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domingo, 3 de março de 2019

"Internet das Coisas" e subsunção real da sociedade ao capital


Segundo o artigo Huawei, o 5G e a Quarta Revolução Industrial na China, a internet das coisas, base de uma suposta "4ª revolução industrial", está tendo um forte desenvolvimento e implementação, especialmente na China, com o 5G.

Já analisamos as consequências evidentes disso (juntamente com o "Blockchain") para as condições de vida da humanidade no capítulo 8 do texto "A internet: uma história de invocação, bolhas e subsunção ao capital". Abaixo, transcrevemos esse capítulo:

"8. TRANSFUSÃO DAS FORÇAS DESTRUTIVAS NOS POROS DO MUNDO FÍSICO - EMBUTIMENTO DA PROPRIEDADE PRIVADA NA "NATUREZA DAS COISAS": A UTOPIA SUPREMA DO CAPITAL (FELIZMENTE AINDA IRREALIZÁVEL)

A dominação do capital, antes de tudo e desde sempre, é o embutimento artificial da escassez na natureza objetiva. É a natureza transformada pelo trabalho alienado dos seres humanos em um poder separado deles, a propriedade privada. A população se torna privada de suas condições de existência materiais, e, consequentemente, todos, democraticamente, se vem forçados a comprar e, para isso, forçados a vender mercadorias voluntariamente, se quiserem sobreviver.

Nas sociedades pré-capitalistas, na servidão e na escravidão, a dominação era pessoal, diretamente de homens sobre outros homens, a vontade pessoal de uns sendo imposta diretamente à dos outros, negando-a. Diferentemente, o aspecto mais básico da sociedade capitalista é que ela transforma a dominação e exploração do homem pelo homem em algo que é voluntário, manifestação do livre arbítrio de cada um. Isso porque ela se dá numa condição coercitiva objetiva, a privação de propriedade, que impõe objetivamente, ou seja, de modo "neutro" ("democrático", "impessoal", "razoável", "justo", "natural") a necessidade de competir pela submissão à propriedade privada, à classe capitalista, para ganhar um salário e sobreviver. 

Visto que cada proletário, porque é privado de meios de produção, não tem nenhuma coisa para vender, ele, se quiser sobreviver (socialmente e fisicamente), só tem a opção de vender voluntariamente a si mesmo, suas capacidades vitais, no mercado de trabalho, aos proprietários dos meios de produção (a classe capitalista). Ele tem livre arbítrio, já que "pode" escolher morrer de fome ou se tornar mendigo ao invés de se vender. Comprada pelos capitalistas, estes consomem essa mercadoria: o proletário é colocado para trabalhar e transformar a natureza aumentando o poder objetivo que o confronta como uma força hostil, a propriedade privada.  Quanto mais ele trabalha, tanto mais privado de propriedade se torna, mais poderosa se torna a propriedade privada, e tanto mais transfere as capacidades humanas para ela (capital fixo: máquinas, automação, conhecimento e know-how tornados propriedade privada intelectual), criando ativamente o que o torna cada vez mais descartável, privado de propriedade, proletário. 

Em suma, na sociedade capitalista, a dominação se apresenta como um imperativo da realidade objetiva, uma "força da natureza" ("segunda natureza") que foi criada pelo próprio trabalho humano.  A escassez, a privação de propriedade, a propriedade privada, se reproduz como uma força independente que comanda todos os seres (humanos e não-humanos), inclusive a pessoa do capitalista (e também os Estados) que, se falharem na competição por acumular capital, entram em falência, e são automaticamente substituídos por outros mais "eficientes" nisso (é por isso que usamos a palavra "capital", pois é ele, de fato, que comanda a sociedade da mercadoria segundo uma lógica autônoma, automática, mas opaca, enquanto os capitalistas são apenas agentes, personificações do poder do capital, obrigados a aplicar os ditames da acumulação do capital sobre os seres humanos sob pena de caírem no inferno de se tornarem também proletários).

Mas, até hoje, a sociedade capitalista foi impossível sem um poder central, que, com polícia e prisões, impõe pela violência o respeito à propriedade privada, valida centralmente a equivalência dos meios de troca e de pagamento (dinheiro, crédito), protege e garante os contratos entre proprietários, e reprime a luta dos proletários contra a privação de suas condições de vida (luta que, por definição, desrespeita a propriedade privada dessas condições). Assim, a sociedade capitalista tem um calcanhar de Aquiles bastante concentrado e visível, que, se for atacado, desarranja instantaneamente todas as engrenagens do sistema da propriedade privada. Evidentemente, a existência desse ponto vulnerável, o Estado, causa grande preocupação à classe proprietária. 

Até hoje, a única maneira da classe proprietária justificar e legitimar o Estado - que é simplesmente uma empresa territorial, que, como todo capital, é uma ditadura para imposição do trabalho assalariado, submetida aos mesmos imperativos da acumulação do capital de qualquer outra empresa - foi apresentá-lo imaginariamente como neutro, acima das classes e do capital. Isto é, "Estado de Direito", representação de sujeitos (o cidadão) cuja "autonomia" coincide com sua sujeição voluntária a ele, em que o cidadão elege seu próprio patrão (que competem para serem escolhidos nas urnas), representação da "vontade geral do povo". Em outras palavras: a ideologia democrática (ou "socialista", como nos países de capital nacionalizado tais como a URSS e Cuba).

Porém, essa legitimação puramente imaginária nunca é plenamente convincente, e muitos capitalistas preferem pregar que o Estado é totalmente separado e alienígena à propriedade privada, enquanto que na realidade, como vimos, ele sempre foi de fato a instituição suprema e indispensável que garante sua existência. É simplesmente impossível que exista propriedade privada sem polícia, tribunais, forças armadas e prisões. Até hoje.

A tecnologia blockchain (o chamado smart contract) está sendo hoje fortemente financiada com o explícito objetivo de, no futuro, tornar a propriedade privada algo que já não dependerá mais de absolutamente nenhum "poder central", se tornando embutida no comportamento automático e descentralizado das coisas e, portanto, nas relações entre humanos mediadas por essas coisas. 

O objetivo é fazer cada coisa espontaneamente verificar, homologar e validar a condição pressuposta de privação de propriedade. Isso significa instantaneamente autenticar a escassez artificial de tudo pela equivalência quantitativa imposta pela propriedade privada: desde a homologação da limitação do uso pelo pagamento, a limitação da cópia por licenças de cópia, da autenticação do comando pela execução do trabalho, o enforcement instantâneo do respeito a patentes e propriedade intelectual em todas as coisas, e até das leis com os casos em que ela se aplica, etc. 

Com isso, cada objeto tenderá a deixar de ser um "produto" - que é comprado de uma vez, e cujo uso, após ter sido comprado, é independente da empresa e do mercado - para se tornar um "serviço" - em que uma assinatura ou uma licença é paga continuamente pelo seu uso, como um aluguel. Isso torna seu uso a curto prazo aparentemente muito mais barato e acessível para os proletários, mas acarretará que a classe proprietária terá o poder de impor diretamente a todo e qualquer uso o ditame da escassez contínua, e a "monetização" até dos gestos mais corriqueiro (especialmente com a popularização da wearable technology, p.ex., "roupas inteligentes", realidade aumentada, próteses "transhumanas",  sensores biomédicos, etc), tais como se vestir, andar, ir ao banheiro, dar descarga, bocejar, ver, ouvir, falar, respirar, até o peristaltismo, a circulação do sangue, as sinapses cerebrais ...  Todos os gestos, e até o funcionamento do organismo humano, a partir de então, encarnarão a coerção ao trabalho. Será preciso, de maneira ainda mais intensa do que hoje, trabalhar desesperadamente para conseguir dinheiro para pagar por existir.

É um cenário em que a "internet das coisas" assumirá por si só, automaticamente, o papel de cunha policial-penal que separa as capacidades das necessidades humanas, impondo a submissão à reprodução da propriedade privada dos meios de vida e de produção em absolutamente todos os aspectos da existência humana. 

A utopia da propriedade privada, como vimos, sempre foi converter a  totalidade das circunstâncias em que os seres humanos se encontram em imperativos "naturais", "objetivos", "automáticos" e "voluntários" de submissão aos ditames da acumulação do capital, ao máximo de trabalho. A diferença agora é que, com essas duas tecnologias, blockchain e internet das coisas, a polícia será automática, ela estará na "natureza das coisas". A prisão poderá ser o sofá da tua casa ou a própria "casa inteligente" (smart home), que subitamente tranca o "colaborador"; ou poderá ser todas as coisas (todos os "serviços" na smart home e na smart city) que, de uma hora para outra, param de funcionar para ele, isolando-o da sociedade que só existe conectada nelas. E o julgamento do "crime", um algorítimo descentralizado que devolve ao "criminoso" - que nada obriga que seja informado de que foi acusado, julgado e condenado (como já são hoje os "banimentos" nas redes sociais e nas empresas de "economia colaborativa") - a execução automática da pena. "Direito" e "fato" se tornam indistinguíveis. A ideologia do "Estado de direito" torna-se totalmente desnecessária para legitimar a cunha policial-penal, que se torna a própria objetividade "neutra" das condições em que cada indivíduo atomizado se encontra forçado a "livre escolher" voluntariamente. [17]

Felizmente, tudo isso ainda é apenas o sonho do capital. E não há dúvida de que a mínima tentativa de realizá-lo, numa sociedade que é um mecanismo cego de cujo funcionamento os capitalistas e seus tecnocratas são inerentemente os menos entendidos (por terem a práxis - e portanto o pensamento - totalmente nublada pelo fetichismo da mercadoria), levará certamente a efeitos incontroláveis que ameaçarão desarranjar e fazer ruir por inteiro o próprio funcionamento global do capital. (Por exemplo, veja o que aconteceu recentemente com a pequenina experiência da criptomoeda Bitcoin - da qual se originou a própria ideia de blockchain -, criada com base na fé fetichista inabalável na mão invisível atuando pela tecnologia automovente, pelo trabalho morto.) 

É muito mais provável que, no fim, a tecnologia blockchain seja utilizada principalmente pelos Estados, para manter seus registros instantaneamente atualizados e tornar esquemas de vigilância, julgamento, punição e policiamento automaticamente unificados e imediatos ao máximo. Ou senão, o que dá no mesmo, por empresas que na divisão do trabalho farão o papel unificador (a "interoperabilidade") necessário para o andamento da sociedade capitalista (que, sem isso, colapsa dilacerada pela competição, pela guerra de todos contra todos que a movimenta), cobrando taxas pelo acesso ao blockchain que é sua propriedade privada - p.ex. as implementações do blockchain, como o Ethereum, são assim -, propriedade privada que ao mesmo tempo será a infraestrutura unificante indispensável para todas as transações e coisas produzidas na sociedade capitalista. Na prática, essa taxa será a mesma coisa que um imposto, assim como essas empresas serão a mesma coisa que um Estado, que apenas deixaria de se adornar com a fachada ideológica democrática ("república", "monarquia constitucional", "socialismo") para se tornar diretamente uma monarquia absolutista corporativa (aliás, como sempre foi de fato, de um modo ou de outro: ditadura do empresariado).

Quanto à inteligência artificial, e as ilusões sobre ela, sobre desemprego e sobre renda básica universal, não vamos falar aqui, porque anteriormente já tratamos disso no texto:  Inteligência artificial, desemprego e renda básica universal: mais uma panaceia da classe proprietária."

Este é o capítulo 8 do texto "A internet: uma história de invocação, bolhas e subsunção ao capital" (o texto completo está no link).


segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Propriedade Absoluta (1982), de G. Kay & J. Mott


Traduzimos o texto "Propriedade absoluta", primeiro capítulo do livro “Political Order and the Law of Labour”, de G. Kay & J. Mott (Macmillan, London, 1982). Tradução para o português pela humanaesfera a partir da versão que pode ser encontrada em https://libcom.org/library/absolute-property-g-kay-j-mott. 

Índice:


Introdução

1- Propriedade privada 

2- Propriedade intensificada 

3- A abstração e a crítica da natureza

4- Forma social

5- O Estado

6- Abundância



Trecho:

"Na sociedade moderna, onde as condições de vida são propriedade privada, as necessidades são separadas das capacidades. Um estado de abundância alteraria isso. Necessidades e capacidades se encontrariam, fechando o espaço entre elas. Na sociedade moderna, esse espaço é ocupado pelas densas estruturas da propriedade privada – a ordem política e a lei do trabalho.
[...]
No coração da teoria da propriedade privada, o direito natural colocou o trabalho – a relação do homem com a natureza, posta em termos de pessoas legais e coisas. Isso deu surgimento à forma elementar da propriedade privada, persona-res. Mas, ao contrário do que parece à primeira vista, esta forma elementar da propriedade não é uma estrutura auto-contida de uma pessoa e uma coisa. É uma ordem social dentro da qual cada ato de propriedade é geral na medida em que o trespasse deve ser proibido. No entanto, embora a propriedade privada sempre assuma a forma de relação social entre pessoas, ela não é uma forma em que as coisas têm um papel passivo. Na sociedade política, as coisas tem vida própria.
[...]
Ali onde a propriedade privada é o modo universal de apropriação, a forma legal persona-res é a ossatura que unifica a sociedade. A necessidade de uma tal amarra especialmente desenvolvida surge quando é negado aos elementos ligados por ela a possibilidade de estabelecerem uma unidade direta em si mesmos. A própria existência de uma amarra jurídico-legal entre pessoas e coisas pressupõe uma verdadeira separação. De fato, a propriedade privada pressupõe não apenas uma, mas toda uma série de separações das quais esta é a primeira: a saber, as condições materiais de vida são coisas jurídico-legais sobre as quais nenhuma pessoa pode exercer uma reivindicação direta. Nada na sociedade capitalista pode ser adquirido mediante a simples possessão ou direito natural, visto que não há relações diretas entre os homens e o mundo à sua volta. Assim, a primeira separação implicada pela propriedade privada como sua condição de existência, uma existência que continuamente reproduz essa condição, é a divisão categórica entre pessoas e coisas, cujo refinamento como sujeitos e objetos jurídico-legais, longe de superar a separação, na verdade a reforça. Esta primeira cisão é completada por uma segunda – a separação entre sujeito e sujeito e entre objeto e objeto – através da qual se faz com que a propriedade privada funcione como sistema.

O aspecto distintivo da propriedade moderna que a diferencia das formas mais antigas e menos desenvolvidas da antiguidade clássica e do feudalismo é que essas duas separações, que resultam em um mundo de sujeitos individuais de um lado e de objetos discretos do outro, se tornaram absolutas ao se combinarem para formar uma terceira: a separação do direito de propriedade face a todos os objetos. Na sociedade capitalista, as capacidades jurídico-legais que selam um indivíduo como detentor de propriedade não derivam da posse direta. Quando, neste sentido, a propriedade é absoluta (propriedade absoluta), uma cunha é colocada entre o direito de propriedade e todos os objetos, criando um abismo entre sujeitos e objetos e abrindo um espaço que é imediatamente preenchido pelo Estado. A sequência é lógica, não sequencial: a separação entre a subjetividade e os objetos não acontece primeiro criando um espaço que o Estado ocupa depois - os eventos ocorrem simultaneamente. O espaço é preenchido no mesmo momento de sua criação, dado que está na natureza deste espaço existir apenas como espaço ocupado. A fundação da propriedade absoluta e o estabelecimento do Estado são momentos recíprocos do mesmo processo. [...]" Propriedade Absoluta (1982), de G. Kay & J. Mott.

Link para o texto completo: "Propriedade absoluta"


sexta-feira, 2 de março de 2018

Teoria comunista telegráfica


(English translation: Telegraphic communist theory)

Abaixo, uma apresentação telegráfica (i.e., concisa e direta) da teoria comunista, expondo conceitos básicos, como capital, proletariado, luta de classes, revolução e comunismo. 




teoria comunista telegráfica


1
 Temos capacidades e necessidades.


2
Sem separação entre nossas capacidades e nossas necessidades é impossível que ocorra compra e venda.


3
A compra e a venda pressupõem a privação dos meios pelos quais nossas necessidades são satisfeitas por nossas capacidades. Essa privação é a propriedade privada, que nos transforma em proletários.


4
A propriedade privada assegura (graças à força repressiva do Estado) uma situação de contínua escassez, tal que a compra e a venda ocorram continuamente e não tenham fim.


5
A separação entre nossas capacidades e nossas necessidades se torna uma relação na qual só nos resta vender a única coisa que ainda temos - nossas capacidades de pensar e de agir, a força de trabalho - aos donos da propriedade privada se quisermos receber dinheiro para pagar pelas coisas que necessitamos para sobreviver (salário). Mas nem tudo é tão sombrio, pois a propriedade privada oferece também a liberdade de escolher outra opção: se tornar mendigo, morar na rua, morrer de fome, prisão....


6
Quando vendemos nossas capacidades (isto é, quando nos vendemos no mercado de trabalho), o trabalho e tudo o que produzimos com nosso trabalho pertencem à propriedade privada. Quanto mais trabalhamos, mais aumentamos a propriedade privada, ou seja, maior o fosso entre nossas capacidades e nossas necessidades, mais somos privados de meios de vida e mais somos submetidos ao poder dos proprietários.


7
Trabalhando, cada vez mais transformamos todos os aspectos do mundo em propriedade privada. Cada vez mais privados do próprio mundo em que vivemos,  mais somos expulsos deste mundo, usados e lançados na rua, na sarjeta, para depois sermos consumidos novamente, descartados outra vez e assim por diante - somos o proletariado, a esmagadora maioria da população do mundo. A propriedade privada que graças ao nosso próprio trabalho se acumula crescentemente como um poder hostil cada vez mais poderoso e desumano contra nós chama-se capital.


8
Consumidos, usados, esgotados, estressados, irritados, mutilados. ansiosos, deprimidos, vivendo sempre por um fio, estamos continuamente em contraposição existencial e material ao capital, não importando qual a nossa vontade, opinião ou consciência. Ser privado de propriedade, ser proletário, não é uma condição que escolhemos, é uma condição imposta pela existência da propriedade privada, da mercadoria, do capital, do Estado. Essa contínua contraposição existencial ao capital é o conflito que está no cerne da sociedade capitalista em todo mundo: a luta de classes.


9
A classe dominante (o empresariado particular ou estatal, burocratas, gestores...) luta para desviar e canalizar as insatisfações dos proletários direcionando-as contra outros proletários (seja colegas de trabalho, desempregados, vizinhos, proletários de outra empresa, de outro país, outro bairro, outra cor de pele, opinião, formato do nariz, sexo, costumes, gênero, língua, gosto, time de futebol...), para que seja ilusoriamente atribuída a estes, como bodes expiatórios, a causa de seus sofrimentos (estresse, esgotamento, irritação, medo de ser descartado na competição, fome, depressão, violência, escravidão, desamparo), sofrimentos que são na realidade causados pela existência da propriedade privada, do trabalho, do capital. Na competição entre proletários por se submeterem à propriedade privada (isto é, à classe dominante e ao Estado) em troca da sobrevivência, eles encontram os outros proletários como inimigos de fato, competidores reais que estão atrapalhando seu difícil esforço de sobreviver no mundo cão da propriedade privada.


10
Como a classe dominante tem sido vitoriosa na luta de classes até hoje (caso contrário, a sociedade capitalista, o trabalho, a propriedade privada e o Estado já teriam sido superados), a situação descrita acima é a situação "normal" que necessariamente predomina com estardalhaço enquanto a sociedade capitalista se perpetua, uma situação em que não há classes, mas apenas "cidadãos" numa competição infernal pela sobrevivência, por propriedades, e por capital. No entanto, isso é só a aparência mais superficial: na realidade, os proletários, independentemente de sua vontade, consciência ou opinião, lutam incessantemente para trabalhar o mínimo e para que tudo o que necessitem seja o mais grátis possível, em oposição direta aos donos da propriedade privada, que lutam (também independentemente de sua vontade ou opinião) para que os proletários trabalhem ao máximo (aumentando a propriedade privada, isto é, a privação de propriedade, o capital, e seu poder de classe dominante) e para que tudo lhes seja o mais caro possível ao lhes pagar o mínimo salário que puder. Esse conflito, a luta de classes, constitui o cerne essencial da sociedade capitalista no mundo todo, um conflito que o capital se esforça de todas as maneiras para acabar (desde o "Estado de bem estar social" até a matança em massa) mas não pode.


11
Essa luta que os proletários já travam contra o capital continuamente em todos os lugares na sociedade capitalista só pode ter êxito se eles, na sua práxis concreta, conseguirem destruir o que separa suas capacidades de suas necessidades, ou seja, se abolirem a propriedade privada dos meios de vida e de produção, suprimindo o trabalho, a mercadoria, o Estado e o capital. Para isso, é necessário que se comuniquem e ajam associativamente em escala mundial, fraternizando entre si contra "suas" classes dominantes em todos os lugares, suprimindo rápida e simultaneamente todas as fronteiras, propriedades privadas, empresas, empregos, desempregos, Estados, nações, identidades (que nada mais são que estereótipos), em suma, que destruam todas as condições que os coagem, contra si mesmos, a se unir às propriedades privadas e aos Estados, que estão sempre em competição e guerra entre si para que os explorados se sacrifiquem e sacrifiquem uns aos outros para defender seus próprios exploradores.


12
Uma tal fraternização e associação sem fronteiras dos explorados que destrói a sociedade de classes simultaneamente em todo mundo é impossível e sem sentido se não for ao mesmo tempo a apaixonante criação universal (isto é, cosmopolita) das condições materiais em que a afirmação prática das necessidades e capacidades de cada um, isto é, a liberdade de cada um, não mais é coagida a limitar nem privar a liberdade dos outros (e de si mesmo) tal como é sob a propriedade privada (que por isso é sempre sinônimo de Estado, de polícia...), mas, pelo contrário, onde a liberdade de cada um se multiplica quanto maior for a afirmação prática das capacidades e necessidades de todos os outros, quanto maior for a liberdade de todos os outros, a imensa riqueza que é a existência de toda a humanidade, isto é, da comunidade humana mundial. O movimento mundial em que o proletariado afirma livremente as necessidades e capacidades humanas, impondo-as ditatorialmente contra a ditadura do capital, do dinheiro, da propriedade privada e do Estado, é o comunismo.

humanaesfera, março de 2018



Veja também essa série de textos que desenvolvem vários aspectos apresentados acima:

- Propriedade privada, escassez e democracia

- Contra a metafísica da escassez, copiosidade prática

- Condições de existência universalmente interconectadas/interdependentes

- Contra a estratégia

- Propriedade privada, substância do Estado



A seguir, uma bibliografia básica sobre teoria comunista (a teoria comunista verdadeira e não aquelas teorias, como o leninismo, que interpõe reformas capitalistas, isto é, a continuação do trabalho assalariado, da propriedade privada ["nacionalizada], do capital [concentrado no Estado] e do Estado, em suma, teorias que defendem a continuação da exploração em nome de um futuro distante onde supostamente exista o comunismo):

BIBLIOGRAFIA BÁSICA SOBRE A TEORIA COMUNISTA:

A reprodução da vida cotidiana (Fredy Perlman, 1969)

Capitalismo e comunismo (Jean Barrot/Gilles Dauvé, 1972)

Dois textos contra o trabalho (GCI, 1979 e 1982)

A recusa do trabalho (Comitato Operaio di Porto Marghera, 1970)

Abolição do trabalho e a questão do circuito produtivo global no comunismo (Joseph Kay / Libcom, 2008)

O mito do socialismo cubano (Kaos, 1997)


Quando as insurreições morrem (Gilles Dauvé, 1998)

terça-feira, 29 de julho de 2014

Propriedade privada, escassez e democracia

(English version)

"Ninguém vota; nunca a maioria e nem a minoria fazem a lei. Se esta ou aquela proposta reúne um número suficiente para executá-la, quer seja a maioria ou a minoria, então a proposta será executada, se for esta a vontade daqueles que aderem a ela." Descrição de uma livre associação no comunismo futuro por Joseph Déjacque (em Le Humanisphère, 1857).

Apenas uma condição fundamenta a exigência de democracia (inclusive direta): a escassez. A exigência democrática só faz sentido no próprio terreno em que viceja a propriedade privada - a inacessibilidade, a privação, a tirania. A votação e o lucro são dois polos da mesma privação de acesso da população às suas condições de existência. Ambos supõem o Estado, isto é, a violência - num polo, policiamento para garantir pela força a monopolização que cria o escasso (propriedade privada e preço, isto é, o "livre mercado"), no outro polo, policiamento para compensar a monopolização (repartição igualitária, votação, chatíssimas assembléias, distribuição de rações e esmolas de "bem estar social"). São os dois polos da legitimação de um mesmo status quo. 

O que subjaz aos dois polos é o modo de produção privado, capitalista. Só o que é monopolizado tem um preço - a escassez é a própria condição de existência do mercado, a própria definição de propriedade privada. O valor das mercadorias é proporcional à dificuldade ("trabalho") de acesso à sua produção. Logo, seu modo de produzir nunca passa de mero trabalho, isto é, uma atividade que, desprovida de todo valor intrínseco, só vale por outra coisa (recompensa, retribuição, mérito, salário, dinheiro, lucro), portanto, sempre abstrata e servil. As máquinas substituem o trabalho, mas, no modo de produção privado, sua função é apenas açoitar com desemprego os proletários para que “se ofereçam” para trabalhar ainda mais por ainda menos. Para ultrapassar a base material de tudo isso, é preciso arrancar essa camisa-de-força, a propriedade privada, e liberar as forças produtivas mundiais para que se tornem condições práticas livremente acessíveis a qualquer um que queira satisfazer suas inclinações, necessidades, desejos e desenvolver suas faculdades, capacidades e paixões - como atividades que valem por si mesmas. 

Nessa perspectiva, mesmo a reivindicação democrática mais radical de autogestão ("fábrica aos operários!", "terra aos camponeses!") se revela intrinsecamente refém da propriedade privada e, portanto, do Estado (isto é, da violência), inclusive da mitologia nacionalista ("a nação aos nacionais!"). A autogestão das empresas é hoje claramente indefensável, porque, se há empresas (sejam autogeridas ou não), as condições de existência da população continuam privadas para ela, isto é, os proletários continuam coagidos a vender a si mesmos no mercado de trabalho em troca da sobrevivência (salário). Só é possível abolir essa privação (a propriedade privada) mediante a abolição da empresa (não importa se particulares, cooperativas, estatais...), como também o fim das próprias fronteiras nacionais, liberando as forças produtivas em escala mundial ao interconectá-las numa rede de fluxos imanentes que suplanta a troca de equivalentes (não mais a redução da produção a uma régua extrínseca, por exemplo, o mercado, o lucro e a hierarquia). Daí em diante, os meios de produção não poderão mais ser propriedade de ninguém porque se tornaram, em si mesmos, a própria comunidade mundial material dos indivíduos em livre associação. 

Abolida a empresa, não fará mais sentido falar em empregados e nem desempregados *, mas apenas de indivíduos, que se associam livremente através de suas inúmeras paixões, necessidades, projetos, desejos, inclinações... cujas livres expressões serão a própria produção, a própria atividade (não mais sujeita a nenhum equivalente, visto que assim será desmantelada a base da dominação que é o sistema de recompensas e punições) . Isso terá por consequência que, sem haver mais nada que constranja ninguém a vender (a si mesmo no mercado de trabalho) para sobreviver, ninguém mais será constrangido a comprar, o que torna o mercado completamente obsoleto (provavelmente, como hobby à toa, o mercado ainda existirá, mas nunca mais como elo social obrigatório). A base material para o florescimento da individualidade livre é o comunismo, porque ele é a ultrapassagem do terreno da massificação comparadora, da coerção chamada competição (mercado, nações, hierarquia...). 

É verdade que, por razões naturais ou de insuficiência técnica, algumas (ou muitas, provavelmente) produções inevitavelmente continuarão raras, escassas e pouco acessíveis e serão portanto ainda sujeitas ou à democracia (votação para decidir um critério: sorteio, repartição igualitária, redistribuição conforme o "trabalho", ou conforme os mais urgentemente necessitados...) ou à apropriação privada direta. Porém a capacidade de superação do capitalismo pelo comunismo será tanto maior quanto mais seu fundamento material, que é a produção livre, predominar sobre a democrática, isto é, quanto mais a riqueza for desfrutada enquanto criatividade livre na comunidade humana mundial. Em contraste, se o aspecto democrático predominar, isso significa que o terreno em que brota o capital e o Estado (democracia ou ditadura) não foi superado e provavelmente eles retornarão de uma maneira ou de outra (a começar pelo "mercado negro", a sobrevivência do Estado e o mito da nação), por serem a forma social mais adequada ("legítima", dirão) à escassez, ao monopólio, à propriedade privada, à tirania.

Um esclarecimento final: todas as idéias aqui apresentadas se resumem a posições clássicas do proletariado desde pelo menos o século XVIII (Ver a bibliografia logo abaixo). E como nenhuma dessas necessidades mínimas foi ainda satisfeita - sendo, ao contrário, reprimidas quase ao ponto de se tornarem inconscientes - e como a extensão e intensidade da proletarização hoje são a maior da história, o comunismo continua mais urgente do que nunca. 

Humanaesfera, julho de 2014

Notas:
* Justamente porque não haverá mais emprego nem desemprego, a divisão do trabalho será suplantada por uma divisão de tarefas decorrente de uma coordenação explícita e consciente de ações heterogêneas com vistas a fins específicos que uma livre associação dos participantes decidir executar (eles mesmos, já que a sociedade de classes foi abolida) através da rede mundial de meios de produção gratuitamente acessível à qualquer um. É precisamente esse fluxo imanente das forças produtivas mundiais e das capacidades humanas, ao abolir a divisão do trabalho, que torna obsoleta a troca de equivalentes, o mercado... e o próprio trabalho.

[Resposta à uma objeção a este texto: Contra a metafísica da escassez, copiosidade prática]

Bibliografia (com links):

-A reprodução da vida quotidiana, por Fredy Perlman
-Eclipse e Reemergência do Movimento Comunista (1972), por Jean Barrot e François Martin
-Contra o trabalho - Teses (1979), por GCI
-Atividade Humana contra o Trabalho (1982), por GCI
-Agora e Depois: O ABC do comunismo libertário (1929), por Alexander Berkman
-Le Humanisphère (1857), por Joseph Déjacque
-Nova Babilônia (1959-74), por Constant Nieuwenhuys (publicado no Dossiê "Constant", revista Sinal de Menos nº 5)
-Um Mundo sem Dinheiro: o Comunismo (1975-76), por Os Amigos dos 4 Milhões de Jovens Trabalhadores
-Questionário (1964), por Internacional Situacionista (dossiê Internacional Situacionista)
-Crise e Autogestão (1973), por Négation
-A rede de lutas na Itália ( anos 1970), por Romano Alquati
-Kropotkin: Textos Escolhidos - org.: Mauricio Tragtenberg
-Grundrisse, A Ideologia Alemã (capítulo: Feuerbach) e Comentários sobre James Mill, por Karl Marx
-Marx comunista individualista! (trechos sobre o indivíduo em Marx)
-O Anti-Édipo, por Deleuze e Guattari




Continuação das reflexões deste texto: 


 Perspectiva prática: 

sábado, 15 de fevereiro de 2014

O mito do socialismo cubano (Kaos, 1997)

Texto publicado em KAOS #0 08/97 (boletim aperiódico e experimental do Grupo Autonomia).

"O estado, qualquer que seja sua forma, é apenas uma máquina a serviço do capital, o estado dos capitalistas." Roig de San Martin – El Produtor de La Habana, 1888.

No mundo inteiro, o estado é o instrumento que o capital utiliza para reproduzir sua dominação. Os marxistas-leninistas de variadas genealogias e tinturas insistem em apresentar o regime cubano como uma exceção. 

A política castrista, mera variante do stalinismo, gira em torno do estado. Em Cuba, o estado se apresenta como popular, operário, socialista, defensor dos interesses dos trabalhadores, distribuidor da riqueza e encarregado das mudanças no sentido do comunismo. 

Mas a verdadeira revolução nada tem a ver com um 'governo operário'. O objetivo da luta do proletariado não é tomar o poder político, nem apoderar-se do estado para utilizá-lo em seu interesse. O estado, seja qual for a classe dominante, continuará reforçando o capital. Pretender utilizar o estado para servir ao proletariado é uma manobra reacionária da esquerda do capital. O estado nada mais é do que o capital concentrado, centralizado para reproduzir o sistema universal de escravidão assalariada. 

Além de não ser exceção, Cuba é uma confirmação da regra. O estado cubano também exerce o monopólio da violência para assegurar a exploração e a opressão sobre os proletários, colocando-os à disposição do capital. O desarmamento do proletariado é um exemplo ilustrativo. O fato de que somente ao exército e à polícia seja permitido ter armas faz com que os trabalhadores se sintam permanentemente coagidos. Toda e qualquer tentativa de auto-organização dos trabalhadores é brutalmente reprimida. 

Em Cuba, o ódio contra a escassez de gêneros de primeira necessidade e a miséria vigente é canalizada contra o imperialismo yankee e o bloqueio econômico, ou, eventualmente, a corrupção da burocracia. Nada de novo sob o sol: o descalabro da economia russa foi, durante muitos anos, apresentado como efeito da corrupção e da burocracia. Aqueles que faziam tais denúncias não eram apenas os trotskistas – esses infatigáveis 'apoiadores críticos' de todos os estados capitalistas tingidos de vermelho... Periodicamente, os membros do comitê central do partido-estado bolchevique também denunciavam, cumprindo o ritual leninista da crítica & autocrítica. Em resumo, tem-se feito todo o possível para ocultar que o verdadeiro mal é a sociedade capitalista e sua organização política: o estado. 

O proletário cubano se encontra, como qualquer outro, separado de todo meio de vida, de todo o meio de produção necessário para viver. Em Cuba, como em qualquer outro país latino-americano e do resto do mundo, o trabalhador enfrenta duras condições de sobrevivência, concentradas como forças alheias e hostis, inteiramente privado (propriedade privada significa exatamente isto!) de seus meios de vida. No latifúndio de Fidel Castro, a propriedade privada não foi abolida, mas concentrada e metamorfoseada juridicamente em propriedade estatal. 

Ao contrário do que dizem os apoiadores críticos e outros defensores do regime castrista, a revolução social é a destruição completa do mundo burguês e de suas reformas, dirigidas pelo estado e no interesse do capital, temperadas com amenas críticas à burocracia. Efetivamente a revolução social não consiste, antes, em conquistar a direção do estado para, depois, realizar uma série de reformas sócio-econômicas. Ao contrário, desde o início, a revolução social consiste em destruir o poder total (militar, econômico, político) da burguesia; em criar a comunidade humana mundial, baseada nas necessidades humanas e não nas necessidades do capital.





quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O futuro ainda está nas mãos dos proles!

O mercado mundial, desde o século XVIII, liberta de fato a humanidade das relações de sujeição pessoal (senhores/escravos, mestres/servos,  relações de vassalagem etc.),  que eram baseadas na suposta origem divina, ancestral ou hereditária das pessoas.

Antes, as castas, a servidão, a escravidão, as guerras entre tribos, eram mantidas imaginando-se que tivessem origem divina ou cósmica, e do mesmo modo, determinados povos e pessoas eram tratados como destinados à sujeição por motivos míticos, religiosos, hereditários, ou eram supostos serem naturalmente inimigos por ancestralidade (como entre os indígenas sul-americanos).

O mercado mundial emancipa a humanidade desse seu passado horrendo. Isso porque, na troca de mercadorias, não interessa para as partes a origem das pessoas que vendem e compram, o que interessa é o valor da mercadoria que elas negociam. Logo, as relações entre vendedores e compradores minam e destroem as relações de desigualdade e sujeição pessoal que caracterizavam a humanidade em seu passado e as substitui por relações de liberdade e igualdade.

Nossa sociedade, isto é, o mercado mundial, nos faz de fato livres e iguais, mas, evidentemente, não como nós mesmos, não como indivíduos, mas apenas como vendedores e compradores livres e iguais de mercadorias. Se não vendermos nenhuma mercadoria, não conseguiremos dinheiro e, sem dinheiro, não conseguiremos acesso ao que nos permite sobreviver.

Tudo isso parece muito natural. Mas acontece que a quase totalidade da população mundial (e de todos os países) não tem nenhuma mercadoria, nenhuma coisa para oferecer. Eles são os proletários. Sem nenhum objeto para vender e trocar por dinheiro para sobreviver, só lhes resta vender a única coisa que ainda possuem, ou seja, a disposição de seu corpo, com seus atos e pensamentos, para fazer o que o comprador determinar, quer dizer, transformar em uma coisa vendável as suas capacidades humanas, sua potência de pensar e agir no mundo, sua força de trabalho. Em troca, receberão dinheiro - salário -, que, em tese, lhes permitirá sobreviver.

Trocadas por salário, as capacidades humanas compradas são um objeto de consumo ímpar, um objeto que tem a poderosa capacidade de, ao ser consumido, transformar criativamente a natureza. Desse modo, a força de trabalho é uma mercadoria cujo consumo, cujo gasto, dá ao seu comprador a própria potência criativa humana, a própria capacidade humana de mudar o mundo, o mundo em que vivemos, a natureza, em todos os aspectos.

Assim, as capacidades humanas tornam-se uma coisa, e só podem ser exercidas quando alienadas, vendidas, ou seja, apenas quando trocadas por uma dada soma de dinheiro. O dinheiro se torna equivalente à potência humana, enquanto os seres humanos se tornam impotentes como simples seres humanos, impotentes como indivíduos. Portanto, aqueles que mais tiverem dinheiro mais terão sob seu ditame a potência criativa da população, e poderão consumi-la, pô-la para trabalhar, para gerar ainda mais dinheiro, lucro, num círculo de acumulação constante e sem limite. Surge assim o capital - uma relação social que  impulsiona a si mesma a se reproduzir numa expansão sem limites, como se fosse um fato natural, involuntário, coisal, para os indivíduos envolvidos, pois estes pensam estarem apenas se relacionando entre si como pessoas livres e iguais que trocam as coisas entre si. Historicamente, o ponto de partida da expansão foi a Inglaterra do séc. XVIII, e a partir de então, parecendo uma catástrofe natural inevitável, o vírus da ditadura do dinheiro se replicou por toda parte e já na metade do séc. XIX abrangia o mundo inteiro. Eis a gênese do mercado mundial.

Com isso, as relações de sujeição pessoal foram substituídas por relações de sujeição coisal (e até mesmo de um ponto de vista puramente mercantil, com a expansão do mercado mundial, o uso de mão de obra de escravos logo revelou-se incapaz de concorrer frente ao uso de mão de obra proletária, pois o escravo é uma mercadoria cara, cuja propriedade demanda muitos cuidados  e custos que não são necessários quando se emprega proletários, que, se doentes e incapacitados de trabalhar, podem ser demitidos, ao contrário do escravo, que é um patrimônio do senhor e cujo descarte acarretaria grandes prejuízos para ele. Então, em termos de mercado, a compra de força de trabalho, o comércio de capacidades humanas, é incomparavelmente mais lucrativo do que a compra de escravos.)

Para a vida dos proletários, a acumulação do capital é a transformação da natureza por eles mesmos (por seu trabalho) em um mundo cada vez mais alienado deles, um mundo que acumula cada vez mais cercas, muros, um espaço cada vez mais intrincadamente privativo, policiado, isto é, que priva cada vez mais a população de liberdade, fazendo ser cada vez mais obrigatório ter dinheiro para satisfazer o menor desejo humano. É certo que, se fosse possível (felizmente ainda não é), o capital buscaria cercar o próprio ar que respiramos para que tenhamos de trabalhar para ele e pagar pela nossa simples respiração.

Sendo o capital a propriedade privada das condições de existência da população contra a própria população, de modo a fazê-la pagar por existir, o capital precisa de uma imponente instituição repressiva. Trata-se do Estado.

O Estado representa, reconhece, garante e protege a liberdade e a igualdade dos cidadãos, mas, evidentemente, não enquanto eles são simples seres humanos, mas como vendedores e compradores de mercadorias (e isso não muda se o Estado é denominado democrático ou ditatorial, fascista ou socialista). Daí que, para o Estado, há apenas "classes médias".

Foi apenas na década de 1920, sob a ameaça contundente de lutas proletárias internacionalistas (em todos os países industrializados: greves gerais, insurreições de trabalhadores etc.), isto é, sob a ameaça das lutas da própria potência humana mundial contra o capital, que, em cada país, o Estado viu-se forçado, nos anos 1930 aos 1950, a reconhecer os trabalhadores (e os despossuídos em geral) como categoria com direitos próprios, por meio de leis trabalhistas e sistemas de bem estar social (por exemplo, a previdência social, programas alimentares, de saúde universal, educação pública etc.). Naquele momento, conceder esses direitos em todos os países industrializados foi o único meio de acalmar a luta e salvar o capital, que é a razão do Estado. E essa estratégia funcionou. Mas como?

Funcionou porque o proletariado é um ser ambíguo: os proletários são (a) vendedores de uma mercadoria (força de trabalho), tanto como os capitalistas (empresas) vendem mercadorias, e, ao mesmo tempo, (b) eles são a própria potência humana criativa mundial, que o capital, que é a propriedade privada das condições de atuação dessa potência, volta contra os próprios seres humanos como uma força hostil e opressiva que se acumula indefinidamente.

Portanto, a luta dos proletários ocorre sempre na tensão dessa ambiguidade:

a) enquanto vendedores de uma mercadoria determinada - a força de trabalho -, os proletários têm interesse em vender (isto é, conseguir emprego) e valorizar sua mercadoria (isto é, aumentar seu salário e reduzir a carga de trabalho), quer dizer, reduzir proporcionalmente os lucros do capital, que, inversamente, por definição busca aumentar seus lucros, valorizar-se com menos custos. Os trabalhadores, enquanto vendedores concorrentes de força de trabalho, estão sempre em desvantagem frente ao capital, mas a medida que eles percebem que a força de trabalho é a mercadoria por excelência - a mercadoria que gera todas as demais mercadorias -, e à medida que se esforçam por reduzir a concorrência entre si, associando-se e lutando, eles conseguem valorizar sua mercadoria. Mas, como meros vendedores, essa valorização não deve ultrapassar o limite que levaria o comprador, o capital que os paga, à falência ao não ter mais lucros, já que isso tornaria os proletários impossibilitados de vender força de trabalho. Assim eles perpetuam-se como proletários ao afirmarem-se como mercadores, como vendedores de uma mercadoria e compradores/consumidores de outras, como "classe média".

b) enquanto expressão em escala planetária da própria capacidade criativa humana, como potência de pensar e agir internacional, potência de transformar o mundo, os proletários lutam por libertar sua potência humana da sujeição de ter de ser vendida e de ter de exercê-la contra si próprios. Ou seja, lutam por suprimir o capital, a propriedade privada, com o fito de tornar gratuitas as condições da existência humana (suprimindo o totalitarismo do dinheiro, da mercadoria). Buscam pôr livres as condições de atuação de nossas capacidades criativas, para que todos, como indivíduos, como simples seres humanos, possamos nos associar livremente enquanto tais e assim produzir o que nossos desejos, necessidades e sonhos precisam. Neste caso, o proletariado não busca se perpetuar, ele busca se auto-abolir (ao abolir o capital e seu aparato repressivo, o Estado), afirmando-se como uma associação de indivíduos que se relacionam livremente sem fronteiras por todo o planeta.

No funcionamento "normal" de nossa sociedade, o lado dominante da ambiguidade proletária é o de serem mercadores livres e iguais; se tal lado não predominasse, essa sociedade não se sustentaria. Mas, como vimos desde o início, essa igualdade e liberdade de vendedores e compradores é solapada desde o princípio, e o capital busca sempre consumir a mercadoria força de trabalho ao máximo, explorando o proletário até o limite, e se este não se associar e lutar de algum modo, verá seu salário diminuir (p.ex., inflação) e a carga de trabalho aumentar (por ex., concorrendo entre si para ser o mais puxa-saco). A luta só pode ocorrer, portanto, fora da pura relação mercantil de concorrentes, e é na luta que os proletários vão, pouco a pouco, descobrindo que eles mesmos são a força por trás do capital e que, portanto, o capital depende deles, enquanto que, como potência humana, eles não dependem do capital. A organização da luta proletária é invariável: assembléias horizontais e conselhos, cujos representantes são eleitos e revogáveis a qualquer momento nas assembléias de todos os proletários em luta.

Mas tudo depende da correlação de forças. O capital tem a seu lado todas as polícias, todos os exércitos, todas as prisões, todos os tanques, mísseis e porta-aviões, em suma, o capital tem a seu lado todos os Estados da terra; pois o Estado nada mais é do que a propriedade privada armada (não só a propriedade privativa particular como inclusive mesmo a propriedade privativa do próprio Estado, como as empresas estatais), e ele edifica-se e enche-se de políticos e legisladores graças ao financiamento do capital (o Estado deve garantir a infra-estrutura urbana, de transportes, educacional, policial e militar que condiciona a ótima acumulação do capital num território), isto sem falar dos casos em que o próprio Estado incorpora o capital e torna-se ele próprio uma empresa colossal, uma mega propriedade privada do tamanho de um país, como na URSS e Cuba.

Assim, a correlação de forças é esmagadoramente desfavorável para os proletários. Mas há alguma situação em que ela pode ser favorável? Por incrível que pareça, sim, já que o funcionamento do Estado e de seu aparato repressivo também depende de seres humanos que são assalariados, proletários. Nas primeiras décadas do século XX, soldados e marinheiros volta e meia se juntavam à população em luta e davam-lhe armamentos cantando com ela a famosa canção internacionalista que diz:

"Paz entre nós guerra aos senhores
Façamos greve de soldados
Somos irmãos trabalhadores.
Se a corja vil cheia de galas
Nos quer à força canibais
Logo verá que nossas balas
São para os nossos generais."

Todos os direitos democráticos fundamentais que ainda temos hoje (direito de voto universal, educação pública, saúde universal, programas sociais, leis trabalhistas) devemos à luta internacional dos proletários do fim do século XIX e das duas primeiras décadas do século XX, que conseguiram, em diversos momentos, fazer a correlação de forças tornar-se favorável para eles, a ponto de fazer o capital e o Estado perigarem tão intensamente que tiveram de fazer concessões antes consideradas inimagináveis. O Estado, que, por essência é uma tirania implacável sobre a população, isto é, polícia e forças armadas, em suma, defesa sanguinária da propriedade privada, teve que se enfeitar com aparências cada vez mais "democráticas" e "sociais" para manter o capital (seja sob a forma "socialista" ou "particular").


Mas a história não acaba aí. Não nos enganemos com o papo furado das "classes médias". Hoje numa escala muito maior do que no passado, a privação das condições de existência dos seres humanos para eles mesmos continua forçando-os, sob a ameaça de não ter como sobreviver, a ter que vender as capacidades criativas humanas como uma coisa e exercê-las transformando o mundo contra si mesmos. A luta por retomarmos nossas condições de existência, a luta por efetuarmos nossas capacidades como nós mesmos, como indivíduos livres em associação através do mundo, ou seja, a luta pelo fim da propriedade privada (pelo fim do capital e do Estado), continua o projeto social mínimo chamado anarquia, comunismo, livre associação dos produtores. Se ainda podemos imaginar que o mundo tem futuro, o futuro ainda está na mão dos proles!

Humana Esfera, 8/2011



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