua capacidade jurídico-legal de ser dono da casa antes de tudo. Uma curiosidade jurídica é que as verificações precisam estabelecer se a casa é de fato um objeto de propriedade que pode ser alienado absolutamente, visto que casas são uma subcategoria do que antigamente era conhecido como propriedade real, e em alguns casos ainda existem direitos medievais sobre o usufruto [N. do T.: no Brasil, p.ex., a propriedade imóvel dita foreira ou enfitêutica]. Mas essa anomalia que é a propriedade real, em que formas feudais perduram e deixam seus vestígios na sociedade moderna, é precisamente a exceção que confirma a regra: que na sociedade política, todas as pessoas e coisas, em virtude de estarem na sociedade política sob o Estado, existem imediatamente como sujeitos e objetos de propriedade. Enquanto os teóricos do direito natural entenderam isto bem, que a propriedade absoluta só poderia existir no quadro do estado político, a relação teve de ser invertida para mostrar que as estruturas de poder assumem a forma de Estado porque a propriedade privada governa absolutamente. A razão disso é a possibilidade do estado e abundância.
Visto que as relações sociais na sociedade política são conduzidas em termos de reciprocidade, elas não podem ter conteúdo político como tinham na sociedade feudal. Daí se segue que o locus do poder e da autoridade na sociedade política deve ser confiado ao exterior da esfera das relações sociais e se destacar delas como um soberano, dando surgimento à separação do Estado frente à sociedade civil que se formou no séculos XVI, XVII e XVIII. A característica do Estado é que ele se destaca da sociedade e exerce poder sobre ela à distância. E é precisamente essa distância da sociedade que, de um lado, o faz universal (isto é, o mesmo para todos os membros da sociedade), e, de outro, permite-o impor a universalidade de volta à sociedade. A teoria liberal combinou esta universalidade com uma teoria tudo-abarcante dogmática da democracia.





PROPRIEDADE INTENSIFICADA
A teoria do estado de natureza sobreviveu no século XVIII, quando ainda era razoável imaginar que a propriedade privada é natural. Um filósofo ainda podia olhar as categorias jurídico-legais de sujeito e objeto e através delas enxergar os homens e a natureza, apesar de Rousseau e Kant encontrarem cada vez mais dificuldades nisso. No século XIX, com a intensificação da propriedade, isso já não podia mais ser feito racionalmente, já que qualquer um que olhasse com atenção em qualquer um dos elementos da propriedade intensificada apenas enxergaria uma imagem reversa do outro. O exame de perto do capital revelava a força de trabalho, enquanto que a inspeção detalhada da força de trabalho apontava ao capital. A economia política que continuou a tradição do direito natural pensava que, quando perscrutava o trabalho e o capital, podia enxergar a natureza, mas esta ilusão já não era mais razoável. A contribuição da teoria do estado de natureza à filosofia política foi a divisão política entre Estado e sociedade civil. Isso surgiu da propriedade absoluta, ao mesmo tempo que a estabeleceu como uma série de separações: (1) entre sujeito e objeto; (2) entre sujeito e sujeito; (3) entre objeto e objeto; condensadas na (4) separação da subjetividade face a todos os objetos (subjetividade universal). Estas separações eram limitadas pela unidade da qual teriam se derivado: a saber, a relação direta entre o homem e suas circunstâncias em um estado de natureza. O racionalismo do século XVIII considerava artificiais essas separações, mas, contrastando-as com uma unidade conjecturada, se tornou incapaz de compreender a real natureza das tensões envolvidas e, assim, incapaz de compreender seus limites e os limites da sociedade política. A teoria da abstração, que substitui o estado de natureza pelo de abundância, elabora essas mesmas separações, mas em termos revolucionários que revelam seus limites.
Quando a propriedade privada é absoluta, não apenas todos os sujeitos da propriedade se tornam equivalentes entre si, e, de modo similar, todos os objetos se tornam uniformes, mas sujeitos e objetos são fundidos uns nos outros de um modo inteiramente novo. A nova equivalência da propriedade absoluta abrange tanto sujeitos quanto objetos na sua ordem formal, e é isso que torna possível a intensificação da propriedade como capital e força de trabalho. Subjetividade e objetividade, na forma jurídica persona-res, permanecem dessa maneira o modelo da propriedade intensificada.
As mercadorias consumidas como elementos físicos do capital (máquinas, matérias-primas) e o dinheiro adiantado para comprá-las são mercadorias como todas as outras, mas quando elas servem como capital, sofrem uma modificação que as coloca à parte. Uma metamorfose correspondente ocorre na sua forma jurídico-legal, e o capital-como-propriedade é tão distinto da propriedade simples quanto o capital-mercadoria é distinto da mercadoria simples. Depois que esta última é comprada, ela fica à disposição para seu proprietário usar como lhe apraz, mas isso jamais pode acontecer com o capital. O capital é valor-em-movimento - mercadorias compradas e vendidas, recompradas e revendidas, para o lucro (mais-valia) e não para o consumo pessoal. Além disso, o lucro independe da vontade do proprietário, em que ele surge diretamente da atividade de comprar para vender. O processo de acumulação não se origina dos apetites dos capitalistas e pode até mesmo se dirigir contra eles. Se um capitalista individual exercer a opção formal de consumir seu capital ao invés de reinvestir em busca de lucro, ele deixa ipso facto de ser um capitalista. Mas até um exercício mais limitado de sua vontade contra a acumulação, tal como o consumo pessoal de uma parte dos lucros, é sujeito a restrições. A propriedade só funciona como capital quando ela é continuamente reinvestida em busca de lucro, e o indivíduo capitalista só consegue permanecer no negócio se aceita a disciplina externa do mercado e investe o suficiente para se manter páreo com as novas técnicas e organização eficiente. As mesmas restrições se aplicam a toda classe dos capitalistas. O ritmo e o padrão da acumulação é determinado pelo capital-em-geral, que não é um simples agregado de capitais individuais, mas sua totalidade. Essa totalidade não é formada por uma coalizão consciente dos capitalistas individuais; pelo contrário, ela opera através de sua recíproca antipatia (competição). O sujeito do capital-em-geral é a classe capitalista, mas visto que o capital é exercido como propriedade privada, esse sujeito é decomposto e inadequado a seu objeto. A resultante incongruência entre sujeito e objeto fornece a oportunidade para uma revolução em que o objeto toma a iniciativa. A marca distintiva da propriedade privada enquanto capital é precisamente essa despossessão da vontade.
O circuito geral do capital, D-M-D´ (onde D representa dinheiro, e M, mercadoria), comprar para vender, é uma inversão da circulação simples de mercadorias, M-D-M. Esta última representa a troca de valores de uso para o consumo e deixa o sujeito pessoal em primeiro plano e as coisas em seu lugar como objetos à disposição. O outro circuito, porém, começando e terminando com dinheiro, de modo que seu único fim possível é o ganho quantitativo – um excedente D´ sobre D, a mais-valia – leva o objeto ao primeiro plano, no qual ele está na posição de dispor do sujeito. Um indivíduo pode escolher se tornar um capitalista, mas uma vez feita a escolha, a lógica da acumulação dispõe de sua vontade. Ao mesmo tempo, inclusive a possibilidade desta escolha pressupõe uma propriedade que excede as necessidades pessoais e, assim, já prefigura a natureza do capital como propriedade apartada de qualquer necessidade do sujeito. No circuito do capital, as mercadorias, enquanto valores de uso, se tornam meios para circular valores; enquanto que o dinheiro - a mercadoria universal que é indiferente aos valores de uso específicos, e daí indiferente às necessidades - fecha o círculo consigo próprio e toma a si mesmo como seu próprio critério. A separação do sujeito frente ao objeto que está no núcleo da propriedade simples é intensificada a medida que o objeto proclama sua independência.
É por isso que a forma jurídica clássica da propriedade, persona-res, é muito inadequada para o capital. Do mesmo modo que o capital é o critério de si mesmo, e a acumulação é o fim em si, a forma jurídica do capital descarta todos os sujeitos externos. O estabelecimento dessa forma jurídico-legal no século XIX, a joint stock company with limited liability [N. do T.: no Brasil, corresponde tanto à sociedade de responsabilidade limitada, Ltda, quanto à sociedade anônima, SA] é muitas vezes interpretado como uma medida ad hoc para proteger os interesses dos investidores individuais, mas isso é não perceber a sua importância real. Mesmo que a legislação tenha sido ocasionada por circunstâncias específicas, é importante compreender que a necessidade de uma subjetividade jurídico-legal especial para o capital surge da natureza do capital em si, e que as circunstâncias que fizeram esta legislação imperativa, e a forma que tomou quando foi finalmente aprovada, tem causas muito mais profundas do que as fraudes da década de 1860.
O aspecto dessa legislação do século XIX que é ainda hoje crucial, apesar do elaborado crescimento do direito corporativo, é a limitação da responsabilidade [limitation of the liability] de qualquer investidor individual à quantidade do seu investimento. Isso separa a propriedade pessoal do indivíduo do capital dele, e assim reconhece juridicamente as diferenças reais entre eles. Mas ao mesmo tempo em que os investidores se isentam de responsabilidade além de seu capital, eles também são poupados das responsabilidades por esse capital; assim, reclamações como as que surgem através de seu uso são dirigidas contra a companhia ou corporação e não contra os acionistas ou sócios. Em outras palavras, a instituição da responsabilidade limitada estabeleceu a corporação como um sujeito jurídico-legal novo e independente, tão real na lei como os sujeitos pessoais da forma jurídica clássica, embora totalmente removida desses sujeitos. A corporação é o proprietário real, ativo, do capital que emprega - quando o capital é objeto de propriedade, a corporação é o sujeito. Por outro lado, a corporação não abrange nada exceto o capital – os investimentos dos acionistas - de modo que o capital está presente nos dois polos da propriedade, tanto como sujeito quanto como objeto. É a formal jurídico-legal característica do capital que corresponde adequadamente à sua forma econômica. Tal como o dinheiro, que é indiferente às mercadorias enquanto valores de uso e assim indiferente às necessidades, se torna tanto premissa como resultado do circuito econômico do capital, assim também o sujeito e o objeto do capital-enquanto-propriedade adquire uma unidade que é, de modo similar, indiferente às condições fora dele.
A intensificação da propriedade no capital industrial requer a transformação da capacidade de trabalhar em mercadoria e resulta em uma forma jurídico-legal que é a antítese da do capital. Enquanto que, com o capital, o objeto de propriedade se torna sujeito, com o trabalho, o movimento ocorre na direção contrária, pois o sujeito toma a si próprio como objeto. O trabalhador vende sua força de trabalho: isso pressupõe que ele é o sujeito da propriedade que ele pode legalmente alienar no mercado e que a sua força de trabalho é um objeto de propriedade. Mas a força de trabalho não é um objeto no sentido convencional, certamente não é do tipo previsto no direito natural. Ela não é uma coisa fora da pessoa, mas suas próprias capacidades, sua força vital. Dado que o potencial encadeado nessa capacidade, o trabalho, só pode ser realizado pelo próprio trabalhador, segue-se que o objeto de que o trabalhador é sujeito é simplesmente ele próprio.
Eis a antítese entre trabalho e capital: em um caso, o objeto de propriedade se torna seu próprio sujeito; no outro, o sujeito se torna o objeto. Mas essas formas opostas de propriedade intensificada são compostas de elementos idênticos. Tanto o capital quanto o trabalho são feitos com os sujeitos e objetos da forma jurídico-legal elementar da propriedade privada; e o fato de terem isso em comum é um aspecto da antítese. É apenas na sociedade capitalista que há a uniformidade como meio pelo qual cada classe oposta pode tomar a outra como equivalente. Na compra e venda de força de trabalho (trabalho assalariado), as duas formas intensificadas de propriedade se encontram diretamente. Mas esse encontro tem a natureza de uma contradição, porque reune elementos comuns estruturados de maneiras inteiramente contrárias. De ambos os lados há sujeitos e objetos, mas em ordem reversa. É apenas porque são compostos de elementos idênticos que capital e força de trabalho podem se encontrar; o ordenamento reverso desses elementos dita que esse encontro é uma contradição.
Essa contradição pode ser percebida na própria estrutura do salário, cuja forma é a equivalência, mas cujo conteúdo real é a exploração. Formalmente, trabalhadores e capital se encontram como equivalentes: como sujeitos jurídico-legais da propriedade, eles buscam trocar, de um lado, força de trabalho, e do outro, dinheiro. Mas os conteúdos reais da troca não são equivalentes, visto que o trabalhador, ao concordar em vender sua força de trabalho, concorda efetivamente em sujeitar sua vontade ao comprador, e trabalhar sob condições estipuladas. Na antiguidade clássica, o escravo era um objeto de propriedade; na sociedade feudal, a subordinação do servo era explícita no seu status: é apenas na sociedade capitalista que as relações sociais deixam de expressar seu conteúdo real e obliteram todos os traços da exploração pela sua organização como transação entre equivalentes.
Sendo um atributo do sujeito, a força do trabalho, tal como a propriedade real do feudalismo, nunca pode ser finalmente alienada, e, assim, é vendida de modo periódico. Ao fim, isso deixa o trabalhador com a posse dela, e, portanto, a posse de si próprio. A ironia da sociedade capitalista é que o trabalhador só tem a plena posse de si próprio quando está desempregado. Os homens não vendem sua força de trabalho por natureza, e é necessário que o Estado político exista antes que eles façam isso como rotina aparentemente natural. O vendedor de força de trabalho deve ser um indivíduo livre dotado da capacidade de ter propriedade, e, ao mesmo tempo, uma pessoa que não tem verdadeira propriedade, já que ninguém com algum meio de vida independente iria vender sua força de trabalho de maneira regular e interminável. Desse modo, o trabalhador deve ser simultaneamente uma pessoa de propriedade e uma pessoa sem propriedade - um sujeito de propriedade, mas sem nenhum objeto exceto sua própria pessoa. Em outras palavras, as condições necessárias para que a força de trabalho apareça regularmente no mercado como uma mercadoria são precisamente as que definem a subjetividade universal – o direito de propriedade totalmente separado de todos os objetos particulares de propriedade; daí totalmente separado de toda propriedade concreta - a propriedade absoluta. O conteúdo formal da subjetividade universal é a liberdade; seu conteúdo real é a miséria do proletariado. A propriedade absoluta intensificada na sociedade capitalista é miséria absoluta: o proletário é o cidadão paradigmático do Estado político.
A subjetividade universal é separada de todos os itens de propriedade com exceção de um – ela própria. A única coisa que o cidadão pode reivindicar diretamente é a sua própria pessoa, e é desta relação de propriedade (o propriedade de si mesmo por si mesmo) que decorre todos os direitos da democracia moderna: direito à greve, livre expressão e associação, o devido processo legal e o sufrágio. Em última análise, a estrutura do direito nada mais é do que a posse de si, e a democracia liberal nada mais é do que uma elaboração desta forma elementar de propriedade, na qual o si próprio é jogado de volta a si próprio, em solidão e isolamento - melancolia (Rousseau), consciência infeliz (Hegel), miséria social (Marx).





A ABSTRAÇÃO E A CRÍTICA DA NATUREZA

Na Grã Bretanha, ao fim do século XVI, foi formulada uma distinção jurídica entre a pessoa do monarca (Elizabeth Tudor ou James Stuart) e o monarca em si. Mediante a doutrina conhecida como “os dois corpos do rei”, o rei foi visto como uma pessoa moral [corporation sole] na qual, além da pessoa física [natural person], ele era considerado como pertencente a um corpo de monarcas existente através das eras – a sucessão: “... o Rei tem dois corpos, a saber, um corpo natural e um corpo político. Seu corpo natural (se considerado em si) é um corpo mortal, sujeito a todas as debilidades que vêm por natureza ou acidente, a estupidez da infância ou da velhice e defeitos semelhantes que acontecem aos corpos naturais das outras pessoas. Mas o seu corpo político é um corpo que não pode ser visto nem tocado, e consiste na política e no governo, e constituído para a direção do povo e a gestão da prosperidade pública, e este corpo é totalmente vazio de infância e velhice, e de outros defeitos naturais e de estupidez a que o copo natural é sujeito, e por causa disto, o que o rei faz em seu corpo político não pode ser invalidado nem frustrado por qualquer deficiência de seu corpo natural.” [1]
Historicamente, um enorme abismo separa a “Revolução Tudor no Governo” da consolidação e construção do Estado liberal no século XIX. Porém, esta doutrina, formulada no momento em que o Estado político estava emergindo das ordens feudais, pressagia desenvolvimentos posteriores e indica alguns de seus aspectos mais essenciais de um modo extremamente ilustrativo.
A divisão jurídica do corpo do rei é um exemplo histórico da separação associada com a propriedade privada: os termos de sua formulação, que contrapõem política e natureza, são os do direito natural. Por todas estas razões – isto é, que ela é historicamente concreta, que ela expressa os dogmas fundamentais do direito natural em termos claros e simples, e que ela se relaciona diretamente com a formação do Estado (soberania) -, esta doutrina fornece um elo conveniente entre a análise da propriedade em termos de direito natural e seu refinamento através do conceito de abstração.
Dado que, no século XVI, o poder era concebido como a competência pessoal do monarca, a definição do um homem como uma pessoa social, à parte e independente de seu ser “natural”, se restringia ao rei. Foi apenas com o desenvolvimento da democracia liberal que isso foi estendido à totalidade da sociedade, embora isso tenha ocorrido muito recentemente. Assim, enquanto é possível ver o núcleo da democracia liberal na reconceitualização do monarca no século XVI, e traçar o movimento lógico de um ao outro sem fricções, o movimento real da história foi turbulento e incerto. A redefinição do monarca feudal precipitou uma cadeia de eventos fora da alçada dos legisladores que formularam a doutrina dos “dois corpos do rei”, e nem sequer esses eventos decorreram dela inevitavelmente. No entanto, a separação da função [office] de monarca da pessoa do rei foi o primeiro passo decisivo na construção do Estado, e sua teorização foi um momento marcante da filosofia do direito natural. Desde o início, esta filosofia foi a auto-consciência do Estado. No período até a revolução francesa, ela forneceu o quadro no qual o conhecimento político se desenvolveu. No meio século seguinte, desenvolvimentos políticos forçaram uma reconstrução teórica, que foi realizada pela filosofia clássica alemã. Então, no século XIX, com a consolidação do capitalismo industrial e a emergência da classe trabalhadora como uma força totalmente nova na história, ainda outro realinhamento do pensamento político aconteceu, quando Marx sintetizou as duas tradições e foi além delas com a teoria da abstração.
A abstração, é preciso enfatizar desde o início, é um processo real e não uma construção mental. Na aparência, existe uma antipatia entre o real e o abstrato e a relação própria entre eles é de oposição, isto é, que abstrato significa irreal. Mas não é este o caso. A separação entre sujeito e objeto, que é um momento do processo de abstração, é bastante real, e define a miséria absoluta da classe trabalhadora.
Na doutrina dos “dois corpos do rei”, uma clara linha é traçada separando a natureza, concebida como original, e a política, derivada. Dentro deste quadro, a política se apresenta como uma abstração óbvia por dois motivos: primeiro, como algo removido ou separado de uma condição original, e, segundo, como negação dessa condição original. Depois da separação ter ocorrido, todos os traços da natureza desaparecem, isto é, “o corpo [político] é totalmente vazio de infância e velhice”. Na sociedade moderna, o status de ser um detentor de propriedade e um cidadão, mediante os quais um indivíduo exerce capacidades políticas e sociais, leva tão pouco em conta suas características naturais quanto o “corpo político” do rei leva em conta seu “corpo natural”, e a democracia liberal se congratula neste ponto, de estabelecer direitos independentemente de todas as diferenças “naturais” de raça, sexo, idade e assim por diante. Mas se a cidadania é uma abstração de todas as particularidades da natureza no sentido de que as desconsidera na sua totalidade, ela deve ao mesmo tempo reconhecer que essas particularidades de fato existem – como algo poderia ser positivamente desconsiderado sem que fosse igualmente positivamente reconhecido? Só o que existe de um modo definido e tangível pode ser posto de lado. Assim, conceber a constituição da cidadania como uma abstração em termos de direito natural, na linha da doutrina dos “dois corpos do rei”, implica em aceitar uma individualidade real ou natural da qual se faz abstração. Mesmo isso não basta, já que essa individualidade real ou natural, seja ela qual for, só pode existir como uma série de especificidades tangíveis, pois é apenas assim que ela pode se colocar como oposta à abstração em seu caráter de uniformidade. Mas se essas características são supostas como naturais, então a teoria da abstração é desafiada pelo problema de pressupor algo que é impossível saber – a afirmação de que os homens no passado viviam fora da sociedade, quando até a possibilidade de ter sido assim é sujeita à mais séria dúvida. Desse modo, a teoria da abstração, na medida em que parece supor homens plenamente formados pela natureza com todas as especificidades da individualidade, fracassa ante a primeira dificuldade, dado que parece requerer um conhecimento que não pode nunca ser alcançado.
É significativo que a doutrina dos “dois corpos do rei” restringe o conceito de natureza ao corpo físico, mas isso não oferece saída. Até mesmo se se aceitasse a suposição de que exista uma biologia associal humana – uma concessão maior do que pode parecer à primeira vista –, a teoria da abstração não poderia dar nenhum passo substancial por seus próprios critérios. Enquanto o “corpo político” do rei e a cidadania moderna podem, ambos, ser considerados como abstrações da biologia natural, assim também poderiam ser consideradas todas as condições históricas – servidão, escravidão e assim por diante –, e o conceito de abstração, na medida em que é atado ao direito natural, é incapaz de distinguir entre eles. Em outras palavras, um conceito de abstração formulado em contraste com a ideia de essência humana não pode ter exatidão histórica. Ele não pode, portanto, sustentar a posição, central para a teoria, de que a abstração é exclusividade da sociedade moderna porque esta é a única sociedade em que as condições de vida são apropriadas na forma de propriedade absoluta.
Foi apenas com a intensificação da propriedade no século XIX que o velho conceito de natureza pôde ser descartado, e que uma teoria adequada da abstração o substituiu.
Na doutrina Tudor, natureza e política são concebidas em termos de simples diferença, como dois aspectos desconectados da vida que não tem nada em comum e que existem fora um do outro: a natureza é original, e a política, derivada e abstrata. Na teoria da abstração retirada diretamente da doutrina dos “dois corpos do rei”, a política depende da natureza, pelo óbvio motivo de que nem um rei nem mais ninguém podem ter capacidades sociais sem um “corpo natural”, apesar dele ser totalmente desconsiderado nessas competências. O que é menos claro, mas não menos certo, é que o “corpo natural” depende igualmente do “corpo político”, ainda que seja uma dependência de ordem diferente. É apenas quando um rei, ou qualquer outra pessoa, adquire uma definição social que desconsidera todas as particularidades da pessoa que se torna possível conceber essas particularidades como algo à parte, e supor que a natureza humana é auto-contida. A ideia de uma natureza humana comum só entrou no pensamento quando as ordens feudais se decompuseram e a categoria de status, que combinava em uma unidade o que depois se tornaria separado como pessoas e funções [offices], morreu com elas. É apenas na sociedade moderna, na qual as competências sociais são estabelecidas através de uma subjetividade uniforme posta à distância frente a todas as particularidades, que surge a questão de uma natureza humana autêntica.
Ao apresentar a distinção entre política e natureza como simples diferença, a doutrina dos “dois corpos do rei” é uma versão muito grosseira da teoria da abstração. Uma explicação mais adequada deve reconhecer:
(1) Quer sejam originais ou sociais, não pode haver dúvidas de que as particularidades existem, e que a política é uma abstração delas no sentido de que elas não se apresentam imediatamente nos direitos e capacidades pelas quais os indivíduos agem na sociedade.
(2) Por outro lado, essas particularidades só podem existir como algo distinto da política quando a política é definida de modo a não levá-las em conta. Assim, a política, as capacidades sociais abstraídas, é, por assim dizer, uma tela em branco na qual as particularidades são projetadas. É apenas nesta tela que elas podem aparecer como algo distinto.
(3) Desse modo, o aparecimento das particularidades (natureza) como um elemento da vida social depende tanto da abstração da política quanto a possibilidade da política depende da presença de seres vivos. A própria natureza, por isso, já que só entra na vida social quando a política é abstraída, depende portanto da abstração e não pode ser considerada original. Entendido como elemento da vida social que contribui à sua forma e desenvolvimento, esse complexo de elementos que cai sob a rubrica de natureza humana não pode ser tratado como um dado original que vem de fora da sociedade; pelo contrário, ele deve ser reconhecido como um produto social que só surge quando as capacidades de agir na sociedade são definidas abstratamente. Em suma, a natureza é, tanto como a política, uma abstração.
(4) Nesse caso, a política não pode mais ser tomada como uma abstração da natureza, muito embora ela desconsidere todas as particularidades.
(5) A abstração, como processo social, porém, deve finalmente se apoiar naquilo que não é abstrato.
(6) Daí que deve haver alguma outra coisa além da política e da natureza que não seja uma abstração, mas da qual as duas derivam abstratamente. A existência deste terceiro termo alivia da teoria da abstração o fardo de uma natureza humana essencial, mas deixa a embaraçosa questão de saber o que exatamente é esse terceiro termo. Isso é particularmente embaraçoso, pois o terceiro termo deve ser tão original quanto o conceito tradicional de natureza, e, consequentemente, igualmente vulnerável.
A natureza humana é elusiva e é difícil dizer o que ela é. Ainda que fosse possível descobrir uma ocasião em que a natureza humana pura pudesse ser examinada, ainda permaneceria o problema de demonstrar que as descobertas feitas sobre ela seriam relevantes para a sociedade. O terceiro termo deve se originar na própria sociedade.
A abstração, é preciso enfatizar de novo, é um processo real. Portanto, falar do não-abstrato como real não o distingue adequadamente. O termo mais apropriado para não-abstração é racionalidade. A teoria da abstração, por conseguinte, tem três termos: Abstrato, racional e real. Tanto o abstrato como o racional são reais. O problema é que, na sociedade moderna, o racional não tem forma empírica direta nem imediata.
Toda criança”, escreve Marx, “sabe que um país que deixasse de trabalhar, não digo por um ano, mas por poucas semanas, morreria” [2]. O trabalho, concebido como a transformação propositiva de materiais da natureza para satisfazer as necessidades humanas, é fácil de compreender como o núcleo racional da sociedade. A dificuldade é que o trabalho tomado deste modo não é o mesmo que o trabalho como é de fato realizado na sociedade capitalista (trabalho concreto), visto que ele é exercido sob as condições da abstração. Na sociedade capitalista, o dispêndio de trabalho é determinado em um processo de produção cuja propósito primário é o lucro: as capacidades são redefinidas para este fim e a satisfação das necessidades se torna secundária. Isto é explicitado nas condições formais do emprego:
(1) O trabalhador não tem direitos sobre o produto de seu trabalho, que é propriedade de seu empregador.
(2) Ele entra no processo de produção mediante uma transação que o separa não apenas do que ele produz, mas também das capacidades que exerce na produção: ao vender sua força de trabalho, ele transfere a vontade de dispor de sua própria atividade a outra pessoa.
(3) Nessa transação (a relação salarial), toda particularidade, necessidade e capacidade é desconsiderada enquanto qualidade: assim, as diversas capacidades são expressas em uma forma comum, o dinheiro, no qual elas sobrevivem vestigialmente como diferenças de quantidade. O poder da abstração, porém, não termina aqui, e a medida que o processo de produção se torna cada vez mais plenamente capitalista, o dispêndio real do trabalho (trabalho concreto) se torna cada vez mais determinado pelo lucro. Isso é evidente no que se segue:
(4) No próprio trabalho, as habilidades e as condições de trabalho em geral, desde as tecnologias até a localização da produção, não são determinadas pelas capacidades particulares de trabalhar, mas pelo capital. Com o capitalismo plenamente desenvolvido, a produção determina as capacidades de trabalhar e não o contrário.
(5) O que é produzido não registra as necessidades do trabalhador diretamente engajado na sua produção, nem mesmo as necessidades dos trabalhadores considerados como um todo: é a propriedade do capital, o objeto de sua vontade, e só pode ser usado para satisfazer as necessidades com a condição de preencher o critério do lucro;
(6) Por todos estes motivos, o trabalho tal como ele existe realmente, o trabalho concreto, não pode ser tomado enquanto tal como o elemento racional na sociedade da qual acorre a abstração. Dado que todo trabalho, tal como é realizado na sociedade capitalista, é sujeito à abstração tanto formalmente quanto no detalhe, segue-se que o trabalho não-abstrato – isto é, racional – não pode ter uma existência empírica imediata. É impossível distinguir qualquer ramo do trabalho social, por mais úteis que sejam seus produtos, ou qualquer aspecto do trabalho, por mais sérios que sejam seus propósitos, e designá-lo como trabalho racional. No entanto, a racionalidade do trabalho imprime suas condições sobre a sociedade.
A produção, apesar ser para o lucro, não pode nunca desconsiderar totalmente as necessidades dos produtores. As empresas individuais podem produzir novidades fúteis, mas o capital-em-geral deve assegurar a reprodução da força de trabalho. Este imperativo imprime a racionalidade do trabalho na produção em geral, mas isso também pode ser discernido no ato individual de trabalho na medida em que ele é sempre propositivo, e o processo de produção pressupõe uma finalidade. No estado de abundância, seria criada uma unidade real entre o trabalho como ato individual e o trabalho como ato social, e as necessidades e capacidades estariam diretamente alinhadas. Tal unidade direta ou a racionalidade potencial do trabalho é estilhaçada na sociedade capitalista, pois o trabalho individual é dissociado da produção social e as necessidades são separadas das capacidades. Embora o lucro tenha idealmente substituído o trabalho como base da produção, isso é mitigado porque o trabalho afirma sua racionalidade no meio das formas abstratas do valor. A sociedade capitalista não pode nunca substituir o abstrato pelo trabalho racional (isto é, mais-valia pelas necessidades) mas deve fazer do trabalho um duplo, de um lado, esforço generalizado, que é indiferente a seu produto material, e, do outro, trabalho particular, que produz os produtos determinados a partir de materiais determinados. Sob essas condições, a racionalidade, a aplicação propositiva das capacidades para a satisfação das necessidades, não é eliminada da sociedade capitalista, mas submergida nas formas abstratas da mercadoria e seus derivados. O mais significativo desses derivados é a separação da capacidade de trabalhar das suas necessidades, e a criação dela como uma mercadoria. O contraponto à racionalidade na sociedade capitalista é, portanto, a compra e a venda da força de trabalho como mercadoria. Por outro lado, o limite dessa transação é a racionalidade do trabalho e a possibilidade de abundância.
Ao formalizar a racionalidade, a abstração inevitavelmente coloca todas as particularidades de um lado. Assim, na doutrina dos “dois corpos do rei”, o “corpo político” do rei desconsidera seu “corpo natural”; e a cidadania passa por cima de todas as necessidades e capacidades. O fundamento real da particularidade é o processo de trabalho, pois é nele, através do desenvolvimento da produtividade, que as necessidades e capacidades desenvolvem suas possibilidades e adquirem uma forma definida.
É por meio do trabalho que o homem age no mundo e, transformando-o, transforma a si mesmo. Além disso, visto que a produção está em fluxo contínuo, as necessidades e capacidades, isto é, as particularidades, não são constantes; e tampouco, devido à divisão do trabalho, elas são uniformemente distribuídas ao longo da sociedade tornando os indivíduos cópias uns dos outros. A particularidade que surge do trabalho portanto, diferente da natureza humana vista em termos essencialistas, varia ao longo de dois eixos simultaneamente: ao longo da sociedade e do tempo.
O trabalho concreto é subsumido plenamente à abstração (capital) tanto formalmente quanto realmente. Porém, as necessidades e capacidades de trabalho não são constituídas exclusivamente pelo capital: o trabalho não é suscitado pelo capital, mas é uma condição externa a ser tomada e formalizada. É neste caráter irredutível do trabalho que o terceiro termo na fórmula da abstração pode ser encontrado.
O direito natural, como expresso na doutrina dos “dois corpos do rei”, contrapõe a política (abstração explícita) à natureza (particularidade), como se esta última, na sua forma empírica existente, já não fosse determinada pela abstração. Ele trata a política e a natureza em termos de simples diferença, como se fossem independentes um do outro e capazes de existir sozinhos. Mas, visto que ambos são determinados pela abstração, esta abordagem se baseia em uma falsa premissa. Daí também é falsa a sua conclusão de que a política é a abstração da sociedade, uma superestrutura que se sustenta numa base não-abstrata, natureza realmente existente ou economia, como veio a ser chamada. É completamente impossível desenvolver uma teoria satisfatória da abstração com apenas dois termos. Um terceiro tempo, trabalho, como potencial unidade das necessidades e capacidades, deve ser acrescentado. Isto supera as inconsistências teóricas da abordagem diádica, ancora a teoria da abstração em termos sociais que se transformam com o desenvolvimento histórico, e dispensa com todas as essências naturais.
NOTAS:
[1] Foram nestes termos que a doutrina jurídica conhecida como “os dois corpos do rei” foi formulada no fim do século XVI. Veja Edmund Plowden (1816), Commentaries, or Reports, págs. 213-50. Essa passagem é citada em E. Kantorowitcz (1957), The King's Two Bodies: A Study in Medieval Political Theology.
[2] Carta de Marx a Kugelmann (11 de julho de 1868).








FORMA SOCIAL
A história é construída sobre a fundação do trabalho, que é o único meio pelo qual os homens se apropriam da natureza. É mediante o trabalho que os homens tomam posse do mundo e tornam os materiais da natureza em produtos que satisfazem as necessidades. Por esta razão, o trabalho é o núcleo racional da sociedade. Mas a propriedade privada interrompe as coisas, visto que é construída sobre a separação dos homens frente ao mundo a sua volta. Ela se interpõe como uma cunha que força os homens à parte da natureza, e, então, como uma amarra que os solda juntos. Separação e unificação ocorrem simultaneamente através do estabelecimento de sujeitos e objetos de propriedade. Assim, a propriedade privada tem dois lados correspondentes aos aspectos fundamentais da abstração: um é a separação, o outro é a uniformidade. Como sujeitos de propriedade, todos os homens são equivalentes e se movem em um mesmo plano.
Na sociedade capitalista, a abstração encharca a racionalidade. O intercurso dos homens com a natureza é interrompido e transformado em troca de mercadorias. Subjetividade e objetividade são formas sociais. O processo de abstração e a constituição dessas formas sociais são simplesmente a mesma coisa: a forma é a cristalização da abstração. Considere o processo familiar de pesagem, em que uma fatia de pão, por exemplo, é colocada em um lado de uma balança e algumas peças de ferro no outro lado. Quando a balança se equilibra, o peso do ferro se iguala ao do pão, mas ao colocar o aspecto quantitativo de um lado, isso é considerado a base com a qual ele é estabelecido. O peso do pão é antes de tudo uma qualidade natural do pão: uma parte integral de sua constituição que não pode realmente ser removida sem destruir o pão. Porém, ele pode ser formalmente separado do pão, possibilitando lhe dar uma existência objetiva. Na pesagem, dá-se ao peso do pão uma segunda forma de existência como peças de ferro. Em certo sentido, essas peças não são o peso do pão, elas não são seu peso real, que permanece uma parte integral do pão. Mas em outro sentido, elas são seu peso, seu peso formal. Aqui estão envolvidos quatro aspectos fundamentais da abstração e do estabelecimento da forma.
(1) A formalização da qualidade de uma coisa não cria essa qualidade em primeiro lugar, mas meramente lhe dá uma forma distinta e separada. Pesar uma fatia de pão não cria seu peso, mas dá a este peso uma segunda forma de ser que é distinta e que não tem nada especificamente do pão nela.
(2) A existência formal de uma coisa é tão real quanto sua existência original ou natural: o peso formal da fatia é tão real quanto o seu peso real.
(3) O processo de formalização é de abstração em dois sentidos: (a) a formalização da qualidade de uma coisa requer sua separação dessa coisa: o peso formal do pão é algo à parte do pão enquanto tal; (b) na sua existência formal, uma coisa não se torna diferente das outras coisas formalizadas. Não é apenas o pão que pode ser pesado, mas muitos outros itens – açúcar, chá, carvão, etc. E quando todos eles são pesados, cada um se torna a mesma coisa que os outros e se movem no mesmo plano como equivalentes uns dos outros. Neste sentido, a formalização é abstração como equivalência ou uniformidade – a desconsideração da particularidade.
(4) Apesar da formalização não criar o que é formalizado, ela lhe dá um potencial totalmente novo. Através do processo de formalização, uma coisa é refletida de volta a si mesma. Quando pesado, o peso do pão, agora formalizado, está fora do pão, que por sua vez confronta seu próprio peso como algo externo a ele, capaz de determinar sua própria existência (isto é, a do pão). Uma vez que o peso do pão é formalizado, torna-se possível organizar a sua produção com o critério do peso.
Por mais simples que seja esta metáfora, e por mais enganadora se for levada muito longe, estas generalizações são válidas para a propriedade privada e sua intensificação.
Como atividade racional, o trabalho é apropriação, o meio mediante o qual os homens tomam posse do mundo a sua volta. Neste sentido, ele pressupõe propriedade: é um ato de propriedade, mas não propriedade privada, que é uma formalização disso. O estabelecimento da propriedade privada não é a criação da propriedade mas uma cristalização dela, a partir da produção, em uma forma em que ela existe distinta do trabalho. Essa formalização é mais plenamente desenvolvida como subjetividade universal, em que os direitos de propriedade são totalmente divorciados da atividade racional, e todas as relações direitas com o trabalho são cortadas. Isso corresponde ao ponto (1) acima; o próximo aspecto da propriedade privada, sua realidade como uma forma, o (2) acima, é claro. Embora a propriedade privada não tenha como forma uma existência tangível como o peso (peças de ferro), a sua realidade é igualmente certa. Assim também é a sua natureza abstrata, (3). Primeiro, é uma separação (formalização) da apropriação racional e, segundo, ela estabelece a equivalência de tudo o que abrange. Ao se aplicar tanto a sujeitos como a objetos de modo a obliterar as distinções naturais entre eles, isso torna possível a intensificação da propriedade.
A produção capitalista, a propriedade privada refletida de volta a si mesma, confirma o último ponto, (4). A organização da produção para o lucro é a produção abstraída da necessidade racional.
A filosofia política tradicional reconhecia que a análise formal da propriedade privada era o único ponto de partida válido para a teoria do Estado. Tendências na teoria moderna tem mal interpretado isso como formalismo em dois sentidos. Primeiro, ele parece apoiar a impressão popular de que formal significa fixo e rígido. O direito e a administração, mediante os quais o caráter da sociedade moderna é estabelecido, parece, à primeira vista, apoiar esta impressão. É tentador imaginar a estrutura formal da sociedade como a imagem de um moderno bloco de escritórios que determina o espaço no qual as atividades acontecem, e até mesmo as próprias atividades. Mas apesar desta imagem capturar o poder determinado da formalização e seu caráter sistemático, a fluidez é perdida. Uma imagem mais adequada da formalidade da sociedade moderna é a matemática, que combina coerência e movimento. Na matemática, axiomas são elaborados sem que sejam alterados no seu fundamento. O axioma da sociedade capitalista é a forma única universal da propriedade privada: mas ela compreende uma série de elementos formais em contínuo fluxo e desenvolvimento. Isso dá uma segunda falsa impressão, a de que a capacidade de uma forma de ser elaborada é a capacidade da forma de se elaborar de acordo com uma lógica própria (teleologia).
O trabalho, e - deve ser enfatizado - apenas o trabalho, é a fonte da história. Enquanto a estrutura formal da sociedade é fluida e carrega o potencial de transformação, o trabalho porta não apenas o potencial, mas a capacidade de realizá-la. Na sociedade capitalista, a iniciativa imediata saiu inteiramente das mãos dos produtores: no entanto, a responsabilidade final pela produção social e por seu desenvolvimento repousa no colo do trabalho social. O potencial do trabalho de se colocar em movimento decorre de sua natureza como atividade propositiva, uma dialética das necessidades e capacidades que estabelece tanto as condições do progresso quanto as possibilidades reais de alcançá-lo. A abstração do trabalho frustra isso ao interromper a relação direta entre necessidades e capacidades, substituindo-a pela relação formalizada da propriedade intensificada no trabalho assalariado. Mas isso nunca freia o movimento. E nem a abstração é um único ato que alcança seu fim de uma vez por todas. Assim, o processo de abstração precisa ser continuamente renovado em condições sempre mutantes, e é isso que dá surgimento à elaboração contínua das formas. A complexidade superficial da sociedade moderna não deriva do direito, administração ou de qualquer outro elemento formal; e ela também não é a consequência espontânea da divisão do trabalho e do desenvolvimento da produção social. Ela surge como resposta da formalização frente ao desenvolvimento real. Os avanços na produção social tendem à simplificação dos processos sociais a medida em que eles tornam mais próxima a possibilidade de abundância em que as necessidades são diretamente relacionadas às capacidades. Mas é precisamente esta possibilidade que a sociedade moderna deve frustrar. A complexidade formal da sociedade é sinal de sua simplificação potencial – um índice das forças que pressionam contra ela.




O ESTADO
Do século XVI ao XVIII, o pensamento político colocou a análise da propriedade privada e do contrato no âmago da teoria do Estado. As contribuições mais importantes à tradição do direito natural foram as de Hobbes e Locke no século XVII e, no século XVIII, de Rousseau, cujo Contrato Social marcou seu apogeu. O método dessa tradição era contrastar a sociedade política, na qual o Estado se desenvolvia, com o estado natural, em que o Estado estaria ausente. Visto que o estado natural era baseado em uma conjectura, os resultados desta abordagem foram limitados. Em particular, a sua teoria da transição do estado natural ao estado político por meio de um contrato social abrigava inconsistências que ela nunca pôde resolver. Um contrato social, como qualquer outro, só pode ser efetuado por pessoas que possuem as competências apropriadas, ou seja, por sujeitos de direito. Mas como os filósofos políticos vieram a entender que essas capacidades eram políticas, e que o direito só poderia ser estabelecido mediante o Estado, a inconsistência da teoria do contrato se tornou gritante. Para que efetuassem o contrato que formou o Estado, os homens deveriam estar dotados de direitos que derivam do Estado. No tempo em que Rousseau tentou aperfeiçoar a lógica da teoria do contrato, não havia escapatória que não a conclusão de que o Estado foi a condição necessária para sua própria criação.
Nesse momento, a teoria do direito natural descobriu o fato fundamental do estado político, o de que ele é auto-constituinte, mas ela era incapaz de se basear nisso. A teoria política nos séculos XVII e XVIII era parte do movimento mais amplo do pensamento moderno que incluía o desenvolvimento da teoria científica. Em especial os trabalhos de Newton sobre física e matemática exerceram profunda influência, e inspiraram uma lógica mecânica de causa e efeito. Mas enquanto esse método permitiu à teoria política romper com o pensamento feudal e se desenvolver como ciência, ele travou o direito natural quando estava prestes a descobrir a natureza auto-constituinte do Estado. No quadro da lógica newtoniana, em que a causa é não só logicamente anterior ao efeito como também o precede no tempo, é impossível conceber o Estado como condição de sua própria existência.
Para mais avanços na teoria do Estado, foi preciso uma reformulação completa de seu método, e esta foi a proeza da filosofia idealista alemã na virada do século XIX, especialmente Hegel. A própria contribuição de Hegel à teoria do Estado foi seriamente limitada por seu idealismo, que impediu que compreendesse o desenvolvimento empírico da sociedade política. Isso o levou a sobrepor seu pensamento sobre ela de um modo que se mostrou inerte e pouco esclarecedor. Mas o desenvolvimento que fez da lógica dialética foi um avanço seminal. Hegel substituiu a rigidez mecânica da causa e efeito com uma lógica fluida cujas categorias se moviam entre si de maneira que tornava possível ver que o que é premissa em um momento é consequência no momento seguinte. Nos termos desta lógica, a dificuldade de ver o Estado como condição de sua própria existência foi superada, possibilitando compreender e explorar sua natureza auto-constituinte pela primeira vez. Esta foi a contribuição feita à teoria política por Marx que, modificando o método de Hegel, produziu uma crítica do direito natural de longo alcance. Visto que era dirigida contra a economia política, sua importância para a teoria do Estado não é imediatamente óbvia, e é necessário um esforço de interpretação para revelá-la. Mas a teoria da abstração com que Marx criticou e reconstruiu a teoria do valor-trabalho se aplica com igual força à teoria do direito natural e do contrato social.
O feito notório do direito natural foi colocar a propriedade privada e o contrato no âmago da teoria do Estado. Acreditava-se que no estado de natureza, os homens tinham contato imediato com o mundo à sua volta e podiam tomar posse de tudo o que estivesse ao alcance da mão. Esse estado foi conjecturado, mas, como um ponto de contraste, focalizou o aspecto distintivo da sociedade política, na qual a apropriação não mais é direita, mas mediada através da subjetividade e da objetividade – a propriedade privada. Nos dois estados, a apropriação implica em força, primeiro para tomar e depois para manter. No entanto, enquanto no estado de natureza essa força é exercida diretamente por um indivíduo em seu próprio interesse, na sociedade política, ela é exercida indiretamente, por outros em seu nome. Segundo Rousseau, os homens saíram do estado de natureza porque seus poderes individuais se tornaram demasiado fracos para sustentá-los; e, em troca de ceder seus direitos naturais, receberam direitos políticos mantidos pelo poder da comunidade como um todo. Em termos de apropriação, isso significou que os indivíduos não mais exerciam força para manter as posses, que eles agora detinham como propriedade privada mediante direitos garantidos pelo Estado.
A diferença entre este entendimento da sociedade política e a visão liberal convencional não poderia ser mais nítida. Na visão liberal, a sociedade política é sustentada por meio da reciprocidade de direitos. O direito de um indivíduo é simplesmente espelhado no de outro (um mundo de inter-subjetividade), e isso cria uma comunalidade de interesses mútuos que provê o fundamento da sociedade. O Estado, então, exprime essa comunalidade mediante a constituição democrática, e a salvaguarda com sua soberania. Já segundo o direito natural, re-elaborado pela teoria da abstração, a recíproca da reivindicação, sua forma equivalente, é a força. A reivindicação de uma coisa por uma pessoa só se torna elemento de direito quando a força que a defende é exercida por outro. Na sociedade política, na qual as posses particulares são detidas através de um direito de propriedade geral, essa força é universal. Não há reciprocidade imediata de interesses, como a teoria liberal afirma, mas uma equivalência universal dos sujeitos mediada pela relação comum deles com uma força absoluta. O representante dessa força é o Estado, que não fica de fora como se fosse um terceiro que garante as regras, mas é o poder soberano que constitui todos os participantes como sujeitos.
De acordo com a teoria liberal, a propriedade privada é enraizada na necessidade racional e o Estado chega post festum, logicamente se não historicamente, para proteger seu bom funcionamento como sistema. Segundo a teoria da abstração, a propriedade privada é abstraída de toda racionalidade, e é enraizada na força. O Estado não é uma salvaguarda de segunda ordem da propriedade absoluta depois de ele ter se derivado racionalmente dela, mas a força universal que é parte indispensável dela.
Apesar de ser a força geral ou universal na sociedade, o Estado permanece uma força especial, visto que ele é apenas uma parte dela. As consequências disso e as tentativas de resolvê-las se tornaram o assunto central da teoria política. Rousseau, que se recusou a se contentar com as banalidades constitucionais do liberalismo, buscou uma resolução no conceito de uma vontade geral que compeliria todo Estado legitimamente estabelecido a exercer poder racionalmente para a comunidade como um todo. No século XVIII, antes da propriedade ter se intensificado na produção capitalista e quando ainda parecia ter raízes, por mais atenuadas, em um sistema de necessidades, essa vontade ainda era plausível. Mas quando o capitalismo industrial se apoderou da sociedade, realidades mais escabrosas vieram à tona. Assim, Lenin, elaborando a partir da análise do capitalismo de Marx, substituiu a vontade geral de Rousseau com o conceito de Estado de classe – isto é, o Estado como uma força especial na sociedade e que é geral apenas no sentido de que ele exerce poder sobre o todo da sociedade. Visto que o poder (força) é a recíproca das reivindicações de propriedade, e visto que a propriedade privada, por sua vez, é a forma através da qual o trabalho é explorado pelo capital, o Estado por sua própria natureza é um Estado de classe ou capitalista. Nesse ponto, a grande tradição da filosofia política que começou com Maquiavel alcançou sua conclusão – e mais nenhum avanço significativo foi feito na teoria do Estado desde então. [3] O objetivo dessa tradição foi descobrir a anatomia do Estado, e o que fornece a continuidade temática ao longo de seu desenvolvimento é a tentativa de produzir uma teoria unitária do Estado em termos de propriedade privada e contrato.
No final do século XIX, o Estado entrou em uma nova fase histórica a medida que sua administração foi elaborada em um grau historicamente sem precedentes. Começando na Grã Bretanha na década de 1870, inaugurou-se uma fase de construção liberal do Estado em que o Estado não mais parecia uma força distante, mas intimamente amarrado à sociedade. No século XX, especialmente no período desde a segunda guerra mundial, esse processo continuou de um modo patológico, de maneira que o Estado agora infunde cada sujeito, que, além de ser um cidadão, também é um administré. À primeira vista, a teoria tradicional, que sempre teve a forma de uma investigação filosófica sobre o Estado, parece incapaz de lidar com seu desenvolvimento. Esta presunção é fundamental para o projeto modernista, que tratou esse desenvolvimento em seus próprios termos e meramente reproduziu sua complexidade sem explicá-lo. O modernismo pode ser rejeitado em termos estéticos; ele também pode ser questionado filosoficamente, mas a sua rejeição definitiva é a demonstração de que o desenvolvimento do Estado desde os anos 1870 pode ser plenamente explicado nos termos daquela tradição, mostrando que ele é a história natural da abstração.

NOTA:
[3] Nota dos tradutores: aqui o autor parece desconhecer as contribuições, desde os anos 1920, dos comunistas de conselhos, da esquerda comunista italiana, da Internacional Situacionista e de inúmeras tendências comunistas. Antes mesmo disso, os anarquistas comunistas já tinham desenvolvido a crítica radical do Estado como Estado de classe, embora desde então eles tenderam a congelar em ideologia sua teoria, tornada quase um culto às personalidades e iconografia do anarquismo do século XIX ou da revolução espanhola. Por outro lado, a teoria anti-estatal de Lenin (em “O Estado e a Revolução”) se mostrou só mais uma ideologia diante da prática dos bolcheviques e leninistas, que se esforçaram por reproduzir a exploração sob um capitalismo nacionalizado sob pretexto de “regime de transição”.




ABUNDÂNCIA
Para que o estudo da sociedade política não seja uma odisseia através de uma sala de espelhos, é necessário um ponto de referência externo para uma perspectiva histórica. Antes da revolução francesa, os filósofos políticos orientavam suas investigações partindo de um estado natural, no qual, acreditava-se, os homens teriam a posse de direitos em virtude de sua humanidade. Os direitos formais da sociedade política então poderiam ser adjudicados nos termos desses direitos naturais que forneceriam os critérios da razão para julgar a validade do estado político como expoente da vontade geral. No século XIX, com a intensificação da propriedade privada, a razão iluminista perde seu encanto, a medida que se torna claro que não havia nenhuma condição na qual o Estado poderia exprimir a vontade geral da sociedade, visto que ele era por natureza uma força especial ou Estado de classe. Sob o regime do capitalismo industrial, as deficiências do direito natural foram expostas e seu caráter assumidamente conjectural o tornou inadequado para a crítica histórica concreta. Além disso, dado que o estado natural foi construído a partir dos elementos da propriedade privada, o seu uso como ponto de partida da crítica envolvia uma circularidade fatal do pensamento. O capitalismo industrial só podia ser criticado nos termos da propriedade privada, isto é, em seus próprios termos, já que ele não era nada mais do que a propriedade privada, embora intensificada. Qualquer crítico que empregasse suas categorias não poderia ver além das formas fundamentais da nova ordem, e a única alternativa que ele poderia oferecer às misérias da propriedade intensificada era a regressão à ficção da produção simples de mercadorias, na qual a separação entre necessidades e capacidades, que estabelece a força de trabalho como uma mercadoria, era simplesmente omitida. Diante das rudes realidades da propriedade intensificada, a razão não-regenerada definhou em utopismo romântico, que visa restaurar a unidade do trabalho como fato original da natureza traduzido pela história política.
O colapso da razão absoluta derivada de um estado de natureza conjecturado não removeu a necessidade de crítica histórica, mas estipulou novos termos para ela. A crítica:
(1) precisava fornecer a base para uma história real do capitalismo;
(2) precisava evitar a circularidade do pensamento que conduz à nostalgia, ela não poderia mais ser derivada da propriedade simples, e
(3) precisava oferecer uma alternativa real ao presente em termos de necessidades e capacidades tal como estavam realmente se desenvolvendo.
No Manifesto comunista (1848), Marx e Engels desenvolveram uma crítica da sociedade capitalista que preenchia estas condições, e, desde então, o estado de abundância superou o de natureza como o ponto de partida da análise política genuína.
A abundância, ou comunismo, não é fartura infantil – a replicação de produtos para a gratificação imediata de sujeitos desejantes -, já que ela dissolve os sujeitos formais e a contingência do desejo. Também não é uma racionalização empírica dos recursos contra a destruição e o desperdício. Sua possibilidade é diretamente estruturada nas capacidades produtivas, que portanto não são meios a serem dispostos de acordo com fins exteriores. Em outras palavras, a abundância não pode ser alcançada mediante um plano que busca reconciliar meios e fins, pois um plano reteria a separação formal entre necessidades e capacidades. A racionalização planejada da produção capitalista por meio da razão formal não é uma alternativa. E nem é prática: pois enquanto as necessidades forem formalmente separadas das capacidades, a lei do valor subjuga todos os esforços de racionalização, e, como nos eventos recentes no leste, oeste e sul tornam claro, subverte inclusive a possibilidade de fartura infantil. A abundância está além do “estreito horizonte do direito”, nela, as formas da propriedade privada não mais existem e a capacidade humana de trabalhar não mais é uma mercadoria. O trabalho social necessário para a provisão da subsistência retém um elemento de formalidade (planejamento) para alocar meios aos fins; mas os termos nos quais o produto social é disponibilizado são dissociados disso, e nada fica entre o indivíduo e suas condições de vida. Ao mesmo tempo, esse remanescente de formalidade é comprimido pelo vasto crescimento das capacidades produtivas – o desenvolvimento da produção automática – que reduz o trabalho necessário ao mínimo. O trabalho não-necessário não é mais incorporado em um sobre-produto, mas se torna atividade livre. A atividade livre é necessidade e capacidade ao mesmo tempo – a unidade imediata do trabalho.

Em contraste com o estado de natureza, que é conjecturado a partir dos elementos da sociedade política projetados em um vácuo a-histórico, o estado de abundância tem uma procedência. Nem a sua distância como possibilidade prática e nem a sua completude como solução para a política tornam seu conceito idealista. Ele é a possibilidade da sociedade política cujo desenvolvimento forneceu seus materiais históricos – as capacidades e necessidades universais do trabalho, que atualmente existem negativamente como armas de destruição em massa e população excedente relativa (subdesenvolvimento). O estado de abundância não é deduzido como um devaneio utópico a partir de especulações sobre a natureza humana: a possibilidade de uma unidade direta das necessidades e capacidades surge exclusivamente de sua separação formal na sociedade política. Além disso, ele não é apenas uma possibilidade dada pela determinação da força de trabalho como mercadoria, mas uma necessidade; ele é a necessária, embora não inevitável, resolução da [contradição entre] riqueza subjetiva e miséria objetiva. Daí que a abundância não é a base da sociedade política do mesmo modo como o estado de natureza era pensado que fosse, mas sua própria possibilidade futura projetando suas sombras para trás e, ao mesmo tempo, puxando a história para adiante.

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