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quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Contra a metafísica da escassez, copiosidade prática

(English version)

O texto Propriedade privada, escassez e democracia suscitou por toda parte a seguinte objeção:
Cornucópia

"A abundância (superação da escassez) é impossível, uma vez que vivemos em um universo com recursos limitados, não só econômica mas fisicamente;  portanto superar a escassez é uma exigência metafísica, absurda, que necessitaria uma automatização total do universo infinito para entregar à cada indivíduo, elevado ao status de um deus, a realização de seus menores caprichos e arbitrariedades."

Essa objeção interpreta “abundância” como uma categoria metafísica, solipsista, teogônica e psicototalitária. É como falar em “liberdade” abstraindo das relações materiais, sociais e históricas específicas, tomando “liberdade” como uma entidade que existisse em um mundo transcendente e identificando-a no nosso mundo com nonsenses, impossibilidades e aporias, como se na prática ela fosse sempre um nome para disfarçar a escravidão (a conclusão logicamente é o realismo: os escravos devem buscar a liberdade continuando a obedecer ao senhor, porque liberdade só não é um nonsense em um universo metafísico que não tem nada a ver com o da escravidão). 

Mas assim como liberdade, escassez e abundância – fora dos devaneios metafísicos – são coisas radicalmente concretas. 

Pois vejamos: se tu e mais alguém necessitam de algo específico, e há o suficiente para vós todos, então há abundância. Se não há o suficiente, há escassez. Abundância e escassez são sempre de algo específico, material, e não universais metafísicos.


Mas o que importa não são coisas encontradas já prontas, pois não se trata de automatizar por automatizar a produção (afinal, produção nada mais é do que criatividade, expressão humana multilateral no mundo - poética, racional, lúdica, culinária, apaixonada, matemática, artística, paisagística etc etc), mas sim de abolir o trabalho, ou seja, acabar com toda e qualquer atividade que é tão repulsiva, irritante e maçante que ninguém cogita em executá-la exceto em troca de recompensas (salário, cargo, "mérito"...) e sob ameaça de punições (demissão, prisão...), isto é, sob o poder de uma classe dominante (seja ela burguesa, como o empresariado particular nos EUA e Brasil, ou burocrática, como o empresariado estatizado em Cuba e URSS). 


Assim, por exemplo, em um mundo libertário (em que as forças produtivas mundiais deixaram de ser propriedade privada, sendo gratuitamente acessíveis a qualquer um no mundo que deseje se associar autonomamente com quem quiser para buscar satisfazer seus desejos, necessidades, paixões, projetos etc), há gente que deseja algo específico, algo que talvez nem mesmo existe ainda. Eles fazem uma proposta para o mundo (coisa hoje mais do que nunca factível com  telecomunicaçõestecnologia da informaçãointernet...). No mundo, a proposta pode (ou não) despertar em outros o desejo de contribuir para realizá-la, dispondo-se para isso conforme as atividades produtivas às quais são apaixonados (e não por medo nem chantagem, como na sociedade de classes e, em especial, na tirania chamada empresa, seja estatal ou particular). Eles se comunicam e coordenam suas atividades para transportar de várias partes do mundo os materiais necessários, produzir e distribuir essa produção aos que necessitam (tudo isso é hoje muito simples: supply chains).

A produção resultante pode ou não ser suficiente para todos os que a necessitam. Se é suficiente, não há o que discutir: ela é desfrutada livremente, gratuitamente, sem complicações. Mas se não é suficiente, surge a complicada questão da “justiça”: quem tem prioridade? 

[Nota: na sociedade capitalista isso não é uma questão: nela, tem prioridade quem tiver mais dinheiro para pagar. Ou seja, quem mais tiver comando sobre as capacidades criativas alienadas (vendidas) da população, que o endinheirado (capitalista) tiraniza para que trabalhe o mais gratuitamente possível (sobretrabalho: máximo de tempo, na máxima intensidade e pelo mínimo salário possível) para gerar o máximo de lucros para ele (mais-valia). Essa população é o proletariado, a classe daqueles que, privados de toda propriedade das condições de existir por si mesmo (graças à propriedade privada, mantida pelo Estado, concentração da violência armada da classe proprietária), se veem forçados, pela simples necessidade de sobreviver, a vender a única coisa que ainda possuem - a sua vida, oferecendo no mercado de trabalho como objeto de consumo as suas próprias capacidades humanas (força de trabalho) para fazer tudo o que o comprador (a classe proprietária) mandar. Trabalho: a troca da vida pela sobrevivência. Mas deixemos um pouco de falar da tirania atual para voltar a falar de um mundo verdadeiramente libertário, isto é, comunista.]

Como a justiça também não é uma forma platônica eterna sobrenatural que bastaria trazer pronta de um reino metafísico para aplicá-la aqui, não há nenhuma maneira de resolver a questão senão com uma democracia material em que os envolvidos decidam por si mesmos um critério do que é justo e também para evitar que alguns monopolizem o que for escasso para forçar outros, mediante ameaças e promessas baseadas na privação dos outros desse escasso (fazendo reaparecer a propriedade privada), a trabalhar para eles (ou seja, comprar deles) e restabelecer a sociedade de classes. 

Então é necessário aos envolvidos votar para decidir algum critério considerado mais justo sobre o que fazer com algo escasso: sorteio, repartição igualitáriadistribuição conforme os mais necessitados, ou conforme a participação em alguma atividade específica vista como necessária por todos, ou mesmo armazenar para suportar algum período de dificuldade... (nota: a tecnologia da informação já existente, torna facílimo disponibilizar mundialmente aos envolvidos meios de votar e debater)

O ideal, claro, é que a escassez de cada produção seja superada, isto é, que haja o suficiente para todos que necessitam dela e que não seja necessária essa complicação democrática entre produção e desfrute. Provavelmente, como ninguém quer passar necessidade (e como as complicações que o escasso envolve são chatíssimas), haverá sempre propostas para que a escassez de cada produção seja superada, e aqueles em todo o mundo que são apaixonados por meios de produção, ciência, máquinas, informática, robótica, meios de comunicação etc podem ser atraídos pela proposta, ajudando a criar e desenvolver materialmente as condições para isso. 

A questão de não destruir o ambiente natural em que vivemos só pode ser levantada e assumida pelos próprios envolvidos, a partir do que considerarem (mediante conhecimento, ciência, ética, técnica etc) necessário fazer e capacitados para fazer. Porque não existe nenhum ponto referencial "superior" (como a fantasia mitológica/teológica de uma providência chamada "natureza", "gaia") fora das necessidades e capacidades dos próprios seres humanos para eles mesmos decidirem suas vidas e suas ações.

Apesar do que parece, este assunto não é especulação futurista, mas uma necessidade do proletariado de hoje em todo o mundo. Porque seus velhos métodos de luta (greves, manifestações, ocupações etc) estão mais do que domesticados pelos empresários e burocratas. Estes perdem cada vez mais o medo da revolução social e portanto já estão há 30 anos retirando todos os "direitos democráticos" que Estados e empresas foram forçados a adotar para evitar o comunismo e a anarquia durante os 50 anos anteriores (dos anos 1920 aos 1970). 


Por isso, essa perspectiva é uma necessidade prática aqui e agora: "a superação da greve por uma tática de continuar a produção, mas como produção livre (gratuita) para e pela população, suprimindo a divisão emprego/desemprego nesse momento (abolição da empresa). Começando primeiro numa cidade, a difusão dessa experiência será tão apaixonante (incontível), que rapidamente, em um ou dois dias, se difundirá pelas principais metrópoles do mundo. O mapeamento da interconexão dos fluxos e estoques da produção mundial, cada vez mais completo, vai permitindo à população descobrir quais produções não servem para ela, desativando-as, e modificando outras. Os governos e as forças repressivas não tiveram tempo para estudar e coordenar um ataque e nem há mais condições para isso, pois a produção que sustenta essa condições está nas mãos da população. Os soldados, fraternizando, dão as armas para a população e se juntam a ela. Os que resistem tem suas condições de existências cortadas até que se rendam. Em menos de uma semana, o mundo inteiro estará sob o modo de produção associado, o comunismo. Senão, quanto mais a difusão global se retarda, chegando a apenas uma parte do mundo, a medida que os estoques vão acabando, mais insustentável (materialmente falando e em termos de repressão) se torna o modo de produção comunista. Pois mais se é privado dos materiais que a outra parte do mundo ainda não transformado possui como propriedade privada (estatal ou particular), forçado-a a trocar (comprar/vender) com ela para repor os estoques. Ou seja, é forçada, para comprar dela, a trabalhar para ela - e a reproduzir internamente o mesmo modo de produção capitalista, havendo o risco de o comunismo se tornar mera cobertura ideológica de uma nova variedade de exploração capitalista." (Breve crítica à ideia de economia paralela anticapitalista)

humanaesfera, janeiro de 2016



Bibliografia (com links):
-A reprodução da vida quotidiana, por Fredy Perlman
-Eclipse e Reemergência do Movimento Comunista (1972), por Jean Barrot e François Martin
-Dois textos contra o trabalho (1979 e 1982), por GCI
-Agora e Depois: O ABC do comunismo libertário (1929), por Alexander Berkman
-Le Humanisphère (1857), por Joseph Déjacque
-Nova Babilônia (1959-74), por Constant Nieuwenhuys (publicado no Dossiê "Constant", revista Sinal de Menos nº 5)
-Red Star (1908), por Alexander Bogdanov
-Um Mundo sem Dinheiro: o Comunismo (1975-76), por Os Amigos dos 4 Milhões de Jovens Trabalhadores
-Questionário (1964), por Internacional Situacionista (dossiê Internacional Situacionista)
-Crise e Autogestão (1973), por Négation
-A rede de lutas na Itália ( anos 1970), por Romano Alquati
-Kropotkin: Textos Escolhidos - org.: Mauricio Tragtenberg
-Grundrisse, A Ideologia Alemã (capítulo: Feuerbach) e Comentários sobre James Mill, por Karl Marx
-Marx comunista individualista! (trechos sobre o indivíduo em Marx)
-O Anti-Édipo, por Deleuze e Guattari



[Para uma resposta filosófica aos que insistem na metafísica da escassez, clique aqui para ver o texto DISSECANDO A METAFÍSICA DA ESCASSEZ]





Continuação das reflexões deste texto: 


quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Abolição do trabalho e a questão do circuito produtivo global no comunismo



Traduzimos alguns trechos extraídos da intervenção de Libcom no debate "Parecon or libertarian communism?" ("Economia participativa ou comunismo libertário?"):

A ABOLIÇÃO DO TRABALHO

"Ao invés de generalizar o trabalho para medir ´com justiça´ o esforço feito na sociedade como um todo e pagar proporcionalmente, nós buscamos o movimento oposto: generalizar a atividade humana que vale por si mesma, negando a necessidade de incentivos ou sanções, negando o sistema salarial."

"Essa generalização da atividade além da medida é o que chamamos de abolição do trabalho e da economia como uma esfera separada da vida social. A objetivo é eliminar o trabalho como uma categoria separada de atividade humana, fazendo a atividade produtiva ser satisfatória por si só. Assim, por exemplo, poderemos usar a tecnologia não apenas para aumentar a produtividade, mas também para reduzir o esforço, o tempo de trabalho, etc., porque a produção será um assunto  social, e atenderá diretamente e de forma transparente as necessidades sociais. O objetivo é a abolição do trabalho, não a sua democratização."

"Além disso, uma sociedade que [como a economia participativa] faz da recompensa do esforço e do sacrifício um princípio fundacional não oferece nenhum incentivo para reduzir o esforço e o sacrifício. Assim como hoje, os trabalhadores buscariam esconder as inovações que reduzem o trabalho, a fim de maximizar suas recompensas (dado que eles perderiam se revelassem ter descoberto um modo de fazer as mesmas tarefas com menos esforço). Por exemplo, se eu fizesse X tarefas  e ela me desse Y créditos para sobreviver, eu não gostaria de ver a queda no meu padrão de vida simplesmente porque eu (ou outra pessoa) inventei uma nova forma de fazer a tarefa mais facilmente. Em contraste, sem salário, veríamos a redução do esforço e do sacrifício, junto com a sustentabilidade ecológica, se tornarem as forças motrizes do desenvolvimento sob o comunismo libertário (ou seja, manifestações concretas de 'necessidade' na máxima ´de cada um conforme as suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades')."

"A remuneração pelo esforço e sacrifício incentiva a mentir e enganar, já que os indivíduos podem se beneficiar tanto por meios sujos quanto como honestos. As possíveis soluções para isso (teste mandatório etc) apenas criaria uma outra camada desnecessária de tarefas tecnocráticas,  mais preocupada em monitorar os trabalhadores do que em satisfazer as necessidades humanas".


O CIRCUITO PRODUTIVO GLOBAL NO COMUNISMO

"Em contraste [com a ideia de planificação central], propomos a "produção por empuxo" ["pull production", que contrasta com a "push production", "produção por empurro"], que significa produção  em resposta ao consumo; a medida que os estoques vão sendo consumidos, isso sinaliza automaticamente a produção para reabastecê-los, 'puxando' bens através da rede logística [supply chain]. Como se percebe, não se trata da mão invisível do mercado, até porque não há dinheiro, preços e nem troca. Nossa crítica ao planejamento central não é apenas que  ele exclui a maioria de elaborar o plano (embora essa crítica seja correta, ela é limitada), mas que a própria ideia de planificar centralmente metas (cotas) para algo tão dinâmico como uma sociedade de bilhões é fundamentalmente falho, tanto em termos práticos como epistemologicamente.

Consequentemente, vemos o planejamento social racional ocorrendo pela definição da prioridade de setores e bens/serviços, desde os essenciais até o luxo. Os volumes exatos de produção  são, então, determinados localmente em resposta ao consumo, com  a alocação de recursos determinada pela prioridade relativa das indústrias, produtos e serviços em questão. Desse modo, a macro-ordem em termos de volumes reais de produção é emergente e não planificada, embora possa surgir de acordo com as prioridades do plano decidido socialmente (ao contrário da ordem emergente dos mercados, que simplesmente reflete o poder de compra e o que é lucrativo produzir, ao invés do que é necessário, ou a ordem emergente da evolução biológica, que reflete nada mais do que aptidão reprodutiva).


Os meios pelos quais nós pensamos que este processo de planejamento social deve acontecer é através de estruturas de conselhos, por delegados com mandatos revogáveis ou rotativos definidos em assembleias para tratar das decisões de alocação de recursos de acordo com as prioridades do plano social. Pode haver outras maneiras de fazer isso incorporando tecnologia (como por exemplo, qualquer pessoa ser capaz de acessar um banco de dados para atualizar suas preferências individuais, atualizando automaticamente o plano social). No entanto, uma tal base de dados em larga escala seria sem precedentes, e em qualquer caso, há provavelmente benefícios em ter discussões cara-a-cara em conselhos, em vez de escolhas individuais atomizadas. Nós estamos de mente aberta para meios melhores, mas uma estrutura de conselhos parece um bom ponto de partida."



Continuação das reflexões deste texto: 

 Fundamentação teórica: 
Propriedade privada, escassez e democracia 

 Perspectiva prática: 




quinta-feira, 30 de julho de 2015

Condições de existência universalmente interconectadas/interdependentes

(English translation here)


O site The Observatory of Economic Complexity permite ter uma noção de como nossas condições de existência - ou seja, as condições materiais de nossa vida, desde medicamentos, alimentos, até smartphones -  são interligadas e interdependentes em escala mundial.  O site evidencia que é uma total fantasia a ideia de auto-suficiência doméstica, comunitária, municipal ou nacional, porque as condições de nossa existência, mesmo no nível atual (que é muito melhor do que no passado, apesar da pobreza ainda para a maioria), pressupõem em todo o lugar a combinação de materiais e produtos de várias cidades, países, continentes... 

Essa simples constatação torna claro que defender "identidades", "nações", "etnias", "comunidades", "países", "autarquias", "territórios autônomos" e "zonas autogeridas" é o mesmo que reivindicar o estabelecimento de novas propriedades privadas e, consequentemente, de novos capitais e novos Estados. Eis o porquê:

1) para sobreviver, cada uma dessas "autarquias" precisará adquirir os materiais e produtos de que é privada; 

2) sendo privada desses materiais e produtos (isto é, é uma propriedade privada), terá necessidade de comprá-los;

3) mas para comprar, é preciso vender - vender alguma coisa (troca, tanto faz se por escambo, dinheiro etc);

4) vender coisas requer encontrar compradores, ou seja, concorrer no mercado por "sucesso"  - sucesso que nada mais é do que derrubar os concorrentes para alcançar o máximo de monopólio;

5) para concorrer no mercado é necessário impor, dentro da propriedade privada, que se trabalhe  jornadas e intensidades no mínimo tão brutais quanto os concorrentes (geralmente concorrentes com um grau muito maior de automação da produção), para que seus produtos tenham um preço e/ou qualidade "concorríveis";

6) impor tais  jornadas e intensidades de trabalho exige uma hierarquia, para aplicar punições e recompensas aos trabalhadores a fim de que essas "metas" sejam alcançadas por eles. Ou seja, serão obrigados a recriar na prática algo que tem a exata função de capitalista, para poder sobreviver e não falir (mesmo que essa função de capitalista seja uma comissão "livremente" escolhida em assembleias e em  autogestão);

7) e se a propriedade privada "autárquica" tiver enfim "alcançado sucesso" - monopolizando o mercado - a jornada e intensidade de trabalho até poderão ser relaxadas no interior dessa propriedade, porque a pressão da concorrência acabou. Porém, isso significa meramente que ela é um parasita sustentado pelo trabalho dos demais proletários do mundo, que são forçados a trabalhar para ela (direta ou indiretamente), única maneira de comprar esses produtos, monopolizados por ela.


Conclusão: tudo isso demonstra que é imprescindível uma perspectiva internacionalista (anti-nacionalista e anti-comunitarista). Lutar por nossa liberdade e autonomia é lutar por expandir as capacidades humanas de pensar, desejar e agir - jamais lutar por reduzi-las e limitá-las. 

Os produtos, luxos, tecnologias e facilidades que a burguesia costuma atribuir ao "capitalismo", ao "mercado", ao "Estado", à "propriedade" e ao "seu trabalho", são na verdade frutos das capacidades humanas, isto é, de nossas capacidades, da humanidade. Ao abolir a propriedade privada das nossas condições de existência universalmente (planetariamente) interconectadas e interdependentes, superando a troca e a economia, transformaremos essa interconexão em condições práticas (meios de produção) universalmente e livremente acessíveis a qualquer um no mundo que queira satisfazer por si mesmo (ou com quem mais quiser) suas inclinações, desejos, projetos, necessidades, pensamentos, paixões.  A verdadeira liberdade e autonomia pressupõem o comunismo, isto é, o fim da propriedade privada e o estabelecimento da verdadeira propriedade, que é a propriedade comum humana, pelos indivíduos livremente associados, sobre as condições materiais universalmente acessíveis de sua livre auto-realização, satisfação, e expressão, a comunidade humana mundial. 

Para este fim, é útil estudar essas interdependências e interconexões mundiais: como as coisas são hoje produzidas, armazenadas e transportadas pelo mundo e o fluxo informacional que coordena tudo isso? Por exemplo as "supply chains" (redes logísticas). Também é útil conhecer e atualizar as obras que foram fundo nessa perspectiva: por exemplo, as utopias de Joseph Déjacque (Humanisfera), Alexander Bogdanov (Estrela Vermelha), Constant Nieuwenhuys (Nova Babilônia), as obras de Jean Barrot (Gilles Dauvé), Piotr Kropotkin, da Internacional Situacionista, dos autonomistas (autonomia operária) sobre os fluxos materiais que constituem a composição de classe, etc.

humanaesfera, julho de 2015


Textos relacionados:




Continuação das reflexões deste texto: 

 Fundamentação teórica: 
Propriedade privada, escassez e democracia

 Perspectiva prática: 


domingo, 24 de março de 2013

A logística e a fábrica sem muros


por Brian Ashton  (2006)
(Apresentação   do estudo Logistics and The Factory Without Walls.  Tradução por Humanaesfera)

  

 A Tecnologia da Informação (TI) permite ao capital coordenar a produção de mercadorias como nunca antes. É uma aparente contradição: a produção está fragmentada por todo o mundo, e as partes, fabricadas aqui e ali, são transportadas por milhares de quilômetros para serem montadas, mas esse processo produz mais mercadorias do que nunca. O capital renovou-se mais uma vez, e, no processo, deixou a esquerda em crise. Enquanto os intelectuais falam em trabalho imaterial e precariedade, o capital se ocupa em dar os últimos retoques a seu novo sistema de produção. Ao mesmo tempo, porém, ele está criando um sistema de comunicação que capacita os trabalhadores  a interagir entre si para além das fronteiras nacionais e continentes. Quase todo trabalhador é hoje um trabalhador de TI, e é a potencialidade que surge disso que coloca o capital sob a maior ameaça. Não se trata de saber se o trabalho é imaterial ou material. Os intelectuais deveriam parar de criar hierarquias de trabalhadores, como operário massa e operário social, trabalhador imaterial e precariado. Seria melhor se buscassem uma compreensão adequada de como a cadeia de suprimentos - que alguns capitalistas chamam de empresa virtual - funciona hoje. Conheça o seu inimigo, aconselha Sun Tzu em A Arte da Guerra.

Uma equipe de pesquisadores da Escola de Negócios de Cardiff [Cardiff Business School] estudou a cadeia de ações necessária para fazer uma lata de coca-cola. Todo o processo, começando na mina de bauxita na Austrália e terminando com a lata na geladeira de alguém, levou nada menos do que 319 dias. Desse tempo, apenas três horas foram gastas na fabricação, e todo o restante no transporte e armazenamento. Um anúncio da companhia de navegação P&O Nedlloyd afirma que a jornada de um único contêiner pode envolver literalmente uma centena de pessoas. Isso abrange desde gente que faz o carregamento dos contêineres até o pessoal de TI, passando pelos planejadores de logística e os estivadores, os motoristas e os trabalhadores do armazém, o funcionário da alfândega e o capitão do navio. Tudo isso põe em destaque tempo e trabalho. O controle desses dois fatores é a principal preocupação dos encarregados do gerenciamento das cadeias de suprimentos (também chamadas cadeia de fornecimento, cadeia de abastecimento, cadeia logística, rede logística,  supply chain).

Conforme explica o referido estudo da Escola de Negócios de Cardiff, a logística é um fator determinante na cadeia de suprimentos. Segundo o Conselho de Gerenciamento Logístico [Council of Logistics Management], a logística é:  o processo de planejar, implementar e controlar o eficiente e eficaz fluxo e estoque de matérias-primas, inventário de processo, produtos finais, desde a extração/produção até o ponto de consumo.

Nos últimos vinte anos, houve uma revolução na área da logística, uma revolução que parece ter passado despercebida pela esquerda autônoma. Essa reviravolta decorre da aplicação de tecnologia à mundialização da produção de mercadorias. Ou, como disse Marx:


"Uma mudança radical no modo de produção em uma esfera da indústria envolve uma mudança correspondente  em outras esferas. Isto ocorre  antes de tudo  naqueles ramos da indústria que, embora isolados pela divisão social do trabalho de modo que cada um deles produz uma mercadoria independente, são, porém, entrelaçados como fases separadas de um mesmos processo global.[...]

Mas sobretudo a revolução nos modos de produção da indústria e da agricultura tornou necessária uma revolução nas condições gerais do processo social de produção, ou seja, nos meios de comunicação e transporte.[...] 

Os meios de comunicação e transporte eram tão intrinsecamente inadequados para os requisitos produtivos do período manufatureiro, com a sua divisão ampliada do trabalho social, sua concentração dos instrumentos de trabalho e operários e seus mercados coloniais, que eles foram de fato revolucionados. [..] E também no período da ´indústria moderna´ os meios de comunicação e transporte herdados do período manufatureiro se tornaram obstáculos." O Capital, vol. 1 (Capítulo: Maquinaria e Grande Industria).

O marxismo autonomista vê a luta dos trabalhadores como o motor do desenvolvimento capitalista. Nos anos 70, o capital começou a atacar os núcleos de poder de classe que alguns chamavam de operário-massa. Ele atacou em três frentes. Buscou quebrar a rigidez imposta à produção pela militância de classe usando a tecnologia para desqualificar os trabalhadores e reconfigurar o layout da fábrica. Passou a deslocar parte da capacidade produtiva para fábricas menores, sub-contratando o trabalho de outras empresas (terceirização). E ele usou o Estado para impor a crise sobre a classe trabalhadora. Ele teve tanto êxito em seu projeto que, desde os anos 80, a classe trabalhadora sofre derrota após derrota. A composição política forjada na batalha foi desmantelada e descartada. Parece, para este velho operário da indústria automobilística que vos fala, que não foi só o capital que nos descartou, mas que um grande número de intelectuais comunistas viraram as costas para nós também. A conseqüência é que agora temos uma geração de anti-capitalistas que não sabe como interagir com a classe trabalhadora. Apesar de estarem rodeados pela classe que eles parecem estar mais interessados, eles vão à selva mexicana, ou preferem ir à Gênova e Seattle e dar à máquina do Estado oportunidades para treinar controle de multidão.

Nos anos 60 e 70 havia uma constante interação entre militantes da classe trabalhadora e a esquerda emergindo das universidades. Nem sempre isso foi positivo, mas onde houve uma sinergia, a teoria e a prática tinham alguma conexão. Aprendemos uns com os outros e coisas ótimas foram produzidas. Aqui na Grã-Bretanha, a obra publicada de Big Flame e Solidarity é prova disso. Na Itália, Potere Operaio e Lotta Continua ajudaram a desenvolver uma compreensão dos pontos fortes e fracos da composição do capital. Hoje, podemos falar de um sistema de produção globalizado, mas quantos de nós pode descrever como ele funciona? Como é que a lata de coca vai de A a Z? Nos anos 70 nós sabíamos como a fábrica e os sistemas de transporte funcionavam e era desse conhecimento que vinha nossa capacidade de combater a capital. Hoje, é certamente difícil entender exatamente como as coisas são feitas, mas é imperativo que ganhemos um conhecimento profundo dos processos de produção e logística, das cadeias de suprimento do capital, ou, dito de outra forma, das fábricas sem muros. Alguns capitalistas vêem a cadeia de fornecimento como uma fábrica virtual e querem que os trabalhadores se remetam à cadeia de fornecimento, ao invés de perceberem-se como empregados das empresas que integram essa cadeia.

A composição da classe trabalhadora vem da luta, mas antes requer que os capitalistas reúnam trabalhadores para impor uma disciplina de produção. No presente período, só podemos entender como a disciplina é imposta mediante uma abordagem global. A composição técnica do capital está difusa por todo o mundo, assim como os trabalhadores da cadeia de suprimento de mercadorias. Sob tal sistema, a disciplina é imposta pela aplicação do kaizen (melhoria contínua) e  da entrega just-in-time combinados com a aplicação de tecnologias da informação para policiar a produtividade dos trabalhadores.

Isso é reforçado pela mudança no modo como as mercadorias são movimentadas pelo sistema. O capital passou de uma economia de empurro [push economy] para uma economia de empuxo [pull economy], em outras palavras, está fazendo as coisas enquanto elas são demandadas, ao invés de fazê-las conforme uma demanda prevista. O lema da economia de empuxo é: "Se não foi vendido, não produza." A economia de empuxo dá às grandes cadeias de supermercados um poder enorme, porque elas controlam a informação que “puxa” as mercadorias através da cadeia de fornecimento. Quando você compra uma lata de feijão no supermercado Asda, a informação é transmitida para todos que estão ao longo da cadeia, para que outra lata de feijão seja produzida. Claro, milhões dessas peças de informação voam pelo ciberespaço a cada instante. Um dos efeitos da economia de empuxo é o aumento do trabalho precário: se a demanda diminuir, demita trabalhadores. As empresas têm programas de computador que calculam o número de trabalhadores necessários para satisfazer uma determinada demanda,  e “puxa” trabalhadores de um reservatório de precariedade, muitas vezes disponibilizado por agências de emprego. E cada vez mais elas terceirizam atividades acessórias subcontratando empresas de serviços;  essa é uma das razões para a rápida proliferação da indústria logística nos últimos anos. A indústria automotiva está indo para o modelo “economia de empuxo”, o que é um dos motivos principais de os operários dessa indústria nos EUA estarem sendo atacados neste momento.

Se as cadeias de suprimento são espalhadas  pelo planeta e os níveis de estoque são reduzidos ao just-in-time, então, para completar o ciclo de acumulação, a aplicação da logística torna-se determinante. Ao mesmo tempo isso aumenta a possibilidade de luta efetiva da classe trabalhadora: quando os caminhoneiros da costa oeste dos EUA, há um ano,  fizeram greve, eles paralisaram as cadeias de fornecimento do Wal-Mart e de outras cadeias gigantes, provocando ondas de pânico em muitas salas de diretoria. A importância da logística não pode ser subestimada - tente imaginar a cadeia de fornecimento de qualquer produto sem o input logístico. A globalização da produção tem deixado muitos trabalhadores acreditando que eles não podem fazer nada sobre isso, e quando as empresas transferem a produção para a China ou a Índia, eles ficam hipnotizados pelas luzes do rolo compressor capitalista que os esmaga, mas esta aparente força do capital multinacional é de fato a sua fraqueza.

Historicamente, os operários da logística eram os mensageiros do pensamento radical e transportadores de notícias das lutas dos trabalhadores. Eles próprios, é claro, se envolveram em muitas batalhas. Nos últimos vinte anos, muitas dessas batalhas foram defensivas, lutas para salvar empregos e manter condições de trabalho. A retirada do Estado na gestão direta do setor de logística foi o catalisador de um ataque global que continua até hoje. O capital privado entrou em peso no ataque aos trabalhadores em toda a indústria. Ao mesmo tempo, estas empresas têm se empenhado num frenesi de fusões e aquisições, que resultaram no surgimento de empresas verdadeiramente mundiais que empregam muitos milhares de trabalhadores.

Pode-se ter uma idéia do tamanho dessas empresas a partir de dois exemplos: a United Parcel Services (UPS) e a Deutsche Post (DP). A UPS é uma empresa de 33,5 bilhões de dólares que opera em 200 países e emprega mais de 340.000 trabalhadores. Ela fornece logística/distribuição de transporte e fretagem, comércio internacional, serviços financeiros, mecanismos de correspondência financeira e serviços de consultoria. Ela cresceu se beneficiando de processos de subcontratação, que são comuns nesse setor, e através da aquisição de outras empresas. Ela faz grandes cartadas: comprou a transportadora Fritz por 450 milhões de dólares. A DP é parcialmente do governo alemão, que detém 41,6 por cento das ações. Estas serão vendidas a investidores institucionais nos próximos anos. A DP opera o serviço postal alemão, é dona da DHL, e no ano passado comprou a Exel, britânica. A própria Exel era uma empresa aquisitiva antes de ser comprada; ela já havia comprado a Tibbett & Britten, a sétima maior empresa de logística do mundo. Isto resultou em uma empresa que emprega mais de 103.000 pessoas. Não sei quantas pessoas trabalham para a DP, mas deve ser da ordem das centenas de milhares.

A fábrica de automóveis Jaguar em Halewood, em Merseyside, talvez possa nos dar uma idéia de como uma cadeia de suprimentos funciona e de como a logística se encaixa na cadeia. Em Halewood, a Ford fabricava o Escort e foi lá que este proletário que vos fala trabalhou por sete longos anos. A fábrica era considerada pela Ford uma pedra no sapato, e a ameaça de fechamento estava sempre pairando sobre ela. A Ford comprou a Jaguar e decidiu fabricar o carro Jaguar em Halewood. Ao mesmo tempo, decidiu alterar radicalmente as práticas de trabalho na fábrica. Ela trouxe uma empresa americana chamada Senn-Delaney para alterar a mentalidade da força de trabalho, e parece ter sido bem sucedida, porque Halewood é agora considerada a melhor fábrica de carros da Europa. Se tentassem isso  nos anos 70, o trabalho dessa empresa teria sido desafiado pela contra-informação da esquerda.

Quando eu trabalhava em Halewood na década de 70, havia 14 mil de nós empregados no local. Hoje a Jaguar emprega cerca de 2.800 pessoas, mas este número é enganoso, porque uma fatia considerável do trabalho foi transferida aos fornecedores que, por sua vez, repassam parte do trabalho para fornecedores menores. Numa cadeia de  suprimento, as empresas são classificados assim: Original Equipment Manufacturer (OEM), ou seja, a Jaguar; fornecedor de primeiro nível [First Tier Supplier], ou seja, a Bosch, os pequenos fornecedores são chamados de segundo nível, terceiro nível, etc. Quem conecta tudo são as empresas de logística. Em Halewood, a UCI Logística, subsidiária da empresa japonesa Nippon Yusen Kaisha (NYK), opera o conjunto logístico. Como fornecedora logística principal, a UCI é responsável pela logística de entrada [inbound logistics] em Halewood, e também pela logística interna da fábrica em si. Nos dias da Ford, a logística interna era realizada pelos próprios trabalhadores da Ford. O serviço de logística de entrada envolve uma operação da cadeia de suprimento,  na coleta de peças, partes e submontagens por toda a Europa,  usando em parte sua própria frota (da UCI Logística) e em parte a de sócias da UCI. O serviço de logística interna envolve descarregamento de peças, o movimento dos componentes para as áreas de armazenamento e sua disponibilização nas linhas de produção sem incorrer em estoques laterais. Também é tarefa da UCI garantir que, nas linhas, nunca um estoque lateral exceda o volume de duas horas estipulado pela Jaguar. São os trabalhadores da UCI que dirigem as empilhadeiras que transferem material por dentro da fábrica de Halewood.

Vejamos a logística de um determinado produto que chega em Halewood, da montagem de rodas e pneus. A UCI movimenta 500.000 montagens por ano em Halewood. O contrato inclui a logística externa para o suprimento de rodas de liga, da Itália para instalações da Pirelli no Reino Unido, e a entrega de montagens completas para Halewood, três vezes por dia, juntamente com a logística interna na fábrica da Jaguar. A UCI seleciona entre 12 tipos diferentes de montagens a partir de instruções automatizadas transmitidas pela Jaguar e entrega o produto no ponto de encaixe na fábrica. O operário massa não foi destruído,  mas reconfigurado.

O capital adquire poder a partir da extração de mais-valia, e a cadeia de suprimentos é a fábrica sem muros onde esse processo ocorre. No passado, os socialistas se organizavam e agitavam em torno dos centros de produção de mercadorias - pensemos na atividade realizada em torno da fábrica da Fiat Mirafiori, em Turim e os esforços de Big Flame em Dagenham e Halewood - mas esse tipo de atividade pode ser feita hoje? Se uma tal agitação ocorrer hoje,  terá de ser em uma escala global, mas há tecnologia para isso. O capital, ao se tornar planetário com suas cadeias de suprimento, está criando a oportunidade para uma luta mundial dos trabalhadores. Para que tenhamos êxito, é preciso conhecer como a composição atual do capital funciona. O artesão e o operário massa sabiam como o sistema produzia mercadorias; precisamos desenvolver esse conhecimento hoje.


(Brian Ashton <t.ashton EM merseymail.com> é ex-operário da indústria automobilista na Inglaterra que desenvolveu um interesse pela indústria logística quando apoiou os estivadores de Liverpool saqueados durante meados dos anos noventa.)

Ver também: 
A rede de lutas na Itália (Romano Alquati, anos 1970)

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