quarta-feira, 13 de julho de 2016

Contra a estratégia

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Não existe nada mais inútil e equivocado do que o ativismo, a militância, a ânsia de “prática”. Existir é agir. Os proletários não são bestas que fazem coisas cegamente ou por instinto. Não há ações sem objetivos, finalidades, desejos... isto é, existir (ou seja, agir) pressupõe e implica teorias, que os proletários criam e aprimoram (ou degradam e dogmatizam) conforme sua capacidade de agir é objetivamente aumentada (ou diminuída). Expliquemos:

A capacidade de agir dos proletários é aumentada quando confiam em si mesmos (internacionalisticamente), não acreditam em "bodes expiatórios", e impõem a satisfação de suas necessidades (que são comunistas: não trabalhar e que tudo seja livre, "free"), opondo-se radicalmente, por este simples ato, à classe dominante (para a qual, obviamente, isto é "opressivo"); quando ataca, portanto, o poder pela dissolução do que o sustenta (a oposição mútua entre proletários em empresas, pátrias, raça, gênero etc, se engalfinhando por seus próprios senhores) mediante um universalismo material (comunismo) que garante o livre acesso a qualquer um aos meios de produção e de vida, a expressão livre e autônoma das capacidades e necessidades humanas, a livre individualidade que se liberta enfim da comparação massificadora, reificante, identitária, da concorrência, propriedade privada, hierarquia, mercado e Estado.

Por outro lado, a capacidade de agir é diminuída quando os proletários desconfiam de si mesmos (a ponto de massacrarem a si próprios a um simples pedido dos chefes e poderosos), clamam ao poder contra "bodes expiatórios" (estrangeiros, "judeus", imigrantes, "vagabundos", “favelados”, “políticos maus”, “empresários maus”), e reprimem seus desejos em nome da ficção de um "bem maior" (pátria, empresa, etnia, ideologia, religião...), isto é, quando se unem às “suas” classes dominantes (burocrática ou particular, de esquerda ou de direita) contra si mesmos. Quanto menos capazes de ação, mais se entregam à reação.

No primeiro caso (aumento da capacidade de agir), a teoria necessariamente se desenvolve e se aprimora, enquanto que no segundo caso (redução da capacidade de agir), a teoria só pode se degradar e se dogmatizar.

Critério do conhecimento e práxis

Os critérios para distinguir mentiras ou boatos de verdades, o especulativo do provável, o que é verdadeiro em certos contextos e falso em outros, o que é baseado em mera fé do que é baseado em evidências etc., esses critérios são expressões intrínsecas do grau de autonomia ou heteronomia do proletariado, de sua autodeterminação ou sua sujeição às classes dominantes. Quanto a isso, há três tipos de crítica da sociedade capitalista:

A) Existe uma crítica da sociedade capitalista cuja verdade pode ser verificada materialmente por qualquer um em seu cotidiano, no mundo inteiro, por qualquer proletário: a crítica do capital enquanto coerção que nos força a nos vender como objetos úteis no mercado de trabalho, que nos coage, se quisermos sobreviver, a alienar nossas capacidades em troca do dinheiro, a exercer nossas potencialidades contra nós mesmos , transformando o mundo em uma força hostil  que se acumula nos privando (propriedade privada) das próprias condições materiais de existir, um poder hostil que nos domina, usa e descarta: o capital e o aparato repressivo que os garante (Estado). Essa é uma crítica da essência do capital, ela é radical, e dela decorre invariavelmente a necessidade irrevogável de abolir o trabalho, a propriedade privada, a empresa, as fronteiras e o Estado, ou seja, realizar o comunismo [1]. Detalhe: não requer nenhuma fé em "fontes especiais de informação".  

B) Existem outras críticas que requerem alguma "fé", como são as críticas parciais do capitalismo (que são basicamente críticas socialdemocratas do capitalismo: distribuição de renda desigual, obsolescência programada, piora das condições de vida, do meio ambiente, capitalistas e burocratas burlando as leis, governos tramando a derrubada de outros...) que nada mais são do que críticas de acidentes do capital, e não de sua essência. Enquanto no caso A, os proletários são plenamente autônomos quanto ao poder de verificar a verdade do seu conhecimento (que exprime a matéria de sua própria vida cotidiana) e de agir conforme o que sabem, no caso B, é preciso confiar em especialistas. Ainda assim, a verossimilhança dessa crítica pode ser pesada na vida cotidiana (por exemplo, verificando pioras de fato nas condições de vida, ou não verificando a obsolescência programada). Mas quanto menos radical e mais parcial a crítica, por ser mais "inacessível", mais requer que a prática dos proletários se submeta a "esferas superiores", e menos exprime uma prática autônoma capaz de se opor ao capital para impor a satisfação das necessidades humanas.

C) E existem críticas do capitalismo que só requerem fé, uma fé baseada totalmente em "fontes especiais de informação", fé aceita com base numa vaga "intuição psicológica" ou no apelo aos sentimentos. Por exemplo, críticas especulativas (as que, por exemplo, profetizam o "colapso inevitável do capitalismo", como a nova "crítica crítica" - Kurz, Postone, Jappe... -, as especulações do aceleracionismo, transhumanismo, etc), o conspiracionismo ("forças ocultas" que estariam tramando o sofrimento e aniquilação dos pobres, do povo ou da natureza) e as críticas identitaristas (as que afirmam uma identidade – de gênero, de raça, de etnia, de nacionalidade, de cultura – contra outras que “representariam o capitalismo”). Em termos práticos, essas críticas requerem a completa submissão, a completa aniquilação da capacidade de pensar e de agir do proletariado, e a assunção como verdade de qualquer boato, qualquer mentira que confirme os preconceitos “intuitivos” (por exemplo, as mentiras paranoicas sobre transgênicos, produtos químicos, vacinas, medicina, ciência, produtos naturais, tecnologia que muitos ecologistas propagam). O exemplo máximo é a própria religião, em que a fé na revelação de uma verdade absoluta oculta requer a total obediência àqueles que dizem ter acesso especial a ela (daí vem a própria palavra “hierarquia”, de hieros, sagrado ou segredo, e arché, fonte, princípio ou ordem).

Composição de classe VERSUS estratégia

Há quem argumente que o caso A, de plena autonomia, é insuficiente, porque é abstrato e filosófico, e que precisamos do caso B, porque é necessário que haja estratégia (por exemplo, “transição”), que seria algo até muito mais fundamental.

Mas falar em estratégia só faz sentido contra uma estratégia do lado oposto, isto é, quando há uma contra-estratégia pressuposta. Não se trata, então, de luta de classes, mas de uma guerra de frentes, que pressupõe um mesmo tabuleiro, uma mesma linguagem, uma mesma lógica compartilhada, na qual se apoiam os dois lados para que seja possível se enfrentarem. Para guerrearem entre si, precisam estar num mesmo plano, apoiar-se numa mesma estrutura, estarem numa mesma altura, falarem de igual para igual. Daí todas as contrarrevoluções em todas as revoluções "vitoriosas" que já existiram, em que as mesmas estruturas (dominação, sociedade de classes, Estado etc) do inimigo são reproduzidas em nome de atacá-lo.

A grande virtude dos proletários é que eles, enquanto classe autônoma, não podem atacar a estrutura no plano da própria estrutura, mas como produto, como produção molecular resultante de sua própria atividade cotidiana simultânea no mundo inteiro. Caso ataquem a estrutura no mesmo plano da estrutura, aceitando se submeter a uma estratégia, eles são condenados a reproduzir sua própria sujeição sob a mesma ou alguma nova classe dominante, pois seu campo de atuação, a atividade cotidiana simultânea universal, é condenado a permanecer inalterado (trabalho, auto-sacrifício, sujeição...) para efetivar a própria estratégia, reproduzindo automaticamente, apenas com novos nomes, as mesmas estruturas que resultam necessariamente da atividade cotidiana alienada.

Em contraste com a ideologia da estratégia, os proletários não podem contar senão com a sua própria capacidade autônoma de agir e pensar, impulsionada pela rápida difusão de sua luta em escala mundial. Nesse mesmo ato, eles comunicam mundialmente uns com os outros o conhecimento do modo como suas atividades cotidianas simultâneas se interligam (por exemplo, conforme o local em que estão, as supply chains, as relações entre indústria, agricultura e as vias materiais de livre expressão das necessidades, desejos, pensamentos e capacidades dos habitantes e viajantes do mundo,  etc ) [2], conhecimento que é simultâneo à supressão em ato das condições de existência materiais (moleculares) da propriedade privada, do capital e do Estado e à criação de uma nova sociedade  em que os meios de vida e de produção, indissoluvelmente interconectados em escala mundial em uma rede de fluxos imanentes, se tornam livremente (gratuitamente) acessíveis à qualquer um que queira satisfazer suas necessidades, desejos, pensamentos, projetos, paixões, e desenvolver livremente suas habilidades, capacidades e potencialidades.

Um evento assim, que desabilita pela base o poder da classe dominante (empresários,  burocratas e o Estados), tem desde o princípio uma linguagem incompreensível e “inconversável” com a classe dominante e o Estado, sendo de fato uma ditadura contra eles - a verdadeira ditadura do proletariado. A classe dominante sequer tem tempo para começar a entender o que está sofrendo para elaborar uma estratégia antes de o proletariado ter se auto-abolido e, portanto, abolido a classe dominante, a sociedade de classes. Muito diferente disso, o ativismo ou militância se caracteriza por se exibir espetacularmente à classe dominante como “oposição”. Obviamente, as armas da classe dominante, o Estado, os grupos de extermínio etc são infinitamente mais poderosos e aprimorados do que qualquer “movimento estratégico de oposição” [3], que, consequentemente, não passa de espetáculo, só útil para a classe dominante ensaiar seus cães de guarda e métodos de controle, que, encenando, legitima o próprio status quo como "democrático". E quando não é encenação, um “movimento estratégico de oposição” é apenas a reprodução da estrutura à qual procura se opor, como vimos nos parágrafos anteriores.

É óbvio que, quanto mais reduzida a capacidade de agir do proletariado, menos ele consegue se dar ao luxo de pensar por si mesmo, e mais só lhe resta ser objeto de estratégias, de burocratas, empresários e políticos que dizem pensar e agir pelo seu “bem”, prometendo, por exemplo, reformas, melhorias etc. Assim, dizem que devemos ser realistas, que o proletariado deve fazer o possível, votando, participando em campanhas, militando, “se esforçando mais”, "se sacrificando com mais empenho" etc, em suma, participando de estratégias. Isso é um equívoco. Porque, se não há luta autônoma, é pura sorte, além de extremamente improvável, que ocorra qualquer das melhoras prometidas; e se há luta autônoma, não faz sentido deixar-se reduzir a objeto de estratégias. O efeito colateral imediato da luta autônoma é que todos os burocratas, empresários e políticos, para conter a emergência do proletariado enquanto classe, passam enfim a servir as tais “melhorias”, mas, é claro, no mesmo prato da repressão. A questão é a autonomia do proletariado se difundir tão rapidamente em escala mundial que torne impossível que caia mais uma vez nessa armadilha.

Adendo: O fetichismo dos "exemplos práticos"

As revoluções e contrarrevoluções que experimentamos nos últimos 300 anos mostraram que a ideologia mais destrutiva para a luta autônoma mundial é a dos "exemplos práticos". Tão logo se ouve falar sobre uma "revolução" qualquer em algum lugar do mundo, é abandonada toda capacidade crítica e consideração pela verdade, que passam a ser consideradas irrelevantes frente ao "exemplo prático real de como transformar o mundo na realidade". A realidade do exemplo é considerada tão complexa que toda crítica e busca da verdade é descartada como masturbação mental reducionista e utopismo. Abandonada a capacidade de pensar, é aberta a via para o tarefismo supersticioso, destruindo a luta autônoma, seja pela luta imaginária que imita a aparência espetacular do exemplo, seja pela aceitação de se subordinar aos burocratas considerados representantes do exemplo (como quando o leninismo se espalhou no mundo e destruiu a luta autônoma por toda parte graças à "realidade inquestionável  de seu exemplo", 1917 na Rússia). 

Como antídoto, há um critério mínimo certeiro para avaliar todo e qualquer suposto exemplo (como o Curdistão, zapatistas, revolução russa, espanhola etc): se uma suposta revolução não se espalha rapidamente além das fronteiras para o mundo inteiro (com os proletários se opondo a seus opressores em cada vez mais lugares do mundo e se constituindo como classe autônoma sem fronteiras, se recusando a matar nas guerras, voltando as armas contra os generais em todos os lados, comunizando etc),  se a suposta revolução se perpetua apenas num lugar, isso já é suficiente para saber que ali está um Estado e o capital (independente do nome que se use, "autogestão", "socialismo", "comunismo", "anarquismo"...), ou seja, uma sociedade de classes. Pelo simples fato de que, isolados, eles são condenados a se adequar à troca no mercado mundial, acumulando capital e explorando o proletariado para não falir na concorrência internacional, e também porque são condenados a se constituir como Estado para se aliar, se defender ou atacar outros Estados.

humanaesfera, julho de 2016

Notas:
[1] “Não se trata do que este ou aquele proletário, ou até mesmo do que o proletariado inteiro pode imaginar de quando em vez como sua meta. Trata-se do que o proletariado é e do que ele será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ser. Sua meta e sua ação histórica se acham clara e irrevogavelmente predeterminadas por sua própria situação de vida e por toda a organização da sociedade burguesa.” (Marx e Engels, A Sagrada Família – Crítica da Crítica Crítica).

[2] Trata-se da composição de classe. Para mais detalhes, veja: Textos sobre composição de classe.

[3] Em contraste com encenação da “oposição estratégica”, o único modo de suprimir a força repressiva do status quo é por uma emergência tão rápida e generalizada do proletariado autônomo (portanto, do comunismo) que os poderosos não encontrarão sequer por onde começar a reprimir, de modo que os seus cães de guarda repressores deixarão de ver qualquer sentido em continuar obedecendo, deixando de ser cães de guarda, voltando as armas contra os generais e distribuindo as armas para a população, pela simples razão de passarem a ser irrefreável e irreprimivelmente atraídos, como o restante dos explorados, pela emergência apaixonante do comunismo luxuriante generalizado, a comunidade humana mundial.


Bibliografia:


A reprodução da vida cotidiana (Fredy Perlman,, 1969)
Capitalismo e comunismo (Jean Barrot/Gilles Dauvé, 1972)
Leninismo e Ultra-esquerda (Jean barrot & François Martin, 1972)
Origem e função da forma partido (Programma Comunista, 1961)

Outros textos sobre o mesmo tema:

-Ação direta VERSUS trabalho de base



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