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terça-feira, 17 de janeiro de 2017

A questão da "corrupção" e a vergonha do proletariado de seus próprios interesses humanos

Estamos vivendo uma época de profunda derrota do proletariado. Hoje, os explorados sentem vergonha de seus próprios interesses materiais e, para disfarçá-los, tentam afirmá-los defendendo o interesse do empresariado, do "empreendedorismo", da "competitividade",  que é apresentado a eles como o único "honesto" e "universal", como uma espécie de "imperativo categórico kantiano". Os interesses deles como simples seres humanos de carne e osso lhes causam vergonha porque são considerados por eles próprios como "corrupção", enquanto os interesses mercantis, empresariais, financeiros parecem encarnar liberdade, igualdade, justiça, etc. Por exemplo, vergonha de afirmar claramente que querem uma vida fácil e com tudo de bom sem ter que se submeter aos  "vencedores do mercado", vergonha do interesse de não trabalhar a vida toda e cada vez mais intensamente etc etc. Todos esse desejos, diz-se quase unanimemente, são "corrupção", "jeitinho brasileiro". Para eles, os interesses são sempre corruptos, e os únicos não-corruptos, os "desinteressados", porque respeitam as "regras do jogo", são os "vencedores no mercado", os "empreendedores" etc. 

O que é interessante é que a maior parte do tempo, essa competição declarada pela obediência é "da boca para fora". A maioria está sempre lutando tacitamente para trabalhar o mínimo possível e por fazer ao máximo o que gostam de fazer, contra o mando dos chefes e proprietários. Mas como a confiança uns nos outros é esmagadoramente superada pela confiança em quem paga ou pode pagar os seus salários  (Estado ou empresa), eles evitam falar abertamente de seus interesses uns com os outros (que veem como competidores que ameaçam sua sobrevivência, seu emprego). Desse modo, não conseguem criar uma linguagem que expresse seus interesses humanos, porque tem medo de expressar-los uns aos outros. Eles tem vergonha de seus interesses, que é, como vimos, confundidos com "corrupção". Por exemplo, a maioria se revolta com essas PECs (como a do aumento do tempo da aposentadoria, terceirização etc), porém, como não desenvolvem uma linguagem própria, assumem a linguagem da classe dominante para expressar essa revolta, que então se converte em "revolta na ordem" (aliás, clássica definição de fascismo pelo João Bernardo), uma revolta expressa na linguagem e na forma da classe dominante, a linguagem daqueles que não seriam "corruptos", dos que tem a propriedade privada dos meios de vida e produção, e a quem, na prática cotidiana de guerra de todos contra todos pela sobrevivência, confiam materialmente que, se obedecerem, garantirá sua sobrevivência contra os concorrentes, ao contrário de seus iguais que querem "tomar seu trabalho". Daí a revolta deles se expressa como apelo a uma "força maior" (por exemplo, Trump, Bolsonaro, ou pedidos para que haja chefes que punam e recompensem com mais força e rigor) que resolva todos os problemas através da repressão e matança, para defendê-os contra seus iguais, que são vistos como "inimigos" (tanto os ainda mais pobres quanto estrangeiros, migrantes etc).

Para que os proletários criem uma linguagem autônoma, pode ser útil retomar e aperfeiçoar a ética de Hipócrates, que apresenta uma interessante contraposição ao conceito de "corrupção" incessantemente usado pela classe dominante. Afinal, em seu sentido essencial, corrupção é fazer algo em troca de outro algo (em busca de recompensas e por medo de punições), ao invés de fazê-lo como algo que vale por si só, algo de cuja necessidade, humanidade e ética a atividade de produzi-lo se justifica por si só...

Assim, compartilhamos esse resumo da ética de Hipócrates que encontramos neste blog

"Salvar vidas, a arte da medicina, está acima do poder, do dinheiro e das leis dos reinos em que se passa exercendo a medicina. O verdadeiro significado de corrupção não é quebrar as regras, mas exercer a arte como se não fosse válida por si só, exercendo-a, pelo contrário, por outra coisa alheia, como o dinheiro e as promessas e ameaças de quem tem poder e faz as leis. Se o médico não ama o que faz, ele vai se vender e causará dano, porque seu interesse será ganhar mais, buscando enganar e agradar quem lhe paga; em troca, torna-se escravo de quem tem dinheiro. O médico deve ser livre, autônomo, formando com outros uma comunidade que compartilha livremente as descobertas da medicina, sem se submeter a reinos, cidades ou povos, para servir a humanidade." (Resumo da ética hipocrática baseado nos textos “Acerca da arte”, “Epístolas”, “Preceitos” e outros. Resumo feito a partir de várias fontes, principalmente as contidas no livro "Textos Hipocráticos: o doente, o médico e a doença". Henrique F. Cairus, Wilson A. Ribeiro Jr.)


humanaesfera, janeiro de 2017


Veja também outros textos sobre ética:





quarta-feira, 13 de julho de 2016

Contra a estratégia

[english version]

Não existe nada mais inútil e equivocado do que o ativismo, a militância, a ânsia de “prática”. Existir é agir. Os proletários não são bestas que fazem coisas cegamente ou por instinto. Não há ações sem objetivos, finalidades, desejos... isto é, existir (ou seja, agir) pressupõe e implica teorias, que os proletários criam e aprimoram (ou degradam e dogmatizam) conforme sua capacidade de agir é objetivamente aumentada (ou diminuída). Expliquemos:

A capacidade de agir dos proletários é aumentada quando confiam em si mesmos (internacionalisticamente), não acreditam em "bodes expiatórios", e impõem a satisfação de suas necessidades (que são comunistas: não trabalhar e que tudo seja livre, "free"), opondo-se radicalmente, por este simples ato, à classe dominante (para a qual, obviamente, isto é "opressivo"); quando ataca, portanto, o poder pela dissolução do que o sustenta (a oposição mútua entre proletários em empresas, pátrias, raça, gênero etc, se engalfinhando por seus próprios senhores) mediante um universalismo material (comunismo) que garante o livre acesso a qualquer um aos meios de produção e de vida, a expressão livre e autônoma das capacidades e necessidades humanas, a livre individualidade que se liberta enfim da comparação massificadora, reificante, identitária, da concorrência, propriedade privada, hierarquia, mercado e Estado.

Por outro lado, a capacidade de agir é diminuída quando os proletários desconfiam de si mesmos (a ponto de massacrarem a si próprios a um simples pedido dos chefes e poderosos), clamam ao poder contra "bodes expiatórios" (estrangeiros, "judeus", imigrantes, "vagabundos", “favelados”, “políticos maus”, “empresários maus”), e reprimem seus desejos em nome da ficção de um "bem maior" (pátria, empresa, etnia, ideologia, religião...), isto é, quando se unem às “suas” classes dominantes (burocrática ou particular, de esquerda ou de direita) contra si mesmos. Quanto menos capazes de ação, mais se entregam à reação.

No primeiro caso (aumento da capacidade de agir), a teoria necessariamente se desenvolve e se aprimora, enquanto que no segundo caso (redução da capacidade de agir), a teoria só pode se degradar e se dogmatizar.

Critério do conhecimento e práxis

Os critérios para distinguir mentiras ou boatos de verdades, o especulativo do provável, o que é verdadeiro em certos contextos e falso em outros, o que é baseado em mera fé do que é baseado em evidências etc., esses critérios são expressões intrínsecas do grau de autonomia ou heteronomia do proletariado, de sua autodeterminação ou sua sujeição às classes dominantes. Quanto a isso, há três tipos de crítica da sociedade capitalista:

A) Existe uma crítica da sociedade capitalista cuja verdade pode ser verificada materialmente por qualquer um em seu cotidiano, no mundo inteiro, por qualquer proletário: a crítica do capital enquanto coerção que nos força a nos vender como objetos úteis no mercado de trabalho, que nos coage, se quisermos sobreviver, a alienar nossas capacidades em troca do dinheiro, a exercer nossas potencialidades contra nós mesmos , transformando o mundo em uma força hostil  que se acumula nos privando (propriedade privada) das próprias condições materiais de existir, um poder hostil que nos domina, usa e descarta: o capital e o aparato repressivo que os garante (Estado). Essa é uma crítica da essência do capital, ela é radical, e dela decorre invariavelmente a necessidade irrevogável de abolir o trabalho, a propriedade privada, a empresa, as fronteiras e o Estado, ou seja, realizar o comunismo [1]. Detalhe: não requer nenhuma fé em "fontes especiais de informação".  

B) Existem outras críticas que requerem alguma "fé", como são as críticas parciais do capitalismo (que são basicamente críticas socialdemocratas do capitalismo: distribuição de renda desigual, obsolescência programada, piora das condições de vida, do meio ambiente, capitalistas e burocratas burlando as leis, governos tramando a derrubada de outros...) que nada mais são do que críticas de acidentes do capital, e não de sua essência. Enquanto no caso A, os proletários são plenamente autônomos quanto ao poder de verificar a verdade do seu conhecimento (que exprime a matéria de sua própria vida cotidiana) e de agir conforme o que sabem, no caso B, é preciso confiar em especialistas. Ainda assim, a verossimilhança dessa crítica pode ser pesada na vida cotidiana (por exemplo, verificando pioras de fato nas condições de vida, ou não verificando a obsolescência programada). Mas quanto menos radical e mais parcial a crítica, por ser mais "inacessível", mais requer que a prática dos proletários se submeta a "esferas superiores", e menos exprime uma prática autônoma capaz de se opor ao capital para impor a satisfação das necessidades humanas.

C) E existem críticas do capitalismo que só requerem fé, uma fé baseada totalmente em "fontes especiais de informação", fé aceita com base numa vaga "intuição psicológica" ou no apelo aos sentimentos. Por exemplo, críticas especulativas (as que, por exemplo, profetizam o "colapso inevitável do capitalismo", como a nova "crítica crítica" - Kurz, Postone, Jappe... -, as especulações do aceleracionismo, transhumanismo, etc), o conspiracionismo ("forças ocultas" que estariam tramando o sofrimento e aniquilação dos pobres, do povo ou da natureza) e as críticas identitaristas (as que afirmam uma identidade – de gênero, de raça, de etnia, de nacionalidade, de cultura – contra outras que “representariam o capitalismo”). Em termos práticos, essas críticas requerem a completa submissão, a completa aniquilação da capacidade de pensar e de agir do proletariado, e a assunção como verdade de qualquer boato, qualquer mentira que confirme os preconceitos “intuitivos” (por exemplo, as mentiras paranoicas sobre transgênicos, produtos químicos, vacinas, medicina, ciência, produtos naturais, tecnologia que muitos ecologistas propagam). O exemplo máximo é a própria religião, em que a fé na revelação de uma verdade absoluta oculta requer a total obediência àqueles que dizem ter acesso especial a ela (daí vem a própria palavra “hierarquia”, de hieros, sagrado ou segredo, e arché, fonte, princípio ou ordem).

Composição de classe VERSUS estratégia

Há quem argumente que o caso A, de plena autonomia, é insuficiente, porque é abstrato e filosófico, e que precisamos do caso B, porque é necessário que haja estratégia (por exemplo, “transição”), que seria algo até muito mais fundamental.

Mas falar em estratégia só faz sentido contra uma estratégia do lado oposto, isto é, quando há uma contra-estratégia pressuposta. Não se trata, então, de luta de classes, mas de uma guerra de frentes, que pressupõe um mesmo tabuleiro, uma mesma linguagem, uma mesma lógica compartilhada, na qual se apoiam os dois lados para que seja possível se enfrentarem. Para guerrearem entre si, precisam estar num mesmo plano, apoiar-se numa mesma estrutura, estarem numa mesma altura, falarem de igual para igual. Daí todas as contrarrevoluções em todas as revoluções "vitoriosas" que já existiram, em que as mesmas estruturas (dominação, sociedade de classes, Estado etc) do inimigo são reproduzidas em nome de atacá-lo.

A grande virtude dos proletários é que eles, enquanto classe autônoma, não podem atacar a estrutura no plano da própria estrutura, mas como produto, como produção molecular resultante de sua própria atividade cotidiana simultânea no mundo inteiro. Caso ataquem a estrutura no mesmo plano da estrutura, aceitando se submeter a uma estratégia, eles são condenados a reproduzir sua própria sujeição sob a mesma ou alguma nova classe dominante, pois seu campo de atuação, a atividade cotidiana simultânea universal, é condenado a permanecer inalterado (trabalho, auto-sacrifício, sujeição...) para efetivar a própria estratégia, reproduzindo automaticamente, apenas com novos nomes, as mesmas estruturas que resultam necessariamente da atividade cotidiana alienada.

Em contraste com a ideologia da estratégia, os proletários não podem contar senão com a sua própria capacidade autônoma de agir e pensar, impulsionada pela rápida difusão de sua luta em escala mundial. Nesse mesmo ato, eles comunicam mundialmente uns com os outros o conhecimento do modo como suas atividades cotidianas simultâneas se interligam (por exemplo, conforme o local em que estão, as supply chains, as relações entre indústria, agricultura e as vias materiais de livre expressão das necessidades, desejos, pensamentos e capacidades dos habitantes e viajantes do mundo,  etc ) [2], conhecimento que é simultâneo à supressão em ato das condições de existência materiais (moleculares) da propriedade privada, do capital e do Estado e à criação de uma nova sociedade  em que os meios de vida e de produção, indissoluvelmente interconectados em escala mundial em uma rede de fluxos imanentes, se tornam livremente (gratuitamente) acessíveis à qualquer um que queira satisfazer suas necessidades, desejos, pensamentos, projetos, paixões, e desenvolver livremente suas habilidades, capacidades e potencialidades.

Um evento assim, que desabilita pela base o poder da classe dominante (empresários,  burocratas e o Estados), tem desde o princípio uma linguagem incompreensível e “inconversável” com a classe dominante e o Estado, sendo de fato uma ditadura contra eles - a verdadeira ditadura do proletariado. A classe dominante sequer tem tempo para começar a entender o que está sofrendo para elaborar uma estratégia antes de o proletariado ter se auto-abolido e, portanto, abolido a classe dominante, a sociedade de classes. Muito diferente disso, o ativismo ou militância se caracteriza por se exibir espetacularmente à classe dominante como “oposição”. Obviamente, as armas da classe dominante, o Estado, os grupos de extermínio etc são infinitamente mais poderosos e aprimorados do que qualquer “movimento estratégico de oposição” [3], que, consequentemente, não passa de espetáculo, só útil para a classe dominante ensaiar seus cães de guarda e métodos de controle, que, encenando, legitima o próprio status quo como "democrático". E quando não é encenação, um “movimento estratégico de oposição” é apenas a reprodução da estrutura à qual procura se opor, como vimos nos parágrafos anteriores.

É óbvio que, quanto mais reduzida a capacidade de agir do proletariado, menos ele consegue se dar ao luxo de pensar por si mesmo, e mais só lhe resta ser objeto de estratégias, de burocratas, empresários e políticos que dizem pensar e agir pelo seu “bem”, prometendo, por exemplo, reformas, melhorias etc. Assim, dizem que devemos ser realistas, que o proletariado deve fazer o possível, votando, participando em campanhas, militando, “se esforçando mais”, "se sacrificando com mais empenho" etc, em suma, participando de estratégias. Isso é um equívoco. Porque, se não há luta autônoma, é pura sorte, além de extremamente improvável, que ocorra qualquer das melhoras prometidas; e se há luta autônoma, não faz sentido deixar-se reduzir a objeto de estratégias. O efeito colateral imediato da luta autônoma é que todos os burocratas, empresários e políticos, para conter a emergência do proletariado enquanto classe, passam enfim a servir as tais “melhorias”, mas, é claro, no mesmo prato da repressão. A questão é a autonomia do proletariado se difundir tão rapidamente em escala mundial que torne impossível que caia mais uma vez nessa armadilha.

Adendo: O fetichismo dos "exemplos práticos"

As revoluções e contrarrevoluções que experimentamos nos últimos 300 anos mostraram que a ideologia mais destrutiva para a luta autônoma mundial é a dos "exemplos práticos". Tão logo se ouve falar sobre uma "revolução" qualquer em algum lugar do mundo, é abandonada toda capacidade crítica e consideração pela verdade, que passam a ser consideradas irrelevantes frente ao "exemplo prático real de como transformar o mundo na realidade". A realidade do exemplo é considerada tão complexa que toda crítica e busca da verdade é descartada como masturbação mental reducionista e utopismo. Abandonada a capacidade de pensar, é aberta a via para o tarefismo supersticioso, destruindo a luta autônoma, seja pela luta imaginária que imita a aparência espetacular do exemplo, seja pela aceitação de se subordinar aos burocratas considerados representantes do exemplo (como quando o leninismo se espalhou no mundo e destruiu a luta autônoma por toda parte graças à "realidade inquestionável  de seu exemplo", 1917 na Rússia). 

Como antídoto, há um critério mínimo certeiro para avaliar todo e qualquer suposto exemplo (como o Curdistão, zapatistas, revolução russa, espanhola etc): se uma suposta revolução não se espalha rapidamente além das fronteiras para o mundo inteiro (com os proletários se opondo a seus opressores em cada vez mais lugares do mundo e se constituindo como classe autônoma sem fronteiras, se recusando a matar nas guerras, voltando as armas contra os generais em todos os lados, comunizando etc),  se a suposta revolução se perpetua apenas num lugar, isso já é suficiente para saber que ali está um Estado e o capital (independente do nome que se use, "autogestão", "socialismo", "comunismo", "anarquismo"...), ou seja, uma sociedade de classes. Pelo simples fato de que, isolados, eles são condenados a se adequar à troca no mercado mundial, acumulando capital e explorando o proletariado para não falir na concorrência internacional, e também porque são condenados a se constituir como Estado para se aliar, se defender ou atacar outros Estados.

humanaesfera, julho de 2016

Notas:
[1] “Não se trata do que este ou aquele proletário, ou até mesmo do que o proletariado inteiro pode imaginar de quando em vez como sua meta. Trata-se do que o proletariado é e do que ele será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ser. Sua meta e sua ação histórica se acham clara e irrevogavelmente predeterminadas por sua própria situação de vida e por toda a organização da sociedade burguesa.” (Marx e Engels, A Sagrada Família – Crítica da Crítica Crítica).

[2] Trata-se da composição de classe. Para mais detalhes, veja: Textos sobre composição de classe.

[3] Em contraste com encenação da “oposição estratégica”, o único modo de suprimir a força repressiva do status quo é por uma emergência tão rápida e generalizada do proletariado autônomo (portanto, do comunismo) que os poderosos não encontrarão sequer por onde começar a reprimir, de modo que os seus cães de guarda repressores deixarão de ver qualquer sentido em continuar obedecendo, deixando de ser cães de guarda, voltando as armas contra os generais e distribuindo as armas para a população, pela simples razão de passarem a ser irrefreável e irreprimivelmente atraídos, como o restante dos explorados, pela emergência apaixonante do comunismo luxuriante generalizado, a comunidade humana mundial.


Bibliografia:


A reprodução da vida cotidiana (Fredy Perlman,, 1969)
Capitalismo e comunismo (Jean Barrot/Gilles Dauvé, 1972)
Leninismo e Ultra-esquerda (Jean barrot & François Martin, 1972)
Origem e função da forma partido (Programma Comunista, 1961)

Outros textos sobre o mesmo tema:

-Ação direta VERSUS trabalho de base



quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Autonomia, "classe média" e auto-abolição do proletariado

Continuação das reflexões do texto Ação direta VERSUS trabalho de base

Antes de tudo esclareçamos que a ideia de "fazer as pessoas lutarem" é não só presunçosa, mas completamente equivocada.

A existência dos proletários já é ação, já é luta, e eles já estão tão auto-organizados quanto está sob seu poder neste momento combater a classe dominante (composta por burguesia e burocracia, e seus órgãos de poder: Estado, empresas, sindicatos, ongs e partidos). Estamos em ação, em luta, independentemente de termos ou não consciência disso.

A todo momento, conforme o grau da capacidade de agir do proletariado,  ele, por si só, se vale de órgãos auxiliares (órgãos que ele cria ou, se a capacidade de agir é reduzida, órgãos pré-existentes, que são os da classe dominante - sindicatos, partidos, direito - que ele tenta utilizar a seu favor contra a própria classe dominante, que, por medo de uma explosão, pode ceder, como válvulas de alívio). Órgãos que são meios de aumentar sua capacidade prática. Orgãos cujas tarefas devem ser, para eles, específicas e explícitas (por exemplo, os conselhos de trabalhadores e soldados, os sovietes, tem a tarefa de coordenar a execução de tarefas entre bairros, cidades, países, continentes contra os órgãos da classe dominante que também coordenam sua ação contra nós nesses âmbitos) e que devem ser dissolvidos quando a tarefa é finalizada ou derrotada, para que não sejam mantidos como múmias cuja carniça, avidamente disputada por uruburocratas, só serve para alimentar estes inimigos.


No entanto, os proletários, por maior que seja sua autonomia, são contraditórios. Neles se encontram duas tendências em tensão: uma delas é sua afirmação como capital variável, ou seja, vendedores/compradores tanto quanto a classe dominante é vendedora/compradora (daí a aparência de existir apenas "classe média", infinitamente subdivisível desde alta alta alta até baixa baixa baixa, cada grau imaginando-se protegido pela polícia contra os graus inferiores), afirmação de sua posição de assalariados, mantenedores do status quo, do Estado e do capital. Mas como na realidade os proletários não possuem nenhuma mercadoria para vender a não ser a si mesmos (no mercado de trabalho), há a outra tendência, que é a sua afirmação como classe autônoma, como proletariado, a classe daqueles que não possuem mercadorias (que não tem nada a perder a não ser as correntes que o aprisionam) e cuja praxis é o comunismo (auto-abolição do proletariado, pela supressão da sociedade de classes e o Estado).

Por isso, a capacidade de agir dos proletários, sua autonomia, que eles sempre possuem em algum grau, é uma tensão, e toma contraditoriamente partido de duas direções: uma é reacionária e a outra é comunista. A única tendência cujos órgãos podem se tornar "duradouros" e de "longa duração" dentro da sociedade atual é a reacionária (daí a recuperação dos órgãos, como os sovietes, pela classe dominante, e a burocratização), pois sua permanência supõe a adequação à continuidade do proletariado como sustentáculo da sociedade de classes e do Estado (os proletários podem até mesmo afirmar radicalmente sua autonomia como capital variável, autogerindo sua própria exploração e repressão). A outra tendência, a comunista, só pode ter êxito quando numa dinâmica de rápida e crescente expansão, ultrapassando subitamente as fronteiras nacionais e divisões identitárias, estabelecendo desde o princípio o modo de produção comunista, o livre acesso aos meios de produção e de vida. E isto só pode ter êxito se toma os fluxos e estoques do circuito produtivo mundial, abolindo a economia ("ordem emergente" do mercado, que reflete não as necessidades humanas mas o poder de compra e o lucro), para submetê-los às necessidades humanas, ao poder dos indivíduos livremente associados que abolem as classes e o Estado.

Portanto, quando afirmamos a teoria comunista, não é que queiramos levar seja quem for à luta, mas sim afirmar a tendência comunista das lutas que todos os proletários do mundo já estão fazendo pelo simples fato de existirem. A expressão da teoria é espontânea, porque não parte de outro ponto de vista senão da condição problemática, contraditória, que constitui o proletariado em todo o mundo, sendo que nós mesmos, que nos dedicamos à essa teoria, sofremos a contradição como todos os demais proletários em nossa prática cotidiana. Quando a expressamos, sabemos que não somos "mais" do que ninguém, até porque somos plenamente conscientes de que ela jamais vai encontrar ressonância e ampla difusão, e permanecerá parecendo um  delicioso delírio megalomaníaco (delícia que é uma das razões pela qual nos dedicamos a ela),  enquanto os proletários, em sua prática, continuarem sendo forçados predominantemente ao lado reacionário (o de serem capital variável, "classe média") de sua luta. Se o lado comunista predominar, a difusão vai se fazer sem a necessidade de nenhum "trabalho de formiguinha" ("trabalho de base"), porque ela será apropriada espontaneamente, grandemente desenvolvida e difundida por cada proletário empenhado em abolir a venda de si mesmo e que busca entender sua situação para poder agir de forma mais poderosa.

Humanaesfera, agosto de 2015

Bibliografia:
Crise e Autogestão (Négation, 1973)
Capitalismo e comunismo (Jean Barrot/Gilles Dauvé, 1972)
O «renegado» Kautsky e seu discípulo Lênin  (Jean Barrot, 1969)
Leninismo e Ultra-esquerda (Jean barrot & François Martin, 1972)
Composição de classe (Zerowork, 1975)
Notas sobre Composição de Classe (Kolinko, 2001)
A Impotência do Grupo Revolucionário (Sam Moss, 193?)
Sobre Organização: As Gangues (dentro e fora do Estado) e o Estado como Gangue (Jacques Camatte & Gianni Collu, 1969)
Origem e função da forma partido (Programma Comunista, 1961)
A revolução não é tarefa de partido (Otto Ruhle, 1920)

sábado, 2 de maio de 2015

Ação direta VERSUS trabalho de base

"A consciência não é senão o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo real de vida. [...] Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência. No primeiro modo de consideração, parte-se da consciência como indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos vivos reais e considera-se a consciência apenas como a sua consciência." (K. Marx)
Um sinônimo para heteronomia do proletariado? Eis: trabalho de base. Pseudo-práxis tão oca, tautológica e vazia que não passa da repetição incessante da exortação a um dolorido, árduo, interminável, confrangente... trabalho de base. *

O ativista, o militante, quer  ação.  Ao contrário dos  não-militantes,  ele se vangloria por ele, ele sim, agir. O erro começa aí: imaginar que existe ou possa existir alguém que "não faz nada". Se existimos, agimos. Não é preciso esperar uma panelinha de militantes com seus  "trabalhos de base" e "inserções sociais" para agir e se solidarizar com os demais. 

A ideia de trabalho de base é indefensável, porque é intrinsecamente heteronômica. Mas o militante autonomista pretende lutar pela autonomia do proletariado. Como alguém que alega agir - isto é, alega que os outros não agem - pode  agir se não supor agir sobre os outros (trabalho sobre a base)? Então, o militante autonomista entra em parafuso, e, para se recompor, apresenta-se como meio, instrumento, e não como fim - ele renuncia aos próprios desejos (objetivos, ideias, finalidades, que menoscaba como meras utopias), porque acha que assim respeita os desejos da "base", a autonomia dela. Ora, não é óbvio que o "trabalho de base" implica aceitar acriticamente uma posição heterônima, hierárquica? E não é óbvio que essa renúncia a objetivos e desejos (para imaginariamente respeitar a autonomia da base) significa se omitir frente às tendências suicidas (reacionárias) do proletariado, como se elas fossem autônomas?

No melhor dos casos, a militância é simples fantasia, mera imaginação e delírio. Coisa talvez digna de riso. Já nos outros casos, a medida que a organização militante se perpetua e o trabalho de base tem êxito, vai se consolidando inevitavelmente (independente do formalismo "igualitário", "democrático" ou das "intenções") como gangue, bando,  máfia, sacerdócio, quando não numa nova classe dominante (burocracia).

O que devemos fazer então? Nada. Se existimos, agimos. Basta ser o que se é, isto é, agir como igual (um proletário), sem recuos nem renúncias - apresentando opiniões, objetivos e propostas assim como os outros iguais apresentam as opiniões, objetivos e propostas deles. Simplesmente de igual para igual, nos ônibus, no trabalho, no trem, na internet, na rua, se há oportunidade. Abertamente, como tendência comunista libertária do proletariado contra outras tendências dele (tendências essas que em nossa opinião são suicidas para o proletariado, pois o levam a sustentar sua própria sujeição e exploração. Por exemplo: religião, patriotismo, defesa de "seus" empregos contra "intrusos", xenofobia, machismo, primitivismo, racismo, bairrismo, corporativismo, conspiracionismo, o servilismo de brigar pelo reconhecimento de "méritos"...). 

As práticas do proletariado (solidariedades, greves, manifestações, trabalhar o mínimo, cagar para a "meritocracia" e, o que propomos, que é superar a greve pela produção livre, rastilho do comunismo universal) são por si mesmas nossa prática. E as práticas da classe, só podemos influenciá-las debatendo-as e apresentando claramente nossas críticas, ideias, e finalidades, que podem ser mais ou menos adotadas ou não, ser difundidas pelos outros ou não, em determinando momentos sim e em outros não, aprimoradas ou não... Não existe nenhum outro tipo de práxis além dessa, se buscamos favorecer a autonomia do proletariado. Trabalho de base é mistificação proto-burocrática ou proto-sacerdotal. 

[Obs.: aos que acham que superestimamos as "ideias", respondemos que as ideias não são entes imateriais (só seriam imateriais se elas existissem num plano sobrenatural, em que seriam eternas e inalteráveis), mas, pelo contrário, são produções, indispensáveis para compor (em pé de igualdade ) com outras produções a transformação das circunstâncias (praxis revolucionária). Os proletários não são bestas que fazem coisas cegamente ou por instinto. Não há ações sem objetivos, finalidades, desejos... isto é, as ações pressupõem e implicam teorias, que os proletários criam e aprimoram (ou degradam e dogmatizam) conforme percebem que sua capacidade de agir é objetivamente aumentada (ou diminuída). A capacidade de agir dos proletários é aumentada quando confiam em si mesmos (internacionalisticamente), não reconhecem "bodes expiatórios", e impõem suas necessidades (que são comunistas: não trabalhar e que tudo seja livre, "free"), opondo-se radicalmente, por este simples ato, à classe dominante (para a qual, obviamente, isto é "opressivo", verdadeira ditadura do proletariado). Ataca o poder dissolvendo o que o sustenta: as divisões do proletariado em empresas, pátrias, raça, gênero, etc. mediante uma livre associação universal que garanta o livre acesso a qualquer um aos meios de produção e de vida. E é diminuída quando os proletários desconfiam de si mesmos, clamam ao poder contra "bodes expiatórios" (estrangeiros, "judeus", imigrantes, "vagabundos"), e reprimem seus desejos em nome da ficção de um "bem maior" (pátria, empresa, religião...), isto é, quando se unem à classe dominante (seja ela burocrática ou particular, de esquerda ou de direita) contra si mesmos. No primeiro caso (aumento da capacidade de agir), a teoria necessariamente se desenvolve e se aprimora, enquanto que no segundo caso (redução da capacidade de agir), a teoria só pode se degradar e se dogmatizar.]

humanaesfera, maio de 2015

* É bem provável que o "trabalho de base" tenha base no dolorismo missionário católico (caridade, culpa...). Maldito legado das comunidades eclesiais de base...


Continuação destas reflexões: Autonomia, "classe média" e auto-abolição do proletariado


Bibliografia:

Ação direta (Kaos)
O «renegado» Kautsky e seu discípulo Lênin   (Jean Barrot)
A Impotência do Grupo Revolucionário (Sam Moss)
A Democracia Direta é Realmente Possível? (Echanges et Mouvement)
Sobre Organização: As Gangues (dentro e fora do Estado) e o Estado como Gangue (Jacques Camatte & Gianni Collu)
Eclipse e Reemergência do Movimento Comunista (Jean Barrot e François Martin)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A autonomia é favorecida pelas lutas identitárias?



Sem dúvida é essencial a solidariedade entre mulheres (ou negros), se acolhendo mutuamente, se reconhecendo e compartilhando os problemas que só elas (ou eles) sofrem e modos de se contrapor a eles. Porém, fechadas em si mesmas, isto é, enquanto lutas identitárias, elas são necessariamente punitivistas e como tais meramente reivindicam o reforço do aparato repressivo do Estado, quando não a repressão direta ganguista ("escrachos"). Por exemplo, na prática o que o feminismo identitário propõe para transformar a sociedade? Mais repressão. A repressão é a única praxis social possível das lutas identitárias. Não estou dizendo que elas poderiam exigir outra coisa fora a repressão, mas sim que não se pode esperar das lutas identitárias, enquanto tais, a menor possibilidade de ir além do status quo, no qual a repressão (recompensas e punições) é a única praxis possível.

As mulheres são a esmagadora maioria dos que ganham um salário mínimo ou menos no Brasil. E são elas que são a maioria dos que continuam ganhando a mesma coisa pelo resto de suas vidas... Como tratar disso? Há duas maneiras. Uma é pela via identitária e consiste simplesmente em protestar por novas leis e por fortalecer ainda mais a repressão para implementá-las, "empoderando" ainda mais a classe dominante. A outra é pela solidariedade que surge pela confiança mútua entre homens e mulheres, negros e brancos, que é o único modo de romper o poder da classe dominante e seu aparato repressivo, confiança mútua fundada justo na dissolução de privilégios (de sexo, raça, etnia...), confiança na solidariedade dos outros se alguém sofrer essas violências identitárias. Obviamente esta é uma perspectiva de classe, de autonomia do proletariado.  (Aliás, "privilégio" vem de "privus legis" - lei privada. )

É claro que no contexto "dado" de desconfiança e competição generalizada em que sobrevivemos, nesta guerra de todos contra todos em que o apelo a uma violência ainda mais ameaçadora (gangue, gerente, polícia e/ou Estado) é sempre a única "garantia",  os identitaristas sempre argumentarão que é uma  "ingenuidade hipócrita" esperar encontrar solidariedade e confiança mútua entre os proletários, ou esperar que eles recusem suas migalhas de privilégios ("meritocracia"). Os identitaristas tem razão, pois diante do sofrimento da violência identitária, não há tempo para esperar a solidariedade ainda hipotética de classe,  não restando saída exceto apelar à classe dominante (ao poder) como único recurso disponível para reduzir o sofrimento.


Porém, esse contexto, esse status quo, é insuportável e absurdo. Verdadeira hipocrisia é aceitá-lo.  É preciso buscar tornar materialmente sem sentido o apelo à "violência mais ameaçadora" (gangue, gerente, polícia e/ou Estado). E, para isso, não se trata de defender "fatos", mas de afirmar uma posição (que não é uma "militância" ou "trabalho de base", que sempre desembocam em ganguismo, mas, pelo contrário, relações de igual para igual no cotidiano, na rua, no trabalho, no ônibus):  favorecer a solidariedade, a confiança mútua, a recusa à privilégios, propor "a cada um conforme suas necessidades" contra a competição (minando a correspondente "meritocracia", método de dominação daqueles que detém a "violência mais ameaçadora", ou seja, a classe dominante), ou seja, favorecer tudo que contribua para a autonomia do proletariado, e o "desapoderameno" da classe dominante... 

Humanaesfera, dezembro de 2014

Obs.: As lutas identitárias (mulheres, negros, consumidores, etnias, jovens  e inclusive os agrupamentos militantes ...) pretendem existir fora da esfera da produção. Mas qualquer coisa que se dê fora da produção é uma coisa que não veio a ser, isto é, que não se produz, que é como uma forma eterna platônica, uma coisa dada de uma vez para sempre – em suma, é a velha reificação. Logo, toda luta que supõe defender algo fora da produção é, por esta razão, reificante – e este é o caso de todas as lutas identitárias. Considerar tudo em sua produção foi realmente a grande sacada de Marx, em radical contraposição a marxistas e anarquistas, que se agarram a suas identidades “puro-sangue”, suas militâncias e suas doutrinas.

Assim, por exemplo, a opressão das mulheres só pode ser mesmo combatida na esfera da produção, transformando as condições de existência materiais em que as mulheres são praticamente constrangidas a se sujeitar. A opressão das mulheres jamais terminará enquanto a mulher for afirmada como uma identidade contra outra(s) identidade(s) (isso só leva ao punitivismo, ou seja, à pura irracionalidade, à adesão à violência do poder), mas apenas se elas se libertam dessa reificação, ao transformarem (junto com todos nós) suas condições de existência de modo a produzirem a si mesmas livremente, o que evidentemente envolve uma luta geral para produzir as condições de existência de uma livre associação universal na qual a individualidade livre possa se desenvolver, para sempre. (O proletariado é definido como aquele a quem a produção é privada – desse modo, quando ele toma a produção, dissolve todas as identidades, inclusive a dele mesmo).

humanaesfera, dezembro de 2014


Sobre como podemos efetivar concretamente a emancipação feminina, Contra o familismo novo e velho - abaixo a família! (2015)


terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Trechos dos Comentários sobre Os Elementos de Economia Política de James Mill, por Karl Marx (1844)

Tradução para o português por Humanaesfera a partir do inglês ( fonte: Comments on James Mill by Karl Marx ) e do espanhol (fonte: o livro Páginas Malditas de Marx). Aparentemente, os comentários sobre James Mill (também conhecidos como Notas sobre James Mill) por Marx nunca foram  publicados em português. 


"Só o que é monopolizável tem um preço." (Comentário de Karl Marx ao Esboço de Economia Política de Friedrich Engels, 1844)

"[...] A característica originária, determinante, da propriedade privada é o monopólio, portanto, quando ela cria uma constituição política, é a do monopólio. O monopólio consumado é a concorrência."

"O movimento mediador do homem que troca não é um movimento social, humano, não é uma relação humana, mas a relação abstrata da propriedade privada com a propriedade privada, e essa relação abstrata é o valor cuja existência em ato como valor constitui o dinheiro. A relação social da propriedade privada com a propriedade privada já é uma relação em que a propriedade privada é alienada de si mesma. A forma de existência para si dessa relação, o dinheiro, é, portanto, a alienação da propriedade privada, a abstração de sua natureza pessoal, específica."

"Em ambos os lados, portanto, a troca é necessariamente mediada pelo objeto que cada lado produz e possui. A relação ideal com os respectivos objetos da nossa produção é, evidentemente, a necessidade mútua. Mas a relação real, verdadeira, que realmente ocorre e produz efeitos, é apenas a posse mutuamente exclusiva de nossos respectivos produtos. O que dá à tua necessidade de meu artigo valor, importância e efetividade para mim é apenas o teu objeto como o equivalente do meu objeto. Nosso produto recíproco, portanto, é o meio, o mediador, o instrumento, o poder reconhecido de nossas necessidades mútuas. Tua demanda e o equivalente de tua posse, portanto, são para mim termos que são iguais em importância e validade, e tua demanda só adquire um significado, devido a ter um efeito, quando ela tem um significado e efeito em relação a mim. Como um mero ser humano, sem este instrumento, tua demanda é uma aspiração frustrada de tua parte e uma ideia que não existe para mim. Como um ser humano, portanto, você não tem nenhuma relação com meu objeto, porque eu mesmo não tenho nenhuma relação humana com ele. Mas o meio é o verdadeiro poder sobre o objeto e, portanto, nós consideramos mutuamente nossos produtos como o poder de cada um sobre o outro e sobre nós mesmos. Ou seja, o nosso próprio produto se levantou contra nós; ele parecia ser nossa propriedade, mas de fato nós somos propriedade dele. Nós mesmos somos excluídos da verdadeira propriedade porque nossa propriedade exclui os outros homens.

A única linguagem inteligível em que conversamos um com o outro consiste nos nossos objetos em suas relações entre si. Nós não entendemos uma linguagem humana, e ela permanece sem efeito. Ela seria considerada e sentida como um pedido, uma súplica, e, portanto, uma humilhação, e, conseqüentemente, pronunciada com um sentimento de vergonha, de degradação. Enquanto que a outra parte a receberia como descaramento ou loucura e rejeitada como tal. Estamos de tal forma mutuamente estranhados do ser humano que a sua linguagem direta nos parece uma violação da dignidade humana, ao passo que a linguagem estranhada dos valores coisificados parece a afirmação justa da dignidade humana, auto-confiante e consciente de si."

"Nosso valor mútuo é para nós o valor de nossos mútuos objetos. Portanto, para nós o próprio homem é reciprocamente sem qualquer valor.

Suponhamos que tivéssemos produzido como seres humanos. Cada um de nós afirmaria duplamente a si mesmo e a outra pessoa:

1) Na minha produção, eu teria tornado objetiva a minha individualidade, o seu caráter específico e, portanto, não só teria desfrutado ao expressar minha vida individual durante a atividade, mas também, ao ver o objeto, eu teria o prazer individual de saber que a minha personalidade é objetiva, perceptível aos sentidos e, portanto, um poder fora de qualquer dúvida.
2) O teu desfrute ou uso de meu produto me proporcionaria diretamente o prazer de me saber satisfazendo com minha atividade uma necessidade humana, isto é, de ter tornado objetivo o ser humano, e de ter, assim, criado um objeto correspondente à necessidade de outro ser humano.
3) Eu teria sido para você o mediador entre você e o gênero humano e, portanto, seria reconhecido e sentido por você como um preenchimento da tua própria natureza essencial e como uma parte necessária de você mesmo e, consequentemente, eu me sentiria confirmado tanto no teu pensamento como no teu amor.
4) Teria tido a alegria de, na expressão individual de minha vida, eu ter criado diretamente a expressão de tua vida, e, portanto, de na minha atividade individual, eu ter diretamente confirmado e realizado o meu verdadeiro ser, o meu ser humano, meu ser multilateral em comum universal [gemeinwesen].

Nossas produções seriam múltiplos espelhos em que veríamos refletida a nossa natureza essencial.

Esta relação além disso seria recíproca; o que ocorre do meu lado ocorreria do teu.

Vamos analisar os vários fatores vistos em nossa hipótese:

Minha atividade seria uma livre manifestação da vida, portanto, um desfrute da vida. Ao contrário, pressupondo a propriedade privada, a minha atividade é uma alienação da vida, pois eu trabalho para viver, para adquirir meios de vida. Meu trabalho não é a minha vida.
Em segundo lugar, a natureza específica da minha individualidade, portanto, iria se afirmar na minha atividade, uma vez que esta seria uma afirmação da minha vida individual. A atividade portanto seria propriedade verdadeira, ativa. Em contraste, pressupondo a propriedade privada, minha individualidade é alienada a tal ponto que essa atividade torna-se, ao contrário, odiosa para mim, um suplício, e mais que atividade, uma aparência dela; daí que é uma atividade forçada, imposta a mim mediante uma necessidade extrínseca e acidental, e não por uma necessidade interior e determinada."


Veja também mais trechos de outros clássicos:







segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A Ideologia do status quo

condições de existência coisificadas
A ideologia predominante em nossa sociedade, o "senso comum" (a ideologia do status quo), considera como naturais e neutras as condições de existência, as supõe como uma coisa, um dado coisificado, cujo pensamento ou entendimento é inútil porque as condições são supostas fora da intervenção humana, como algo imutável e incondicionado. Assim, o fato de sermos forçados a vender como uma mercadoria as nossas capacidades de nos manifestamos no mundo, o fato de termos que vender nossa própria potência vital, isto é, o fato de nos vendermos no mercado de trabalho, de sermos forçados a nos exprimir materialmente apenas se formos um objeto sob o ditame do capital, é considerado um fato natural, dado e imutável.

liberdade zumbi e vida morta
A única liberdade concebível pela ideologia do status quo é, por isso, a liberdade que vacila entre dados predeterminados, já que essa é a única liberdade que sempre encontra suas condições como algo dado e imutável. Assim, a máxima liberdade concebível no status quo é a liberdade de livre escolha ou livre arbítrio: a escolha entre dados pré-existentes, escolha entre mercadorias (objetos predefinidos pelo capital), escolha entre o "bem" e o "mal" (conceitos predefinidos por supostas autoridades sobrenaturais ou divinas), escolha entre candidatos numa eleição (pré-escolhidos pela "política")...

A liberdade no senso comum é, desse modo, uma estranha liberdade passiva, consequência do fato de que, em nossa dimensão ativa, a dimensão em que nos manifestamos materialmente no mundo, em que produzimos nossas condições de existência, não somos livres, mas sim uma mercadoria, a força de trabalho, um objeto de consumo do capital.

o rebanho da justa medida
Além disso, há uma dimensão pseudo-prática na ideologia do status quo. Trata-se da ideologia da média, que afirma que o justo meio entre supostos extremos é sempre o ideal: "o melhor é nem ser muito gastador nem muito avarento", "o melhor é nem ser muito religioso e nem muito pecador", "o melhor é nem ser muito extremista e nem muito frouxo" e assim por diante. O vazio flagrante desses "conselhos práticos" repousa no fato de que eles não propõem nenhuma prática, nenhuma transformação, mas apenas um posicionamento passivo num quadro predeterminado de opostos, que na realidade são sempre dois lados da mesma moeda. E, pior ainda, como a "justa medida" é totalmente indeterminada e vazia em termos práticos, o único critério para decidir o que é médio é seguir a média, a mediocridade, o rebanho, a massa amorfa e obediente, em suma, é "fazer o que todo mundo faz".


praxis comunista
Contra a prática zumbi e liberdade escrava do status quo, defendemos a liberdade que abrange suas próprias condições, a liberdade prática e material, isto é, a libertação de nossas condições de existência (os meios de produção e a natureza) das garras do capital, abolindo a propriedade privada para estabelecer uma livre associação de indivíduos que se unem ou desunem conformem seus desejos e necessidades produzidas ao produzirem livremente suas condições de existência.

Humana Esfera, 11/2011

e também:
e

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O futuro ainda está nas mãos dos proles!

O mercado mundial, desde o século XVIII, liberta de fato a humanidade das relações de sujeição pessoal (senhores/escravos, mestres/servos,  relações de vassalagem etc.),  que eram baseadas na suposta origem divina, ancestral ou hereditária das pessoas.

Antes, as castas, a servidão, a escravidão, as guerras entre tribos, eram mantidas imaginando-se que tivessem origem divina ou cósmica, e do mesmo modo, determinados povos e pessoas eram tratados como destinados à sujeição por motivos míticos, religiosos, hereditários, ou eram supostos serem naturalmente inimigos por ancestralidade (como entre os indígenas sul-americanos).

O mercado mundial emancipa a humanidade desse seu passado horrendo. Isso porque, na troca de mercadorias, não interessa para as partes a origem das pessoas que vendem e compram, o que interessa é o valor da mercadoria que elas negociam. Logo, as relações entre vendedores e compradores minam e destroem as relações de desigualdade e sujeição pessoal que caracterizavam a humanidade em seu passado e as substitui por relações de liberdade e igualdade.

Nossa sociedade, isto é, o mercado mundial, nos faz de fato livres e iguais, mas, evidentemente, não como nós mesmos, não como indivíduos, mas apenas como vendedores e compradores livres e iguais de mercadorias. Se não vendermos nenhuma mercadoria, não conseguiremos dinheiro e, sem dinheiro, não conseguiremos acesso ao que nos permite sobreviver.

Tudo isso parece muito natural. Mas acontece que a quase totalidade da população mundial (e de todos os países) não tem nenhuma mercadoria, nenhuma coisa para oferecer. Eles são os proletários. Sem nenhum objeto para vender e trocar por dinheiro para sobreviver, só lhes resta vender a única coisa que ainda possuem, ou seja, a disposição de seu corpo, com seus atos e pensamentos, para fazer o que o comprador determinar, quer dizer, transformar em uma coisa vendável as suas capacidades humanas, sua potência de pensar e agir no mundo, sua força de trabalho. Em troca, receberão dinheiro - salário -, que, em tese, lhes permitirá sobreviver.

Trocadas por salário, as capacidades humanas compradas são um objeto de consumo ímpar, um objeto que tem a poderosa capacidade de, ao ser consumido, transformar criativamente a natureza. Desse modo, a força de trabalho é uma mercadoria cujo consumo, cujo gasto, dá ao seu comprador a própria potência criativa humana, a própria capacidade humana de mudar o mundo, o mundo em que vivemos, a natureza, em todos os aspectos.

Assim, as capacidades humanas tornam-se uma coisa, e só podem ser exercidas quando alienadas, vendidas, ou seja, apenas quando trocadas por uma dada soma de dinheiro. O dinheiro se torna equivalente à potência humana, enquanto os seres humanos se tornam impotentes como simples seres humanos, impotentes como indivíduos. Portanto, aqueles que mais tiverem dinheiro mais terão sob seu ditame a potência criativa da população, e poderão consumi-la, pô-la para trabalhar, para gerar ainda mais dinheiro, lucro, num círculo de acumulação constante e sem limite. Surge assim o capital - uma relação social que  impulsiona a si mesma a se reproduzir numa expansão sem limites, como se fosse um fato natural, involuntário, coisal, para os indivíduos envolvidos, pois estes pensam estarem apenas se relacionando entre si como pessoas livres e iguais que trocam as coisas entre si. Historicamente, o ponto de partida da expansão foi a Inglaterra do séc. XVIII, e a partir de então, parecendo uma catástrofe natural inevitável, o vírus da ditadura do dinheiro se replicou por toda parte e já na metade do séc. XIX abrangia o mundo inteiro. Eis a gênese do mercado mundial.

Com isso, as relações de sujeição pessoal foram substituídas por relações de sujeição coisal (e até mesmo de um ponto de vista puramente mercantil, com a expansão do mercado mundial, o uso de mão de obra de escravos logo revelou-se incapaz de concorrer frente ao uso de mão de obra proletária, pois o escravo é uma mercadoria cara, cuja propriedade demanda muitos cuidados  e custos que não são necessários quando se emprega proletários, que, se doentes e incapacitados de trabalhar, podem ser demitidos, ao contrário do escravo, que é um patrimônio do senhor e cujo descarte acarretaria grandes prejuízos para ele. Então, em termos de mercado, a compra de força de trabalho, o comércio de capacidades humanas, é incomparavelmente mais lucrativo do que a compra de escravos.)

Para a vida dos proletários, a acumulação do capital é a transformação da natureza por eles mesmos (por seu trabalho) em um mundo cada vez mais alienado deles, um mundo que acumula cada vez mais cercas, muros, um espaço cada vez mais intrincadamente privativo, policiado, isto é, que priva cada vez mais a população de liberdade, fazendo ser cada vez mais obrigatório ter dinheiro para satisfazer o menor desejo humano. É certo que, se fosse possível (felizmente ainda não é), o capital buscaria cercar o próprio ar que respiramos para que tenhamos de trabalhar para ele e pagar pela nossa simples respiração.

Sendo o capital a propriedade privada das condições de existência da população contra a própria população, de modo a fazê-la pagar por existir, o capital precisa de uma imponente instituição repressiva. Trata-se do Estado.

O Estado representa, reconhece, garante e protege a liberdade e a igualdade dos cidadãos, mas, evidentemente, não enquanto eles são simples seres humanos, mas como vendedores e compradores de mercadorias (e isso não muda se o Estado é denominado democrático ou ditatorial, fascista ou socialista). Daí que, para o Estado, há apenas "classes médias".

Foi apenas na década de 1920, sob a ameaça contundente de lutas proletárias internacionalistas (em todos os países industrializados: greves gerais, insurreições de trabalhadores etc.), isto é, sob a ameaça das lutas da própria potência humana mundial contra o capital, que, em cada país, o Estado viu-se forçado, nos anos 1930 aos 1950, a reconhecer os trabalhadores (e os despossuídos em geral) como categoria com direitos próprios, por meio de leis trabalhistas e sistemas de bem estar social (por exemplo, a previdência social, programas alimentares, de saúde universal, educação pública etc.). Naquele momento, conceder esses direitos em todos os países industrializados foi o único meio de acalmar a luta e salvar o capital, que é a razão do Estado. E essa estratégia funcionou. Mas como?

Funcionou porque o proletariado é um ser ambíguo: os proletários são (a) vendedores de uma mercadoria (força de trabalho), tanto como os capitalistas (empresas) vendem mercadorias, e, ao mesmo tempo, (b) eles são a própria potência humana criativa mundial, que o capital, que é a propriedade privada das condições de atuação dessa potência, volta contra os próprios seres humanos como uma força hostil e opressiva que se acumula indefinidamente.

Portanto, a luta dos proletários ocorre sempre na tensão dessa ambiguidade:

a) enquanto vendedores de uma mercadoria determinada - a força de trabalho -, os proletários têm interesse em vender (isto é, conseguir emprego) e valorizar sua mercadoria (isto é, aumentar seu salário e reduzir a carga de trabalho), quer dizer, reduzir proporcionalmente os lucros do capital, que, inversamente, por definição busca aumentar seus lucros, valorizar-se com menos custos. Os trabalhadores, enquanto vendedores concorrentes de força de trabalho, estão sempre em desvantagem frente ao capital, mas a medida que eles percebem que a força de trabalho é a mercadoria por excelência - a mercadoria que gera todas as demais mercadorias -, e à medida que se esforçam por reduzir a concorrência entre si, associando-se e lutando, eles conseguem valorizar sua mercadoria. Mas, como meros vendedores, essa valorização não deve ultrapassar o limite que levaria o comprador, o capital que os paga, à falência ao não ter mais lucros, já que isso tornaria os proletários impossibilitados de vender força de trabalho. Assim eles perpetuam-se como proletários ao afirmarem-se como mercadores, como vendedores de uma mercadoria e compradores/consumidores de outras, como "classe média".

b) enquanto expressão em escala planetária da própria capacidade criativa humana, como potência de pensar e agir internacional, potência de transformar o mundo, os proletários lutam por libertar sua potência humana da sujeição de ter de ser vendida e de ter de exercê-la contra si próprios. Ou seja, lutam por suprimir o capital, a propriedade privada, com o fito de tornar gratuitas as condições da existência humana (suprimindo o totalitarismo do dinheiro, da mercadoria). Buscam pôr livres as condições de atuação de nossas capacidades criativas, para que todos, como indivíduos, como simples seres humanos, possamos nos associar livremente enquanto tais e assim produzir o que nossos desejos, necessidades e sonhos precisam. Neste caso, o proletariado não busca se perpetuar, ele busca se auto-abolir (ao abolir o capital e seu aparato repressivo, o Estado), afirmando-se como uma associação de indivíduos que se relacionam livremente sem fronteiras por todo o planeta.

No funcionamento "normal" de nossa sociedade, o lado dominante da ambiguidade proletária é o de serem mercadores livres e iguais; se tal lado não predominasse, essa sociedade não se sustentaria. Mas, como vimos desde o início, essa igualdade e liberdade de vendedores e compradores é solapada desde o princípio, e o capital busca sempre consumir a mercadoria força de trabalho ao máximo, explorando o proletário até o limite, e se este não se associar e lutar de algum modo, verá seu salário diminuir (p.ex., inflação) e a carga de trabalho aumentar (por ex., concorrendo entre si para ser o mais puxa-saco). A luta só pode ocorrer, portanto, fora da pura relação mercantil de concorrentes, e é na luta que os proletários vão, pouco a pouco, descobrindo que eles mesmos são a força por trás do capital e que, portanto, o capital depende deles, enquanto que, como potência humana, eles não dependem do capital. A organização da luta proletária é invariável: assembléias horizontais e conselhos, cujos representantes são eleitos e revogáveis a qualquer momento nas assembléias de todos os proletários em luta.

Mas tudo depende da correlação de forças. O capital tem a seu lado todas as polícias, todos os exércitos, todas as prisões, todos os tanques, mísseis e porta-aviões, em suma, o capital tem a seu lado todos os Estados da terra; pois o Estado nada mais é do que a propriedade privada armada (não só a propriedade privativa particular como inclusive mesmo a propriedade privativa do próprio Estado, como as empresas estatais), e ele edifica-se e enche-se de políticos e legisladores graças ao financiamento do capital (o Estado deve garantir a infra-estrutura urbana, de transportes, educacional, policial e militar que condiciona a ótima acumulação do capital num território), isto sem falar dos casos em que o próprio Estado incorpora o capital e torna-se ele próprio uma empresa colossal, uma mega propriedade privada do tamanho de um país, como na URSS e Cuba.

Assim, a correlação de forças é esmagadoramente desfavorável para os proletários. Mas há alguma situação em que ela pode ser favorável? Por incrível que pareça, sim, já que o funcionamento do Estado e de seu aparato repressivo também depende de seres humanos que são assalariados, proletários. Nas primeiras décadas do século XX, soldados e marinheiros volta e meia se juntavam à população em luta e davam-lhe armamentos cantando com ela a famosa canção internacionalista que diz:

"Paz entre nós guerra aos senhores
Façamos greve de soldados
Somos irmãos trabalhadores.
Se a corja vil cheia de galas
Nos quer à força canibais
Logo verá que nossas balas
São para os nossos generais."

Todos os direitos democráticos fundamentais que ainda temos hoje (direito de voto universal, educação pública, saúde universal, programas sociais, leis trabalhistas) devemos à luta internacional dos proletários do fim do século XIX e das duas primeiras décadas do século XX, que conseguiram, em diversos momentos, fazer a correlação de forças tornar-se favorável para eles, a ponto de fazer o capital e o Estado perigarem tão intensamente que tiveram de fazer concessões antes consideradas inimagináveis. O Estado, que, por essência é uma tirania implacável sobre a população, isto é, polícia e forças armadas, em suma, defesa sanguinária da propriedade privada, teve que se enfeitar com aparências cada vez mais "democráticas" e "sociais" para manter o capital (seja sob a forma "socialista" ou "particular").


Mas a história não acaba aí. Não nos enganemos com o papo furado das "classes médias". Hoje numa escala muito maior do que no passado, a privação das condições de existência dos seres humanos para eles mesmos continua forçando-os, sob a ameaça de não ter como sobreviver, a ter que vender as capacidades criativas humanas como uma coisa e exercê-las transformando o mundo contra si mesmos. A luta por retomarmos nossas condições de existência, a luta por efetuarmos nossas capacidades como nós mesmos, como indivíduos livres em associação através do mundo, ou seja, a luta pelo fim da propriedade privada (pelo fim do capital e do Estado), continua o projeto social mínimo chamado anarquia, comunismo, livre associação dos produtores. Se ainda podemos imaginar que o mundo tem futuro, o futuro ainda está na mão dos proles!

Humana Esfera, 8/2011



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