(English translation)
Quem
é privado dos meios de satisfazer suas necessidades se depara com a
propriedade privada. Ele é coagido, se não quiser morrer (social e
fisicamente), a se submeter aos caprichos, arbitrariedades e
volubilidades de quem tem o poder de prover suas necessidades: no
caso do filhos, os pais.
Não
por coincidência, a palavra "família" deriva do
latim famulus, "escravo, servo". Nela, por sua
vez, está o radical latino fames, que significa "fome",
segundo a etimologia popular romana [nota 1]. Para os antigos
romanos, a familia se constitui primariamente pelo
poder de punir (com a fome) e recompensar (com matar a fome) os
escravos/servos (que incluía a mulher, os filhos e
os famuli adquiridos).
Hoje, muitos criticam a família patriarcal defendendo a família moderna, pós-moderna, libertária, matriarcal, queer, poligínica, poliândrica, tribal, zoogâmica, comunitária, digital, neo-hippie etc. Desejam adicionar à
família um pluralismo de novos adjetivos, perpetuando a servidão a que são submetidas as novas gerações há milênios
[nota 2].
O FAMILISMO
Desde
o surgimento do capitalismo (ou seja, do capital industrial, do proletariado e do Estado moderno, simultaneamente, século XVIII), o familismo é o fetiche
central pelo qual os proletários, aqueles privados de
propriedade de qualquer meio de vida, aceitam de bom grado se
engajar em manter e aprimorar a empresa e o governo, criando e
acumulando com dedicação o próprio poder hostil que os submete,
desgasta, recicla, descarta e abandona sistematicamente. Isso porque
colocam sua libido (catexia), seus desejos, na família, pseudo-propriedade
privada na qual eles fantasiam estarem acumulando seu próprio capital em igualdade com os capitalistas; o que os leva a apoiar a
classe dominante e a polícia, ou seja, o Estado, como garantidores
dessa sua propriedade fictícia.
Graças
ao familismo, que é essa crendice na pseudo-propriedade privada
sobre um conjunto que engloba os filhos, parceiros sexuais, escovas
de dentes, automóvel, casa etc, os proletários se imaginam tão
capitalistas quanto os proprietários dos meios de vida e de
produção que o exploram, e imaginam ter os mesmos interesses que eles.
Decorre do
familismo a crendice de que há apenas "classe média" e
"bandidos": uma hierarquia infinitamente
escalonada, que vai de famílias com "sucesso" - "classe
média alta alta" - às famílias "fracassadas" - "classe média
baixa baixa" -, hierarquia que supõem ser estabelecida "objetivamente,
naturalmente, legitimamente" na competição cruenta, mas justa porque "meritocrática", pela sobrevivência, pelo que é para poucos (escassez - propriedade privada imaginada como fenômeno natural, eterno). Mas toda "classe média" se congrega
e torce pela polícia (à qual atribuem um status teocrático,
sobre-humano, completamente livre para matar e torturar) contra os "bandidos" . Estes são quaisquer bodes expiatórios que as
facções da classe proprietária (agrupadas como identidades,
pátrias, etnias, "gente de bem", ou vestidas com outras fantasias, como as simétricas metades esquerda e direita do capital e do Estado) exibam nos meios
de comunicação social como causa de todo mal: de "favelados" à "judeus",
passando por "vagabundos", "estrangeiros",
"forasteiros", "maconheiros", "imperialistas",
"comunistas", "golpistas", "baderneiros"
etc. É assim que, em caso de guerra, cada facção burguesa concorrente
recruta facilmente proletários para agredirem e massacrarem a si mesmos, a seus próprios irmãos de classe atrás das fronteiras inventadas pelos próprios exploradores, supondo estarem atacando aqueles estereótipos, espantalhos ideológicos, bodes
expiatórios.
Se em seu acme o familismo é a sagração do açougue bélico, em sua base ele é a da guerra de todos contra todos chamada mercado e do poder armado que garante essa guerra, o Estado. Eles imaginam que essas entidades são
naturais, eternas, sagradas e imutáveis porque todas elas seriam os fundamentos consolidadores da família, que consideram a única coisa que dá sentido à suas vidas, a única razão para não se suicidarem.
Os capitalistas necessitam que os indivíduos reprimam e limitem seus
desejos ao familismo, para que eles se engajem com todo empenho em
manter e aprimorar o Estado e o capital como meios de realizarem esse
desejo estreito, limitado, formatado, mesquinho e em última
instância suicida e homicida [nota 3].
Assim, enquanto para o capital (acumulação do trabalho morto, valorização do valor, sujeito automático, auto-expansão do lucro auto-referente sem fim) o que importa é que haja átomos vendedores/compradores, existentes socialmente apenas pela troca de mercadorias, simples engrenagens interligadas apenas pela acumulação do capital (daí que o capital facilmente adote uma atomizante emancipação feminina, homossexual, operária, racial, étnica, sexual etc), para a classe capitalista - que é a personificação do capital enquanto poder direto, prático, sobre os seres humanos, vampirizando-os em carne e osso para implementar a acumulação do capital, classe que inclui os burocratas e os proprietários, governo e empresa - para a classe capitalista há a clareza cristalina de que, sem a crendice na pseudo-propriedade chamada família, dificilmente alguém se disporia a se sacrificar até o esgotamento por aumentar um poder que só vai desgastá-lo até o osso para descartá-lo ao fim no olho da rua [nota 4]. Analisemos então como
os capitalistas fazem o familismo ser inculcado nas crianças pelos
próprios pais de geração em geração.
"SOCIEDADE DISCIPLINAR" E "SOCIEDADE DE CONTROLE"
Aparentemente, o poder dos pais sobre os filhos hoje (desde a década de 1970-80) é principalmente "objetivista". Os pais simplesmente lembram aos filhos interminavelmente da existência do denominado "mundo real": mundo-cão/ruas-cheias-de-assassinos-estupradores-monstros/guerra-de-todos-contra-todos/mercado-selecionador-imparcial-critério-último-da-verdade. "Mundo real" sempre confirmado pelos meios de comunicação, por boatos chocantes ou pela degradação real dos arredores. O medo então acarreta o trancafiamento e submissão "voluntários" dos filhos na "segurança doméstica" e na escola. Ora, esse é exatamente o velho modo de sujeição dos proletários aos proprietários. O proletário se sujeita ao poder do proprietário não porque o proprietário se imponha "pessoalmente", mas "objetivisticamente". Jogado num mundo-cão desolado e desumano, sem propriedade de nada, privado de meios de vida, não resta ao proletário saída senão se vender "voluntariamente" no mercado de trabalho. Mas essa situação aparentemente "objetiva" e "natural", na realidade é armada e garantida pelo Estado (e seu subterrâneo inseparável: o crime), órgão armado da classe proprietária responsável pelo "enforcement" da propriedade privada.
Então,
a atual "sociedade de controle" (que sucede a "sociedade
disciplinar" a partir da década de 1970-80), com seu
"objetivismo", pode ser vista como extensão da
proletarização da esfera da produção para a esfera da reprodução
da sociedade (família, educação, saúde, repressão sexual) [nota 5]. Diferentemente, a antiga família da "sociedade disciplinar"
pode ser considerada uma sobrevivência da família feudal ou de
castas, com um tipo de sujeição ainda não plenamente capitalista
(em outros termos, havia subsunção formal mas ainda não subsunção
real da reprodução do proletariado ao capital). Porque nela, os
pais exerciam um poder principalmente pessoal, não "objetivista".
Os filhos ficavam a maior parte do tempo soltos pela rua ("mundo
de curiosidades e maravilhas") brincando com seus amigos
(enquanto as filhas eram tratadas como "bonequinhas"
ultraprotegidas, ajudando a mãe no trabalho doméstico, para serem
futuras donas de casa, e não "mulheres do mundo"). A
predominância do poder pessoal é evidente porque, no fim do dia,
quando o pai chegava do trabalho, os pais recriminavam exigindo
"respeito a ele" e até agrediam brutalmente os filhos para
que "tomassem jeito". Era o momento da disciplina.
FAMILISMO GENERALIZADO: A DOMESTICAÇÃO DA VIDA COTIDIANA UNIVERSAL PELA INTERNET
A proletarização da reprodução que caracteriza a atual "sociedade de controle" seria incontivelmente explosiva se não fosse acompanhada por uma familização generalizada. E é a internet que leva a uma absolutização do familismo antes inimaginável. No advento da internet, a chamada "web 1.0" resultou numa confluência vulcânica de dimensões díspares da existência: vida cotidiana e tecnologia da informação se chocaram sem controle, provocando um universalismo ou comunismo de ideias livremente produzidas por qualquer um e acessíveis a todos no mundo. A cada um se abria um universo infinitamente além do familismo, da familiaridade das "panelinhas" de amigos e da reificação identitária. Disparidade vulcânica potencialmente revolucionária, porque tornava a perspectiva de uma livre associação mundial dos indivíduos através de suas necessidades, desejos, projetos e paixões mais apaixonante do que o miserável e amedrontrado auto-encarceramento familiar. As pessoas se definiam, se encontravam e se relacionavam pelo que desejavam ser e fazer: o pseudônimo e o anonimato eram a regra. Porém, com o aparecimento da chamada "web 2.0", o capital cuidou de destruir essa disparidade vulcânica, obrigando todos a se identificarem, se encontrarem e se relacionarem como "pessoas com famílias, amigos e registradas pelo Estado", minando na raiz a perspectiva de uma internet universalista de indivíduos livremente associados em função do suas necessidades e paixões livres e comuns [nota 6].
A "web 2.0" é o esvaziamento da internet (websites, fóruns, emails etc) pelas chamadas "redes sociais" (hoje dominadas pelo facebook, whatsapp etc), que levam a uma privatização ou mesmo uma feudalização do que se compartilha e se acessa na internet. O familismo (e o panelismo ou "amiguismo" inerente a ele) passa a ocupar todo o tempo e libido das pessoas: não é mais possível à quase ninguém existir socialmente se não aceitar se deixar chafurdar numa "timeline" frenética e interminável de exibicionismos pessoais e familiares infinitamente descartáveis a cada segundo. Quase toda internet universalista e livremente acessível (por buscadores) e feita autonomamente (homepages, grupos de discussão...) foi abandonada e esvaziada. Nessas condições, dá-se uma redução brutal da capacidade dos indivíduos de se expressarem, se associarem e pensarem fora da burrice da dimensão pessoal, familiar, amiguista e identitária. Ocorre uma infantilização geral.
Há ainda um aspecto ainda mais estarrecedor do familismo das "redes sociais". Como todos praticamente só são acessíveis e só se comunicam por elas (facebook, whatsapp...), cada proletário ficaria isolado e incomunicável se não se tornasse também usuário delas. Isso dá um poder de vigilância absurdo sobre o que pensa, faz e sente cada um. O facebook é o maior e mais poderoso sistema de vigilância e monitoramento que já existiu na história da humanidade. E não só pelo Estado e serviços secretos. Quem é forçado, para sobreviver, a se vender como objeto de consumo vivo no mercado de trabalho, tem, por isso mesmo, sua sobrevivência sob o poder e arbítrio de outras pessoas (a classe capitalista, tanto burocratas quanto proprietários), que, é claro, vigiam e monitoram o facebook de seu escravo. Qualquer ideia levemente questionadora que encontrar, no dia seguinte, por um pretexto qualquer, o proletário está demitido, no olho da rua. Então, o familismo se torna o único pensamento e sentimento que é permitido ao proletariado expressar em público, a não ser que queira se suicidar socialmente (se tornando mendigo) ou fisicamente.
SAÍDA : ABOLIÇÃO DA FAMÍLIA
Nos
perguntam: "Que nova família substituirá a família
tradicional?" Nenhuma. A família enquanto tal terá de
ser superada: as novas gerações encontrarão livremente
(gratuitamente) em comum na sociedade os meios de desenvolverem por si mesmas suas
diversas potencialidades, aptidões e paixões, crescendo como seres
autônomos. Ou seja, encontrarão livremente os meios de não serem
obrigadas à se sujeitar à arbitrariedade nem capricho de ninguém. Então, pais e filhos enfim poderão ter verdadeiro amor uns pelos outros, porque não será mais
fingido pelo interesse dos filhos em receber dos pais os meios de se
satisfazerem. É claro
que tudo isso só poderá ocorrer com a auto-abolição mundial do
proletariado e, portanto, do capital e do Estado, mediante a livre associação global dos indivíduos que acessam livremente, gratuitamente e universalmente
as condições práticas materiais (meios de produção mundialmente interconectados) necessárias para a auto-realização e livre desenvolvimento de seus desejos, necessidades, paixões,
aptidões, projetos... Somente assim os apaixonados em ajudar a tornar autônomas as novas gerações (os que hoje são os escravos assalariados chamados educadores, professores, babás etc), poderão se associar livremente por todo o mundo para exercer e aprimorar suas capacidades que tanto amam, fornecendo gratuitamente às novas gerações o fundamento para que cresçam e desenvolvam sua autonomia. A lição básica: que jamais aceitem o servilismo de fazer seja o que for em troca de dinheiro, cargos ou qualquer outro tipo de chantagem ou ameaça. [nota 7]
humanaesfera,
novembro de 2015
NOTAS
[nota 2] Já era assim nas comunidades tribais, onde a família geralmente se identificava com a própria tribo, podendo todos os tios e tias terem status de mães e pais (ou dependendo do sistema de parentesco, patrilinear ou matrilinear, apenas os parentes do pai ou da mãe). Para cada tribo, todos os outros humanos não-familiares eram bestas, não-humanos ou falsos humanos, contra os quais se estava em estado de guerra constante ou latente (quando então, através da "dádiva", criava-se um laço de dívida mútua, por exemplo, o potlatch). Para marcar o pertencimento à suposta única tribo dos "verdadeiros humanos", que seriam os mais fortes e superiores, a família tribal submetia as novas gerações a ritos de passagem como provação do "merecimento" de pertencer à sua família em exclusão de toda humanidade. Esses ritos escreviam literalmente na carne e na alma as marcas de pertencimento (mutilações, humilhações, várias provas de resistência à dor, prova de que não se é "frouxo" assassinando inimigos sem hesitação, adquirindo cicatrizes de guerra etc). Evidentemente, as novas gerações eram forçadas a se submeter porque não havia nenhum outro meio de satisfazerem suas necessidades fora da tribo, exceto se desejassem a solidão da natureza inclemente, vulneráveis às tribos e feras inimigas. E se se juntassem para criar uma outra tribo independente, eles seriam obrigados a recriar as mesmas provações dos ritos de passagem e as mesmas violências para com as outras tribos. Porque isso não depende só da vontade, mas das condições de existência materiais, ou seja, da capacidade humana de, com as forças produtivas existentes, transformar a natureza, a circunstâncias, as condições concretas das relações humanas. É o estado de natureza com que se deparavam que materialmente os obrigava a adotar todas essas coerções, se agrupando na forma social família-tribo.
[nota 3] Ver o livro O Anti-Édipo (volume I de Capitalismo e esquizofrenia), Gilles Deleuze e Felix Guattari.
[nota 4] Em O Capital, Marx explica que na esfera da circulação de mercadorias, essa aparência de igualdade e trocas voluntárias é real, não uma simples mentira. E como a esfera da produção é invisível, privada, isolada e sem comunicação com a sociedade, não é à toa que a aparência do capitalismo seja mesmo essa de trocas voluntárias e que a maioria dos proletários se considere "classe média" e até mesmo "capitalista". O livro O Capital começa analisando a aparência imediata do modo de produção capitalista, a produção simples de mercadorias (em que cada um, sozinho, produz, vende e compra mercadorias, buscando satisfazer suas necessidades), mostrando que a ilusão é baseada nessa aparência. Marx explica que só do ponto de vista do proletariado, quando ele se impõe como classe autônoma contra o trabalho que lhe é imposto, contra a empresa e as fronteiras nacionais, pode-se ter uma perspectiva teórico-prática que torna publicamente visível a esfera da produção - exploração, trabalho alienado, reificação, fetichismo do capital etc - como fundamento da sociedade capitalista.
[nota
5] Essa perspectiva parece permitir uma compreensão da "sociedade
de controle" de modo muito menos holístico e misterioso do que se costuma fazer (que parece levar
muitos a crer equivocadamente que a sociedade atual é "permissiva"
- como defendem por exemplo os estrelistas espetaculares Zizek, Safatle -
ou que a auto-sujeição é verdadeiramente auto-sujeição - por exemplo. a
visão auto-culpista "tirano dentro de si"), possibilitando
compreender o que é determinante e o que é acidental. Ou seja, parece abrir uma perspetiva prática libertária mais potente. Aos que ainda não sabem de onde veio essas expressões "sociedade de controle" e "sociedade disciplicar", ver as obras de Deleuze e Guattari e Foucault. A repressão da sexualidade, o sentimento de culpa etc, tudo isso continua sob a forma brutal objetivista segundo a qual, como todos seriam essencialmente monstros estrupradores, assassinos e vagabundos, "bandidos", é preciso se reprimir e reprimir os outros, sofrer e fazer sofrer, para "subir na vida" e se juntar aos poucos "vencedores". Quanto maior a capacidade de sacrificar a si e aos outros, maior seria provado e legitimado o mérito, a subida de posição na pirâmide da meritocracia.
[nota 7] A abolição da família não é nenhuma ideia nova, mas parte do
comunismo invariável do proletariado autônomo, isto é,
anti-estatal e internacionalista, desde o século XVIII e XIX. Joseph
Déjacque, Karl Marx, Wiliam Morris, Piotr Kropotkin e Alexander
Bogdanov, entre muitos outros, contribuíram com suas obras para
sistematizar e aprimorar essas ideias.
e´bem provavel que no futuro essa forma de gestao tenha exito , o historico dos sistemas nos mostra que foram , e sao fadados ao insucesso .observemos ; todos os sistemas governistas foram enterrados ou pela areia no caso do egito antigo , ou pelo esquecimento babilonico . a propia historia nos mostra que nao foram bem sucedidos , entao a logica nos levara a uma sociabilidade diferente !
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