O (QUASE) DISCRETO FETICHE DO GRUPO KRISIS (2001) – ZEROWORKER

[Este texto foi escrito em 2001, quando no Brasil estavam na moda Robert Kurz e seu grupo, o Krisis,  autênticas recauchutagens da velha crítica crítica contra que Marx escreveu A Sagrada Família ou Crítica da Crítica Crítica ]

O grupo Krisis tem ganhado muitos admiradores nos últimos anos. Grupos de estudos se formam e cada vez há mais publicações sobre ele. Este texto busca expor algumas conclusões a que chegamos sobre suas teorias, nossas coincidências e divergências.

Comecemos pelas coincidências. Temos em comum a afirmação de que a simples crítica da mais valia, repetida interminavelmente pelos marxismos, limita-se à crítica a uma das formas do valor, deixando a mercadoria e o trabalho, enquanto tais, intactos, ou, no máximo, criticando na mercadoria uma de suas duas faces, o valor de troca, para perpetuar o valor de uso. Com base nisso, tomando o trabalho e o valor de uso como se fizessem parte de uma suposta natureza eterna antropológica, e não percebendo o caráter histórico da natureza humana, o comunismo foi representado idealmente como generalização do trabalho e dos bens de consumo a todos os homens, não como a abolição de ambos numa associação de produtores livres [1]. Exemplo prático foi o capitalismo de estado (russo, chinês, cubano, etc.), que exaltam, até sugar a última gota de suor e mais-valia, o “orgulho proletário” e o “enobrecimento pelo trabalho”. Não faz sentido, portanto, apoiar esses movimentos autoritários. Até aqui, estamos coincidindo com o grupo Krisis.

Porém, a partir desta constatação, chegamos a conclusões opostas. Segundo as teorias do Krisis, a luta de classes, entendida por ele unicamente sob a forma sindical ou partidária, não rompe a lógica mercantil, pelo contrário, acaba afirmando o capital. O proletariado não nega a mercadoria, mas apenas a mais-valia, igualando-se ao capitalista, já que ambos buscam a valorização de suas mercadorias: por um lado, o capitalista com o sobreproduto do trabalho do proletário, por outro o proletário, com sua força de trabalho, que quer valorizar para poder consumir mercadorias. Portanto, capitalistas e proletários só buscam a valorização e são como que dois grupos concorrentes mercantis. O proletariado, então, é pior ainda, pois anuncia em altos brados sua mercadoria, o trabalho, a pior das alienações, para granjear compradores. Por consequência, afirmam, é impossível que o proletariado, enquanto classe, negue a mercadoria e o trabalho, sendo necessário abandonar a idéia de que a luta de classes possa levar à superação da sociedade atual.

O que imediatamente questionamos é a conclusão implícita nessa afirmação, ou seja, a de que existe ou possa existir algum capitalista, gerente ou burocrata estatal que se interesse em abolir a exploração e, consequentemente, o trabalho e a mercadoria. Talvez nos responderão: os jovens! Estes se rebelam independentemente da classe. É verdade, mas somente se e enquanto, diante do opressão da instituição educacional, reconhecem em si mesmos a força da universalidade humana que escapa e combate toda reificação, toda determinação de classe, todo poder, isto é, enquanto não assumem uma posição nas relações de produção (classe), por força da condição de sobrevivência generalizada imposta pelo capital à totalidade da humanidade.

Portanto, aqueles que, nesta sociedade onde o ser humano só existe como mero vendedor/comprador de mercadorias,  não possuem nenhuma mercadoria, só lhes restando sua força de trabalho, e que, por isso, sofrem a reificação na sua radicalidade, a perda completa do poder sobre os seus próprios atos e seus produtos, reduzidos à condição de trabalhadores (independentemente se em troca disso recebam um salário que, como em alguns países e cidades, permite que comprem espetáculos grandiosos ou se seu trabalho é “autônomo”, imaterial, informal, etc. ou mesmo se está desempregado), isto é, os proletários, são os sujeitos da abolição do capital, do dinheiro e da sociedade do espetáculo, criando uma comunidade mundial onde se possa transformar consciente e poeticamente o mundo a nossa volta, gozando a vida numa associação de produtores livres, isto é, onde tenhamos abolido o trabalho pela atividade humana.

O grupo Krisis ignora completamente o movimento de negação da negação segundo o qual o proletariado nega o capital ao negar a si mesmo como proletariado, se reapropriando de sua condição humana, abolindo a economia e o estado. Esse movimento dialético aflora todas as vezes que os proletários lutam autonomamente contra os patrões e o estado, negando o trabalho enquanto tal, não apenas o trabalho abstrato e a mais-valia, mas a própria alienação da atividade com relação à vida (vide todas as revoluções desde a Comuna de Paris). Mas mesmo quando não há essa luta aberta, subterraneamente, o antagonismo entre proletariado e capital está sempre presente, o nojo ao trabalho, por mais recalcado que seja, é o sentimento inapagável e predominante de todos aqueles que passam pelo constrangimento de uma entrevista de emprego e pela brutalidade de trocar diariamente a vida pela sobrevivência.

Nesse sentido, concebemos que a luta de classes só é realmente enquadrada na dinâmica do capital quando os proletários perdem a autonomia sobre sua luta, deixando que sindicatos, organizações e partidos os representem. Mas aí já não há luta de classes, mas competição entre frações do capital, uma delas se declarando porta-voz do proletariado. São essas competições intercapitalistas, baseadas na negociação do preço da força de trabalho, que o grupo Krisis chama de “luta de classes”. Desconhecendo o combate autônomo dos trabalhadores contra o capital e o trabalho, que é, de fato, a luta de classes, que caracterizou e caracteriza todas as revoluções sociais e contra a qual todas as contra-revoluções foram feitas, inclusive “em nome” do proletariado, como a contra-revolução bolchevique.

Isso nos leva a uma outra conclusão com relação às teorias do grupo Krisis. Apesar de dizer que retoma a crítica marxiana do fetichismo da mercadoria, o grupo Krisis, para nós, apresenta-se como mais uma vítima desse fetichismo. Nos seus textos, o capital aparece como um conjunto de mercadorias com o qual as pessoas se deparam, e não como uma relação entre pessoas mediatizada por coisas. A crítica dessa relação essencial é deixada de lado e substituída pela crítica da aparência de relação imediata entre homens e coisas, na qual não há classes antagônicas e muito menos uma classe contra o capital, mas somente indivíduos diante de mercadorias, as quais, denuncia o Krisis, dominam os homens como se tivessem vontade própria. A crítica do fetichismo da mercadoria realizada pelo grupo acaba movendo-se dentro desse mesmo fetichismo, pois apreende apenas seu negativo imediato, tornando-se refém daquilo que critica. Isso se exprime nas suas análises históricas do capitalismo, visto como movimento automático do valor, ignorando completamente o fato de que as lutas autônomas dos trabalhadores contra sua própria condição, presentes onde quer que haja trabalho, são o limite que o capital sempre encontra, procurando restaurar a produção para suprimi-lo, sendo que as transformações da composição de classe, causa e consequência desse antagonismo, expressam a história do capitalismo e de sua crise.

Essa crítica peculiar fetichista da mercadoria toma ares mais metafísicos com as propostas práticas do Krisis. Ao preconizar uma união, conselho ou seja lá que nome tenha entre indivíduos que negam o capital e o trabalho mas fora das relações de classe e fora do trabalho, parece-nos que as teorias do Krisis compartilham a ilusão de que é possível aos indivíduos, sob o domínio do capital, subsistir exteriormente às relações de produção capitalistas e, a partir desse bastião exterior, combatê-las. Acreditamos que nem mesmo se morássemos em Marte ou na Lua alcançaríamos esse suposto exterior. As teorias do grupo Krisis desconhecem o movimento de superação do capital como automovimento, como negação, concebem-no apenas como movimento mecânico, onde é sempre necessário um motor exterior e unilateral, no caso, uma espécie de “pureza antimercantil”, que o Krisis denuncia como ausente em todas as críticas que não se resumem à abstração que o Krisis fetichiza como esse “primeiro motor”. Queiramos ou não, estamos submersos nas relações de produção capitalistas, a não ser que nos tornemos fantasmas, nos desfazendo de nosso próprio corpo, mas como esta última hipótese não tem nenhum fundamento, buscar essa exterioridade, essa não-contradição, é buscar o nada.

Esse nada é também expressão de outro aspecto das teorias do grupo Krisis. Em todos os seus textos, a teoria é concebida como se fosse hierarquicamente anterior à prática, introjetando nada mais nada menos do que um dos fundamentos da sociedade de classes: a separação entre pensamento e ação. Afirmamos que, na medida em queremos a abolição do trabalho e, portanto, das classes, os momentos teórico e prático não podem ser tomados separadamente, mas são inseparáveis do processo de totalização da vida humana, da história, da autocriação do homem, da afirmação de nossos corpos e gozos, que se opõe ao trabalho e à reificação. Dar primazia à teoria, como faz o Krisis, ou à prática, como faz o tradicional militantismo sadomasoquista, é mutilar o ser humano e perpetuar a própria essência da mercadoria, o trabalho.

O grupo Krisis concebe o mundo apenas como representação, não como atividade. Ele não busca superar a filosofia, mas filosofar a superação. Ou seja, em suas teorias, a vida concreta se degrada em universos especulativos, em nada. A filosofia do Krisis está aquém da de Hegel e Spinoza, para os quais o mundo é automovimento incessante, devir, enquanto o sujeito do conhecimento do mundo é ilusoriamente apartado, alienado no filósofo. O grupo Krisis continua preso à fantasmagoria escolástica do movimento.

Concluindo, admitimos que nos ficou a impressão de que toda a pomposa obra do grupo Krisis não passa de um inofensivo onanismo intelectual, estimulado talvez pelo seu aparecimento constante na imprensa espetacular e certamente estimulando esta.

Zeroworker, 2001

NOTAS:

[1] Marx já havia criticado isso: “[para o comunismo vulgar] a comunidade é só uma comunidade de trabalho e de igualdade de salários pagos pelo capital comunal, pela comunidade como capitalista universal. Os dois aspectos da relação são elevados a uma suposta universalidade; o trabalho como uma situação em que todos são colocados, e o capital como a universalidade e poder admitidos na comunidade.” (Marx, Manuscritos Econômicos e Filosóficos). Mais adiante ele explica o que entende por comunismo: “Numa perspectiva socialista, não só a riqueza como também a pobreza do homem, adquire o significado humano, e portanto social. A pobreza é o vinculo passivo que leva o homem a experimentar uma carência da máxima riqueza, a outra pessoa. O ímpeto da entidade objetiva dentro de mim, a rotura sensorial de minha atividade vital, é a paixão que aqui se torna a atividade de meu ser.”

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