sábado, 4 de junho de 2016

O maquinismo atrativo - a teoria da atração apaixonada de Charles Fourier (trechos)



Trechos de diversas obras [*] de Charles Fourier (1772–1837) que expõem suas ideias principais sobre a ordem combinada das séries apaixonadas, as 12 paixões, glutonaria, trabalho atrativo, a educação, a crítica do livre arbítrio e da civilização. Apesar de diversos equívocos quanto aos meios que propunha, tais como a manutenção do sistema salarial (e, portanto, das classes, da mercadoria e do Estado), e a ilusão sobre a possibilidade de uma economia alternativa paralela ao capitalismo, e também certa fantasia teleológica naturalista, as ideias fundamentais permanecem extremamente perspicazes e impressionantes. Tradução por humanaesfera a partir do inglês e do francês.


O CÍRCULO VICIOSO DA CIVILIZAÇÃO

“[Na civilização,] cada pessoa engajada numa indústria está em guerra com as massas, e malevolente para com elas por interesse pessoal. Um médico deseja de seus semelhantes bons casos de febres, e um advogado, bons processos em cada família. Um arquiteto necessita de um bom incêndio que reduza um quarto da cidade às cinzas, e o vidreiro deseja uma boa tempestade de granizo que quebre todas as vidraças. Um alfaiate, um sapateiro quer que o público use somente coisas mal pintadas e sapatos feitos de couro fajuto, de modo a triplicar a quantidade consumida – para o benefício do comércio; é isso que os preocupa. Uma corte de justiça considera oportuno que a França continue a cometer 120.000 crimes e danos reclamáveis, número necessário para manter as cortes criminais. É assim que na indústria civilizada cada indivíduo está em guerra proposital com as massas; é o resultado necessário da indústria anti-associativa ou de um mundo invertido. [...]

Esse círculo vicioso da indústria é tão claramente percebido que por toda parte o povo está começando a suspeitar dele e a sentir, estupefato, que, na civilização, a pobreza nasce da própria abundância. [...]

Portanto, a indústria civilizada, eu repito, só pode criar os elementos da felicidade, mas não a própria felicidade. Pelo contrário, será mostrado que o excesso de indústria leva a civilização a grandes infortúnios, se os métodos do progresso real na escala social não forem descobertos.” (Q.M.)

A SERVIDÃO DO LIVRE ARBÍTRIO



“A servidão do Civilizado [...] é tão facilmente constatada que seria supérfluo demonstrá-la; mas ela continua orgulhosa numa trincheira na qual ainda resiste, e, por causa da falta de liberdades políticas e materiais, ela se agarra a algumas liberdades espirituais, principalmente o Livre Arbítrio [...].

Se existe uma questão à qual se deve aplicar o preceito de Bacon, “refazer o entendimento humano e esquecer tudo que foi aprendido”, é a do Livre Arbítrio. É preciso toda a insolência de nossos sofistas para pretender que o homem é livre para optar entre o bem e o mal quando o persuadem que, se ele opta pelo que chamam de mal, ele será torturado neste mundo pelos carrascos ou assassinos filosóficos; e no outro mundo pelos demônios ou assassinos teológicos. Até mesmo um animal, embora desprovido de razão, não ousaria optar pelo suposto mal numa situação desse tipo.

Posicione um cão esfomeado perto da comida e seu primeiro pensamento será cometer o mal, roubar e devorar o objeto cobiçado; mas faça-o ver o açoite suspenso sobre sua cabeça e o pobre animal se encolherá e parecerá vos dizer: se eu fosse livre, eu comeria a comida, mas como tu me espancarás, eu prefiro morrer de fome.

Assim é o Livre Arbítrio de que gozam o homem civilizado e o bárbaro: ele é livre para optar por mais ou por menos privações e suplícios, mas não é livre para o bem-estar considerando os fatores [éléments] ao seu redor. Se ele não estiver disposto a ser enforcado, ele pode optar pelo pequeno inconveniente de morrer de fome, segundo os princípios do aperfeiçoamento social que condena o pobre ao cadafalso quando ele ousa demandar trabalho, pão e um mínimo social.” (U.U., I)

“Temos que demonstrar que o Livre Arbítrio, no estado civilizado, é enganoso, passivo e subordinado aos impulsos da intriga e do preconceito, em suma, tão perigoso para as massas quanto para os indivíduos, porque ele em geral nada mais é do que uma sugestão mais ou menos enganosa, salvo exceções tão raras que confirmam a regra e reduzem o pretenso Livre Arbítrio dos Civilizados à privação real.” (U.U., I)

“[Na civilização, o livre arbítrio] não é senão o exercício da irracionalidade, do arbitrário em oposição à arbitragem. Precisamos pensar na extirpação da arbitrariedade e (na instauração) da arbitragem ou livre determinação, fundada teoricamente na evidência da justiça, e praticamente na utilidade da aplicação. Eis a faculdade de que o homem civilizado é privado por uma dupla causa, pela ignorância das regras da justiça ou leis da natureza e pela influência de duas ciências fraudulentas, a filosofia e a teologia, com suas insinuações arbitrárias no lugar da justiça e da natureza.” (U.U., I)



“Passemos ao papel ativo ou exercício direto do Livre Arbítrio, que supõe independência frente aos preconceitos, e conhecimentos exatos da sorte [destinée]. Qual regra o homem provido dessas novas luzes deverá seguir? A regra de seguir as leis da natureza desenvolvendo as cinco paixões sensitivas e as quatro afetivas, segundo a ordem indicada pelas três paixões distributivas. É impossível haver felicidade coletiva ou individual sem esse método, nenhum ser pode ser feliz positivamente sem a expansão da sua natureza ou desenvolvimento de suas atrações. Só podemos nos satisfazer no conhecimento da natureza apaixonada quando tivermos descoberto um meio de desenvolver nessa ordem nossas doze paixões, e não podemos descobrir isso exceto esquecendo os dogmas de nossos 600.000 volumes filosóficos e teológicos, mais ou menos contrários à expansão das paixões.”(U.U., I)

DEVER E ATRAÇÃO

“Todos aqueles caprichos filosóficos chamados deveres não têm nenhuma relação com a Natureza; o dever procede dos homens, a Atração procede de Deus; agora, se desejamos conhecer os desígnios de Deus, devemos estudar a Atração, a Natureza simplesmente, sem qualquer consideração pelo dever, que varia em cada era, enquanto a natureza das paixões foi e permanecerá invariável em todas as nações dos homens.” (Q.M.)

“O mundo instruído é totalmente imbuído com uma doutrina chamada MORAL, que é inimiga mortal da atração passional.

A moral ensina o homem a ser inimigo de si mesmo, a resistir a suas paixões, reprimi-las, a acreditar que Deus foi incapaz de organizar sabiamente nossas almas, nossas paixões; que é necessário o ensino de Platão e Sêneca para saber como distribuir os caracteres e os instintos. Imbuídos com esses preconceitos sobre a imperícia de Deus, o mundo instruído foi incapaz de calcular os impulsos naturais ou atrações passionais, que a moral proscreve e reduz ao estado de vícios.

É verdade que esses impulsos apenas nos arrastarão ao mal caso os tratemos isoladamente; mas devemos calcular seu jogo sobre uma massa de dez mil pessoas societariamente reunidas, e não sobre famílias ou indivíduos isolados: é isso que o mundo instruído não refletiu; reconheceremos neste estudo que, desde que se alcance um número de 1600 societários, os impulsos naturais chamados atrações tendem a formar séries de grupos contrastados, nos quais tudo leva à indústria tornada atrativa e à virtude tornada lucrativa.” (N.M.)

“As paixões, que se acredita serem inimigas da concórdia, na realidade conduzem àquela unidade da qual se supõe que elas são muito distantes. Mas fora do mecanismo chamado séries “exaltadas”, emulativas e engatadas, elas são tigres soltos, enigmas incompreensíveis. Foi isso que levou os filósofos a dizerem que nós devemos reprimi-las; uma opinião absurda, na medida em que só podemos reprimir nossas paixões pela violência ou pela substituição absorvente, substituição que não é repressão. Por outro lado, se fossem eficientemente reprimidas, a ordem civilizada rapidamente declinaria recaindo em um estado nômade, onde as paixões ainda seriam malevolentes como hoje. A virtude dos pastores é tão duvidosa quanto a de seus apologistas, e nossos fazedores de utopia, ao atribuir assim virtudes à povos imaginários, apenas são exitosos em provar a impossibilidade de introduzir a virtude na civilização.” (U.U., III)

AS PAIXÕES

“Uma objeção [à ideia de mecanismo societário] e que precisa ser refutada mais de uma vez, é aquela da discórdia social. Como conciliar as paixões, os interesses conflitantes, os caráteres incompatíveis, em suma, as inúmeras disparidades que engendram tanta discórdia?

Pode-se facilmente pensar que farei uso de uma alavanca totalmente desconhecida, e cujas propriedades não podem ser julgadas até que eu as tenha explicado. As séries passionais contrastantes se alimentam unicamente dessas disparidades que desconcertam a política civilizada; elas agem como o lavrador que de uma massa de sujeira retira os germes da abundância; o refugo, a matéria imunda e impura que serve apenas para sujar nossas habitações é para ele fonte de riquezas.” (U.U., II)

“Somos familiares com as cinco paixões sensuais tendentes à Luxúria, com as quatro paixões afetivas tendentes aos Grupos; apenas nos resta aprender sobre as três paixões distributivas cujo impulso combinado introduz a Série, um método social cujo segredo foi perdido desde a época da humanidade primitiva, que foi incapaz de manter as Séries por mais do que cerca de 300 anos.” (Q.M.)

“As quatro paixões afetivas tendentes a formar os quatro grupos - amizade, amor, ambição, paternidade ou consanguinidade - são bastante familiares; mas ainda não foi feita delas nenhuma análise, paralelo ou escala.

As três outras, chamadas distributivas, são totalmente mal-entendidas, e são apenas intituladas de vícios, embora sejam infinitamente preciosas; pois essas três possuem a propriedade de formar e dirigir as séries de grupos, a fonte da harmonia social. Dado que essas séries não se formam na ordem civilizada, as três paixões distributivas causam apenas desordem. Vamos defini-las.” (U.U., I)

“10ª - A CABALISTA é a paixão que, como o amor, tem a propriedade de confundir postos, puxar superiores e inferiores juntos uns dos outros. Todo mundo deve lembrar de ocasiões quando se é arrastado em algum Caminho com completo sucesso.

Por exemplo: a cabala eleitoral para eleger um certo candidato; cabala sobre agiotagem; cabala de dois pares de amantes, planejando um quarteto sem o conhecimento do pai; cabala familiar para assegurar uma conquista desejada. Se essas intrigas são coroadas de sucesso, os participantes se tornam amigos; apesar de algumas inquietações, eles passaram momentos felizes juntos enquanto conduziram a intriga; as agitações que ela excita são necessidades da alma.


Muito distante da calma insípida cujas doçuras são exaltadas pela moral, o espírito cabalístico é o verdadeiro caminho do homem. Intrigar dobra seus recursos, amplia suas faculdades. Compare o tom de uma reunião social formal, seu jargão moral, forçado, lânguido, com o tom dessa mesma gente unida na cabala: eles aparecerão metamorfoseados; admiraremos sua expressão, sua animação, o jogo rápido de ideias, a presteza das ações, da decisão; em suma, a rapidez do movimento espiritual ou material. Esse magnífico desenvolvimento das faculdades humanas é fruto da décima paixão, a cabalista, que prevalece constantemente nos trabalhos e encontros das séries apaixonadas.

Como sempre resulta de certo modo em sucesso, e como seus grupos são todos preciosos uns para os outros, o encanto das cabalas se torna um poderoso laço de amizade entre todos os sectários, mesmo os mais desiguais.” (U.U. IV)

“A perfeição geral da indústria então surgirá da paixão mais condenada pelos filósofos; a cabalista ou dissidente, que nunca conseguiu obter entre nós o status de uma paixão, embora seja tão fortemente enraizada até nos próprios filósofos, que são os maiores intrigantes do mundo social.

A cabalista é a paixão favorita das mulheres; elas são excessivamente apreciadoras da intriga, das rivalidades e de todas as brigas maiores e menores de uma cabala. É uma prova de sua eminente aptidão para a nova ordem social, onde inúmeras cabalas serão necessárias em todas as séries, discórdias periódicas para manter um movimento de ir e vir entre os sectários dos diferentes grupos. [...]

12ª – A COMPÓSITA. Essa paixão requer em cada ação uma sedução ou prazer composto dos sentidos e da alma, e consequentemente o entusiasmo cego que nasce somente da mistura de dois tipos de prazer. Essas condições são tudo menos compatíveis com o trabalho civilizado, que, longe de oferecer qualquer sedução para os sentidos ou a alma, é somente um duplo tormento mesmo nas mais louvadas oficinas, tal como as fábricas de fiação da Inglaterra onde o povo, mesmo a criança, trabalha quinze horas por dia, sob ameaça, em locais desprovidos de ar.

A compósita é a mais linda das doze paixões, a única que melhora o valor de todas as outras. Um amor não é lindo a menos que seja um amor composto, combinando o encanto dos sentidos e da alma. Ele se torna insignificante ou enganoso se se limita a uma dessas fontes. Uma ambição não é veemente exceto se pôr em jogo duas fontes: glória e interesse. Então, ela se torna capaz de esforços brilhantes.

A paixão compósita traz um respeito tão grande que todos concordam em desprezar alguém inclinado ao prazer simples. Imagine um homem que se guarnece de finas comidas, vinhos finos, com a intensão de desfrutá-los sozinho, de dar a si mesmo para se empanturrar, e ele se expõe a um bem merecido escárnio. Mas se esse homem reúne uma companhia seleta em sua casa, onde se pode desfrutar ao mesmo tempo o prazer dos sentidos com regozijo e o prazer da alma por companheirismo, ele será celebrado, porque esses banquetes serão um prazer composto e não simples.

Se a opinião geral despreza o prazer material simples, o mesmo vale para o prazer espiritual simples, de reuniões onde não há nem frescor, nem dança, nem amor, nem nada para os sentidos, onde se goza apenas na imaginação. Uma tal reunião, desprovida da compósita ou prazer dos sentidos e da alma, torna-se insípida para seus participantes, não muito antes que “o tédio cresça e ela se dissolva”.

11ª A PAPILONNE (borboleta) ou Alternante. Embora décima primeira conforme a escala, ela deve ser examinada depois da 12ª, porque ela serve como um elo entre as outras duas, a 10ª e a 12ª. Se o propósito das séries fosse prolongar as sessões por doze ou quinze horas como aquelas dos trabalhadores civilizados, que, da manhã à noite, se estupefazem engajados em deveres insípidos sem qualquer diversão, Deus teria nos dado um gosto pela monotonia, uma aversão à variedade. Mas como as sessões das séries são bastante curtas, e o entusiasmo inspirado pela compósita é incapaz de ser prolongado além de um hora e meia, Deus, em conformidade a essa ordem industrial, tinha que nos brindar com a paixão da papillonnage, a inquietude pela variedade periódica nas fases da vida, e pela frequente variação de nossas ocupações. Ao invés de trabalhar doze horas com um intervalo escasso para uma pobre e embotada refeição, o estado societário nunca estende suas sessões de trabalho além de uma hora e meia ou duas no máximo; além disso, ele difundirá uma multidão de prazeres, encontros dos dois sexos terminando em banquetes, dos quais se procederá a novas diversões, com diferentes companhias e cabalas.

Sem esta hipótese do trabalho associativo, arranjado na ordem que eu descrevi, seria impossível conceber por que Deus deveria ter nos dado três paixões tão antagônicas à monotonia experimentada na civilização, tão irracional que, no estado existente, elas nem mesmo foram consideradas paixões, mas são chamadas apenas vícios.

Uma série, pelo contrário, não poderia ser organizada sem a permanente cooperação dessas três paixões. Elas são obrigadas a intervir constantemente e simultaneamente no jogo serial da intriga. Daí decorre que essas três paixões não podiam ser discernidas até que o mecanismo serial fosse inventado, e que até então elas fossem consideradas vícios. Quando a ordem social para a qual Deus nos destinou for conhecida em detalhe, veremos que esses pretensos vícios, a Cabalista, a Papillonne e a Compósita tornam-se as três garantias da virtude e da riqueza; que Deus de fato soube como criar paixões tais como elas são demandadas pela unidade social; que Ele estaria errado em mudá-las para agradar Sêneca e Platão; que, pelo contrário, a razão humana deve buscar descobrir uma condição social que esteja em afinidade com essas paixões. Nenhuma teoria moral jamais as mudará e, conforme as regras da dualidade de tendência, elas intervirão sempre para levar AO MAL no estado desconjuntado ou limbo social, e AO BEM no regime de associação ou trabalho serial.” (U.U, III)

“As sete paixões “afetivas” e “distributivas” dependem mais do espírito do que da matéria; são classificadas como PRIMITIVAS. Sua ação combinada engendra uma paixão coletiva ou uma formada pela união das sete, como o branco é formado pela união das sete cores de um raio de luz; devo chamar essa 13ª paixão de Harmonismo ou Unitarismo; é ainda menos conhecida do que a 10ª, a 11ª e a 12ª, e dela ainda não falei.

O Unitarismo é a inclinação do indivíduo para reconciliar sua própria felicidade com a de tudo que o circunda e de todo o gênero humano, até hoje tão odioso. É uma filantropia irrestrita, uma boa vontade universal que só pode ser desenvolvida quando a humanidade inteira for rica, livre e justa.” (Q.M.)

EXEMPLO: A GLUTONARIA (SOBRE A GASTROSOFIA)


“Eu devo, para preparar outros para compartilhar minha confiança, explicar o objeto de um desses impulsos considerados viciosos.

Eu seleciono uma propensão que é a mais comum e a mais refreada pela educação: é a glutonaria das crianças, a sua predileção por guloseimas, e, diante do conselho dos pedagogos para que gostem de pão, a opor-se comendo mais pão do que o permitido.

A natureza é muito desastrada por dotar as crianças com gostos tão opostos à sã doutrina! Toda criança considera um desjejum com pão seco uma punição; ela gosta de cremes açucarados, laticínios adocicados e doces, marmeladas e compotas, frutas cristalizadas e cruas, limonadas e laranjadas, vinho branco suave. Observe atentamente esses gostos que prevalecem em todas as crianças; sobre isso um grande caso deve ser julgado: a questão a ser determinada é quem está errado, Deus ou a moralidade? [...]

Deus dotou as crianças com o gosto pelas substâncias que serão as menos custosas na ordem societária.  Quando o globo inteiro for habitado e cultivado, gozando a livre circulação [libre circulation], sem nenhuma barreira, as doces iguarias que mencionei antes serão muito menos custosas do que o pão; os víveres abundantes serão as frutas, laticínios e o açúcar, mas não o pão, cujo custo se elevará muito, porque os trabalhos de cultivo do trigo e preparação diária de pão são penosos e pouco atrativos; é preciso pagar bem mais que aqueles nos pomares ou confeitarias.” (N.M.)

“No estado civilizado, a gulodice não se alia à indústria, porque o produtor trabalhador não desfruta dos bens que foram cultivados ou fabricados. Essa paixão, portanto, se torna um atributo do ocioso; e é apenas por isso que ela é viciosa, sem falar dos desperdícios e excessos que ocasiona.

No estado societário, a gulodice tem um papel totalmente oposto: não é mais a recompensa da ociosidade, mas da indústria, pois até o mais pobre cultivador participa no consumo dos preciosos bens. Além disso, sua única influência será nos preservar do excesso, devido à variedade, e estimular o trabalho ao aliar as intrigas do consumo com aquelas da produção, preparação e distribuição. A produção, sendo a mais importante dessas quatro, coloca de início o princípio que deve nos guiar; é a generalização do epicurismo. Com efeito:

Se pudéssemos elevar toda a humanidade aos refinamentos da gastronomia, mesmo nos pratos mais comuns, tais como o repolho e rabanete, e dar a cada um uma afluência que lhe permita recusar toda comida de qualidade ou preparação medíocre, o resultado seria que cada país cultivado seria, depois de alguns anos, coberto com deliciosas produções; pois não haveria nenhum lugar para as medíocres, tais como os melões amargos e pêssegos amargos, que nascem em certos solos onde não mais se cultiva melões nem pêssegos: cada lugar se dedicaria às produções que seu solo pode elevar à perfeição; o solo pobre seria deixado aos esportes, ou talvez às florestas, campinas  artificiais ou outro emprego que pudesse dar um produto de boa qualidade. Não é que as Séries apaixonadas não consumam comidas e coisas comuns, mas elas desejam, mesmo nas coisas comuns, tais como feijões e pano grosso, a qualidade mais perfeita possível, em conformidade com as proporções que a natureza estabeleceu na atração industrial.

O princípio do qual é preciso partir é que se chegue a uma perfeição geral da indústria, pela exigência e refinamento universal dos consumidores sobre as comidas e as roupas, as mobílias e os prazeres.” (N.M.)

“Minha teoria se resume a utilizar as paixões hoje condenadas, tal como a Natureza nos deu e sem de nenhum modo mudá-las. Eis todo o mistério, todo o segredo do cálculo da Atração apaixonada. Não se argumenta aqui se Deus estava certo ou errado ao dar à humanidade estas ou aquelas paixões; a ordem societária se beneficia delas sem mudá-las.” (U.U., IV)

“Seu mecanismo produz em todos os aspectos a coincidência entre o interesse do indivíduo e o interesse coletivo, sempre divergentes na civilização.” (F.I)

TRABALHO ATRATIVO

Aviso aos civilizados a respeito da próxima metamorfose social
“No mecanismo civilizado, encontramos por toda parte a infelicidade composta no lugar do encanto composto. Julguemos pelo caso do trabalho. Ele é, dizem as Escrituras muito justamente, uma punição do homem: Adão e sua prole são condenados a ganhar o pão com o suor de seu rosto. Isso já é uma aflição; mas esse trabalho, esse trabalho ingrato, do qual depende o ganho de nosso miserável pão, nós sequer podemos tê-lo! Falta ao trabalhador o trabalho do qual seu sustento depende – e ele suplica em vão por essa tribulação! Ele sofre ainda uma segunda vez, para obter trabalho numa era cujos frutos são de seu chefe e não dele, ou de ser empregado em obrigações nas quais ele é totalmente estranho... O trabalhador civilizado sofre ainda uma terceira aflição através das doenças com que ele é geralmente golpeado pelo excesso de trabalho demandado por seu chefe... ele sofre também uma quinta aflição, a de ser desprezado e tratado como indigente porque lhe faltam as coisas necessárias que ele precisa comprar pela angústia do trabalho repugnante. Ele sofre, finalmente, uma sexta aflição, a de que ele não vai obter nem progresso e nem salário suficiente, e que ao tormento do sofrimento presente se acrescenta a perspectiva do sofrimento futuro, e de ser enviado ao cadafalso se demandar esse trabalho que ele pode perder amanhã.” (Man.)

“Porém, o trabalho é o deleite de várias criaturas, tais como os castores, abelhas, vespas e formigas, que tem completa liberdade para preferir a inércia: mas Deus lhes proveu com um mecanismo social que atrai à indústria, e faz a felicidade ser encontrada na indústria. Por que ele não nos concederia o mesmo favor como o desses animais? Que diferença entre a sua condição industrial e a nossa! Um russo, um argelino trabalham por medo do açoite e da paulada; um inglês, um francês, por medo da fome que espreita sua pobre família; os gregos e romanos, cuja liberdade foi louvada por nós, trabalhavam como escravos e por medo de punição, como os negros nas colônias atuais.” (U.U., II)

“No trabalho, como no prazer, a variedade é evidentemente o desejo da natureza. Qualquer gozo prolongado sem interrupção além de duas horas conduz à saciedade, ao abuso, embota nossas faculdades, e esgota o prazer. Uma refeição de quatro horas não vai passar sem excesso; uma ópera de quatro horas vai acabar enfastiando o espectador. A variedade periódica é uma necessidade do corpo e da alma, uma necessidade de toda natureza; até o solo requer alternância de sementes, e a semente, alternância de solo. O estômago vai logo recusar o melhor dos pratos se ele é oferecido todos os dias, e a alma será logo embotada no exercício de alguma virtude se ela não é socorrida por alguma outra virtude.” (U.U., I)

“A principal fonte de serenidade entre os Harmonianos é a frequente mudança de encontros. A vida é um tormento perpétuo para nossos trabalhadores atuais, que são obrigados a gastar doze, frequentemente quinze horas em algum trabalho tedioso. Nem os ministros são isentos; encontramos alguns deles se queixando de ter passado um dia inteiro na tarefa maçante de pôr assinaturas em milhares de documentos oficiais. Tais responsabilidades fatigantes são desconhecidas na ordem societária; os Harmonianos, que devotam uma hora e meia ou no máximo duas às diferentes sessões, e que, nessas curtas sessões, são sustentados por impulsos cabalistas e pela união amigável com associados seletos, não falham em levar alegria e encontra-la por toda parte.” (N.M.)

EDUCAÇÃO


“Não há problema sobre o qual se tenha errado mais do que o da instrução pública e seus métodos. A Natureza, nesse ramo da política social, sofreu um prazer maligno em todas as épocas, ao confundirem as teorias e seus expoentes, desde o tempo da desgraça incorrida por Sêneca, o instrutor de Nero, até o dos fracassos de Condillac e Rousseau, dos quais o primeiro constituiu apenas um idiota político e o segundo sequer ousou se responsabilizar da educação de suas próprias crianças.” (U.U., IV)

“Será observado que, na Harmonia, a única função paterna é se render a seus impulsos naturais, estragar a criança, mimar todos os seus caprichos.

A criança mimada será suficiente reprovada e ridicularizada pelos seus pares. Quando uma criança passa o dia com meia dúzia de tais grupos e sofre suas piadas, ela fica completamente imbuída com um sentimento de sua insuficiência, e fica muito disposta a ouvir os conselhos dos patriarcas e veneráveis que são bons o bastante para lhes oferecer instrução.

Depois disso, terá pouca consequência que os pais se comprazam em mimar a criança na hora de dormir, dizendo que ela foi tratada muito severamente, que ela é realmente encantadora, muito inteligente; essas efusões apenas vão raspar a superfície, elas não irão convencer. A impressão foi feita. Ela está humilhada pelos zombarias dos  sete ou oito grupos de pequenos que ela visitou durante o dia. Será em vão que o pai e a mãe expliquem que as crianças que as repeliram são bárbaros, inimigos do intercurso social, da gentileza e bondade; todas essas platitudes dos pais não terão efeito, e a criança, ao retornar os seristérios infantis no dia seguinte, só vai lembrar das afrontas do dia anterior; na realidade é ela que vai curar o pai do hábito de mimar, redobrando seus esforços e provando que ela é consciente de sua inferioridade.” (U.U., IV)

“A Natureza concede a toda criança um grande número de instintos industriais, cerca de trinta, dos quais alguns são primários ou diretores e conduzem aos que são secundários.

A questão é descobrir antes de tudo os instintos primários: a criança morde a isca assim que se apresenta; desse modo, tão logo ela aprende a andar, deixando o seristério infantil, o cuidador ou cuidadora que se responsabiliza por ela rapidamente a conduz a todas as oficinas e comparece aos encontros industriais próximos dali; e como a criança vê por toda parte ferramentas diminutas, uma indústria em miniatura, na qual crianças de dois anos e meio até três já estão engajadas, e com quem ela está ávida por se associar, bisbilhotar, futucar, no fim de duas semanas podem ser discernidas quais oficinas a atraem, quais os seus instintos industriais.

Havendo uma variedade excessivamente grande de ocupações na falange, é impossível que a criança não encontre oportunidades de satisfazer vários de seus instintos dominantes; estes se exibirão à vista de pequenas ferramentas manipuladas por outras crianças alguns meses mais velhas do que ela.

Segundo os pais e professores civilizados, as crianças são pequenos preguiçosos; nada é mais errôneo; as crianças de dois e três anos são muito industriosas, mas nós devemos conhecer os móveis que a Natureza deseja pôr em ação para atraí-las à indústria nas séries apaixonadas e não na civilização. Os gostos predominantes em todas as crianças são:

1. Bisbilhotice ou inclinação a futucar tudo, examinar tudo, olhar dentro de tudo, e mudar constantemente as acupações.
2. Comoção industrial, o gosto por ocupações barulhentas.
3. Macaquice ou mania imitativa.
4. Miniatura industrial, o gosto por oficinas em miniatura.
5. Atração progressiva do fraco para o forte.

Há muitas outras; limito-me a enumerar essas cinco primeiras, que são bastante familiares ao civilizado. Examinemos o método a ser seguido para aplicá-las à indústria desde cedo.

O homem ou a mulher que cuida dela inicialmente vai explorar a mania de bisbilhotar, tão dominante nas crianças de dois anos. Ela quer mexer em tudo, manusear e examinar tudo que vê. Hoje, ela é separada, colocada numa sala vazia, pois de outro modo ela destruiria tudo.

Essa propensão a manusear tudo é uma isca da indústria; para atraí-la, a criança será conduzida para as pequenas oficinas; ali, ela verá crianças de dois e meio a três anos usando pequenas ferramentas, pequenos martelos. Ela desejará exercitar sua mania imitativa chamada MACAQUICE; serão lhe dadas algumas ferramentas, mas ela vai querer ser admitida entre as crianças de vinte e seis e vinte sete meses que sabem como trabalhar, e que vão rejeitá-la.

Ela vai insistir se o trabalho coincidir com qualquer de seus instintos: o cuidador ou patriarca ensinará alguma parte do trabalho, e ela vai rapidamente ter sucesso se mostrando útil em algumas coisas frívolas que lhe servirão como introdução; examinemos esse efeito com relação a um tipo de trabalho sem importância, dentro do alcance das menores crianças – descascar e escolher ervilhas. Esse trabalho, que conosco ocupa as mãos de pessoas de trinta, será confiado a crianças de dois, três, quatro anos: o salão é guarnecido de mesas inclinadas contendo vários ocos; duas crianças estão sentadas no lado elevado; elas tiram as ervilhas da vagem, a inclinação da mesa faz os grãos rolarem para o lado mais baixo onde três crianças menores são posicionadas, de vinte e cinco, trinta e trinta e cinco meses, encarregadas da tarefa de escolher, e mobiliada com implementos especiais.

A tarefa é separar as menores ervilhas para o guisado adocicado, as medianas para o guisado de toucinho, e as maiores para a sopa. A criança de trinta e cinco meses primeiro seleciona as pequenas que são as mais difíceis de pegar; ela envia todas as grandes e medianas para o próximo oco, onde a criança de trinta meses empurram aquelas que parecem grandes para o terceiro oco, retorna as pequenas para o primeiro, e coloca os grãos medianos na cesta. A criança de trinta e cinco meses, posicionada no terceiro oco, tem uma tarefa fácil; ela retorna alguns grãos medianos para o segundo, e reúne as grandes em sua cesta.

É nessa terceira posição que a criança iniciante será colocada; ela vai se misturar orgulhosamente com os outros no lançamento dos grãos grandes na cesta; é um trabalho bem bobo, mas ela sentirá como se ela tivesse realizado tanto quanto seus companheiros; ela ficará entusiasmada e será tomada por um espírito de emulação, e na terceira sessão ela será capaz de substituir a criança de trinta e cinco meses, retornar os grãos do segundo tamanho no segundo compartimento, e reunir somente os maiores, que são facilmente distinguidos.” (N.M.)

“Se a educação civilizada desenvolvesse em cada criança suas inclinações naturais, veríamos quase todas as crianças ricas se enamorarem com várias ocupações muito plebeias, tais como aquela do pedreiro, do carpinteiro, do ferreiro, do seleiro. Exemplifiquei Luiz XVI, que amava o negócio do serralheiro; uma infanta da Espanha preferia aquele do sapateiro; um certo rei da Dinamarca se satisfazia fabricando seringas; a anterior rei de Nápoles amava vender ele mesmo o peixe que ele tinha pescado na feira; o príncipe de Parma, que Condillac tinha treinado em sutilizas metafísicas, no entendimento da intuição, da cognição, só tinha gosto pela ocupação dos representantes de igreja e a dos irmãos leigos.

A grande maioria das crianças ricas seguiria esses gostos plebeus, se a educação civilizada não se opusesse ao desenvolvimento deles; e se a sujeira das oficinas e a grosseria dos trabalhadores não levantasse uma repugnância mais forte do que a atração. Que filho de príncipe existe que não gosta de uma das quatro ocupações que mencionei, aquela do pedreiro, do carpinteiro, ferreiro e do seleiro, e quem não avançaria nelas se ela contemplasse desde tenra idade o trabalho feito em bonitas oficinas, por gente refinada, que sempre arranjaria oficinas em miniatura para as crianças, com poucas complicações e trabalho leve?” (U.U., III)


Nenhuma tentativa será feita, como no caso da educação atual, de criar pequenos sábios precoces, escolas primárias intelectuais iniciantes, introduzindo desde os seis anos em sutilezas científicas; o propósito será de preferência assegurar a precocidade mecânica; capacidade na indústria corporal, que, longe de retardar o crescimento da mente, o acelera.

Se quisermos observar a inclinação geral das crianças de quatro anos e meio a nove anos de idade, veremos que elas são fortemente atraídas para todos os exercícios materiais, e muito pouco aos estudos; é certo então que, de acordo com o desejo da natureza ou atração, o cultivo material deve predominar nessa idade.

Por que esse impulso da infância para os exercícios materiais? Porque a Natureza quer, sobretudo, fazer do homem um lavrador e um fabricante, para levá-lo à riqueza antes de conduzi-lo à ciência.” (U.U., IV)

[Trechos traduzidos por humanaesfera a partir do inglês e francês]

Nota:
[*] Siglas usadas para obras de Charles Fourier:
Q.M. - Théorie des quatre mouvements et des destinées générales (1808).
U.U. - Théorie de l'unité universelle (1822-1823).
N.M. - Le Nouveau monde industriel et sociétaire ou invention du procédé d'industrie attrayante et naturelle, distribuée en séries passionnées (1829).
F.I. - La fausse industrie morcelée répugnante et mensongère et l'antidote, l'industrie naturelle, combinée, attrayante, véridique donnant quadruple produit (1835).
Man. - Manuscrits de Fourier (1845-1858)

(obs.: todas essas obras podem ser encontradas online em http://gallica.bnf.fr , da Biblioteca Nacional da França)






PARA IMPRIMIR: BROCHURA HUMANAESFERA #5



Humanaesfera #5 é a quinta brochura (livreto) com conteúdos deste site. Este número contém extratos das obras de Charles Fourier e também extratos da primeira publicação comunista libertária, o jornal L'Humanitaire


Neste link, está o PDF com a brochura, que consiste de 6 folhas A4 para serem impressas frente-e-verso (em impressoras que imprimem em frente-e-verso automaticamente, selecione "borda curta" ou "no sentido da borda menor", ou ainda "Frente e verso, orientação vertical"), dobradas e grampeadas no meio. 

Para ler como e-book, baixe a versão EPUB ou esta versão PDF.







Outros clássicos que traduzimos:

Anarquia e Comunismo (1880) – Carlo Cafiero


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