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quinta-feira, 16 de junho de 2011

Pequena crítica antimoralista da dominação (crítica à idéia de "servidão voluntária")


La Boétie afirmou, com grande perspicácia, que nenhuma dominação seria possível sem o consentimento dos dominados, visto que eles próprios sustentam seus dominadores. Essa idéia, hoje, já caiu no senso comum, de uma forma mistificada, infelizmente, e serve principalmente ao moralismo, que afirma que  os dominados estão na merda apenas por sua pura e absoluta vontade. Assim, bastaria aos dominados mudarem suas vontades para deixarem de ser dominados. Nem é preciso dizer que a idéia de vontade pura é religiosa, supõe que o espírito é uma substância distinta da matéria, uma substância incondicionada,  e, como tal, objeto passível de acusação, julgamento, culpa e penalização, já que teria o infame livre-arbítrio. É inacreditável ver como muitos supostos libertários baseiam seu discurso e sua prática nessa idéia, essencialmente autoritária e paranóica.

Mas voltemos ao que interessa. Não dá para negar que, sem o consentimento dos dominados, não haveria dominação. Mas esse consentimento seria incondicionado apenas se fosse sobrenatural, como a idéia religiosa de alma. Como nada indica que não sejamos senão matéria, quer dizer, não a matéria amorfa das religiões, mas a matéria cujo automovimento engendra e dissolve suas próprias formas (entre outras, formas de matéria que pensam, sentem e agem, como os humanos, animais, etc.), é extremamente plausível supor que os dominados consentem na sua a dominação não pela vontade incondicionada de sua alma pura, mas sim porque eles são levados a consentir nela por alguma razão, algum motivo, determinação ou circunstância.


Espinosa parece ter contribuições importantes neste sentido. Segundo Espinosa, os principais motivos que levam uma população a defender seus próprios tiranos são os afetos de medo e esperança, que são inquietações que surgem porque a população está sujeita à condições (afecções) controladas pelo tirano, o que permite ao tirano, por sua vez,  ameaçar impor condições ruins (causando medo) caso o questionem, e prometer impor condições boas (causando esperança) caso o obedeçam. O medo e a esperança, a ameaça e a promessa, são possíveis apenas quando duvidamos de nossas próprias capacidades, quando as condições de efetuar nossas capacidades não nos pertencem, mas a outros.

Podemos estender o raciocínio de Espinosa e dizer que a população só se liberta da dominação se ela consegue assumir o poder sobre suas próprias condições, se livrando do que causava medo e esperança e, consequentemente, de sua dependência dos dominadores. Mas a decisão de assumir o poder sobre suas próprias condições, evidentemente, também não é uma vontade sobrenatural. O próprio medo e a esperança continuam em ação, porque eles não  sabem se essa tomada das condições é factível e nem mesmo se seus resultados serão desejáveis. Querer acabar com a dominação parece igual a querer trocar o certo pelo duvidoso, e, como vimos, o duvidoso é a própria causa do medo e da esperança, o que nos remete novamente à dominação, que desse modo parece um porto mais seguro. Portanto, inversamente, pode-se dizer que, se a perspectiva de acabar com a dominação trouxesse mais autoconfiança ou menos incerteza (isto é, menos medo e menos esperança) do que obedecer aos dominadores, os dominados teriam todos os motivos para decidir acabar com a dominação e dificilmente poderiam resistir a seu próprio impulso por uma vida melhor.

Mas o que leva a população a ter essa autoconfiança emancipatória senão as suas próprias condições de existência estarem já sob seu próprio poder de algum modo? Assim, o que ocorre é um processo. Por exemplo, alguns dominados, por circunstâncias imprevisíveis, encontram-se por alguma razão com suas condições de existência sob seu poder e suprimem o medo/esperança tornando-se autoconfiantes, e isso leva a outros dominados a tornarem-se autoconfiantes de buscarem o poder sobre suas condições de existência e assim por diante, do mesmo modo como uma fagulha causa um incêndio.

humanaesfera, 06/2011


Veja também:

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Anatomia do rebanho: o desejo impotente

Na sociedade de classes, o desejo é impotente. Primeiramente é materialmente impotente. Reduzido à mero capricho subjetivo, o desejo é privado de meios de se realizar praticamente, materialmente, pois o que fundamenta a sociedade de classes (e mais brutalmente ainda a sociedade capitalista) é o próprio fato de a população ser mantida privada dos meios de produção (i.e., propriedade privada), isto é, privada da própria condição de qualquer prática material desejante.

Uma vez que os desejos são privados de suas condições materiais de atuação, ele é impedido de se auto-formar, já que sua auto-formação só pode se dar através da atuação, da prática, da experimentação material, que é impedida do ponto de vista sócio-material-planetário.

Impedido de se auto-formar, o desejo de cada um é formado por outros, isto é, pela classe dominante, proprietária dos meios de produção, que, através da publicidade e da industria de entretenimento cria desejos alienados de suas próprias condições materiais de produção (assim, o sonho de ter carro, roupas da moda e por aí vai), isto é, desejos formados não pela experiência sócio-material-mundial, mas pela pura e simples lavagem cerebral.

Em suma, a impotência do desejo apenas exprime como as condições materiais de existência (do desejo, como de tudo o mais) são inumanas, anti-desejantes, abstratas, doentia. Trata-se de identificar o inimigo: o açougue chamado empresa (se estatal ou particular, não faz a mínima diferença) onde os seres humanos vendem sua carne como força de trabalho em troca da bruta existência, sob a crua ditadura do dinheiro (e, portanto, tirania de seus donos, sejam eles indivíduos ou estados).

Humana Esfera, Setembro de 2010

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