terça-feira, 1 de dezembro de 2015

A tática por trás do "vandalismo nas escolas ocupadas"


Para entender como funciona a tática por trás do "vandalismo nas escolas ocupadas" veiculado pela mídia (comparar com o que é narrado nas páginas dos próprios estudantes veja: aqui e aqui):

A estreita ligação entre polícia e crime é um fato desde quando surgiu a polícia na história, no século XIX, junto com a prisão. A prisão tornou o crime uma profissão, porque é uma escola do crime, que prende o prisioneiro à criminalidade mesmo após sair de lá. Essa marginalidade é não só produto da prisão, e dirigida de lá (por ex. as facções de traficantes, que surgiram justamente da prisão) mas é apoiada, extensamente monitorada, sustentada e até controlada e dirigida diretamente pela polícia. A razão disso é bastante clara: quando a população luta por sua autonomia (por ex., a Comuna de Paris) se opondo ao poder do Estado e do capital, os poderosos tem a sua disposição essa criminalidade para mobilizar, destruir, desmoralizar e criar uma situação de violência cuja solução, segundo eles, é unicamente aceitar se render à polícia e ao Estado.

domingo, 8 de novembro de 2015

Contra o familismo novo e velho - abaixo a família!




(English translation)


Quem é privado dos meios de satisfazer suas necessidades se depara com a propriedade privada. Ele é coagido, se não quiser morrer (social e fisicamente), a se submeter aos caprichos, arbitrariedades e volubilidades de quem tem o poder de prover suas necessidades: no caso do filhos, os pais. 

Não por coincidência, a palavra "família" deriva do latim famulus, "escravo, servo". Nela, por sua vez, está o radical latino fames, que significa "fome", segundo a etimologia popular romana [nota 1]. Para os antigos romanos, a familia se constitui primariamente pelo poder de punir (com a fome) e recompensar (com matar a fome) os escravos/servos (que incluía a mulher, os filhos e os famuli adquiridos). 

Hoje, muitos criticam a família patriarcal defendendo a família moderna, pós-moderna, libertária, matriarcal, queer, poligínica, poliândrica, tribal, zoogâmica, comunitária, digital, neo-hippie etc. Desejam adicionar à família um pluralismo de novos adjetivos, perpetuando a servidão a que são submetidas as novas gerações há milênios [nota 2]. 

O FAMILISMO

Desde o surgimento do capitalismo (ou seja, do capital industrial, do proletariado e do Estado moderno, simultaneamente, século XVIII), o familismo é o fetiche central pelo qual os proletários, aqueles privados de propriedade de qualquer meio de vida, aceitam de bom grado se engajar em manter e aprimorar a empresa e o governo, criando e acumulando com dedicação o próprio poder hostil que os submete, desgasta, recicla, descarta e abandona sistematicamente. Isso porque colocam sua libido (catexia), seus desejos, na família, pseudo-propriedade privada na qual eles fantasiam estarem acumulando seu próprio capital em igualdade com os capitalistas; o que os leva a apoiar a classe dominante e a polícia, ou seja, o Estado, como garantidores dessa sua propriedade fictícia. 

Graças ao familismo, que é essa crendice na pseudo-propriedade privada sobre um conjunto que engloba os filhos, parceiros sexuais, escovas de dentes, automóvel, casa etc, os proletários se imaginam tão capitalistas quanto os proprietários dos meios de vida e de produção que o exploram, e imaginam ter os mesmos interesses que eles. 

Decorre do familismo a crendice de que há apenas "classe média" e "bandidos": uma hierarquia infinitamente escalonada, que vai de famílias com "sucesso" - "classe média alta alta" - às famílias "fracassadas" - "classe média baixa baixa" -, hierarquia que supõem ser estabelecida "objetivamente, naturalmente, legitimamente" na competição cruenta, mas justa porque "meritocrática", pela sobrevivência, pelo que é para poucos (escassez - propriedade privada imaginada como fenômeno natural, eterno). Mas toda "classe média" se congrega e torce pela polícia (à qual atribuem um status teocrático, sobre-humano, completamente livre para matar e torturar) contra os  "bandidos" . Estes são quaisquer bodes expiatórios que as facções da classe proprietária (agrupadas como identidades, pátrias, etnias, "gente de bem", ou vestidas com outras fantasias, como as simétricas metades esquerda e direita do capital e do Estado) exibam nos meios de comunicação social como causa de todo mal: de "favelados" à "judeus", passando por "vagabundos", "estrangeiros", "forasteiros", "maconheiros", "imperialistas", "comunistas", "golpistas", "baderneiros" etc. É assim que, em caso de guerra, cada facção burguesa concorrente recruta facilmente proletários para agredirem e massacrarem a si mesmos, a seus próprios irmãos de classe atrás das fronteiras inventadas pelos próprios exploradores, supondo estarem atacando aqueles estereótipos, espantalhos ideológicos, bodes expiatórios. 

Se em seu acme o familismo é a sagração do açougue bélico, em sua base ele é a da guerra de todos contra todos chamada mercado e do poder armado que garante essa guerra, o Estado.  Eles imaginam que essas entidades são naturais, eternas, sagradas e imutáveis porque todas elas seriam os fundamentos consolidadores da família, que consideram a única coisa que dá sentido à suas vidas, a única razão para não se suicidarem. Os capitalistas necessitam que os indivíduos reprimam e limitem seus desejos ao familismo, para que eles se engajem com todo empenho em manter e aprimorar o Estado e o capital como meios de realizarem esse desejo estreito, limitado, formatado, mesquinho e em última instância suicida e homicida [nota 3].


Assim, enquanto para o capital (acumulação do trabalho morto, valorização do valor, sujeito automático, auto-expansão do lucro auto-referente sem fim) o que importa é que haja átomos vendedores/compradores, existentes socialmente apenas pela troca de mercadorias, simples engrenagens interligadas apenas pela acumulação do capital (daí que o capital facilmente adote uma atomizante emancipação feminina, homossexual, operária, racial, étnica, sexual etc), para a classe capitalista - que é a personificação do capital enquanto poder direto, prático, sobre os seres humanos, vampirizando-os em carne e osso para implementar a acumulação do capital, classe que inclui os burocratas e os proprietários, governo e empresa - para a classe capitalista há a clareza cristalina de que, sem a crendice na pseudo-propriedade chamada família, dificilmente alguém se disporia a se sacrificar até o esgotamento por aumentar um poder que só vai desgastá-lo até o osso para descartá-lo ao fim no olho da rua [nota 4]. Analisemos então como os capitalistas fazem o familismo ser inculcado nas crianças pelos próprios pais de geração em geração.


"SOCIEDADE DISCIPLINAR" E "SOCIEDADE DE CONTROLE"

Aparentemente, o poder dos pais sobre os filhos hoje (desde a década de 1970-80) é principalmente "objetivista". Os pais simplesmente lembram aos filhos interminavelmente da existência do denominado "mundo real": mundo-cão/ruas-cheias-de-assassinos-estupradores-monstros/guerra-de-todos-contra-todos/mercado-selecionador-imparcial-critério-último-da-verdade. "Mundo real" sempre  confirmado pelos meios de comunicação, por boatos chocantes ou pela degradação real dos arredores. O medo então acarreta o trancafiamento e submissão "voluntários" dos filhos na "segurança doméstica" e na escola. Ora, esse é exatamente o velho modo de sujeição dos proletários aos proprietários. O proletário se sujeita ao poder do proprietário não porque o proprietário se imponha "pessoalmente", mas "objetivisticamente". Jogado num mundo-cão desolado e desumano, sem propriedade de nada, privado de meios de vida, não resta ao proletário saída senão se vender "voluntariamente" no mercado de trabalho. Mas essa situação aparentemente "objetiva" e "natural", na realidade é armada e garantida pelo Estado (e seu subterrâneo inseparável: o crime), órgão armado da classe proprietária responsável pelo "enforcement" da propriedade privada.

Então, a atual "sociedade de controle" (que sucede a "sociedade disciplinar" a partir da década de 1970-80), com seu "objetivismo", pode ser vista como extensão da proletarização da esfera da produção para a esfera da reprodução da sociedade (família, educação, saúde, repressão sexual) [nota 5]. Diferentemente, a antiga família da "sociedade disciplinar" pode ser considerada uma sobrevivência da família feudal ou de castas, com um tipo de sujeição ainda não plenamente capitalista (em outros termos, havia subsunção formal mas ainda não subsunção real da reprodução do proletariado ao capital). Porque nela, os pais exerciam um poder principalmente pessoal, não "objetivista". Os filhos ficavam a maior parte do tempo soltos pela rua ("mundo de curiosidades e maravilhas") brincando com seus amigos (enquanto as filhas eram tratadas como "bonequinhas" ultraprotegidas, ajudando a mãe no trabalho doméstico, para serem futuras donas de casa, e não "mulheres do mundo"). A predominância do poder pessoal é evidente porque, no fim do dia, quando o pai chegava do trabalho, os pais recriminavam exigindo "respeito a ele" e até agrediam brutalmente os filhos para que "tomassem jeito". Era o momento da disciplina.


FAMILISMO GENERALIZADO: A DOMESTICAÇÃO DA VIDA COTIDIANA UNIVERSAL PELA INTERNET


A proletarização da reprodução que caracteriza a atual "sociedade de controle" seria incontivelmente explosiva se não fosse acompanhada por uma familização generalizada. E é a internet que leva a uma absolutização do familismo antes inimaginável. No advento da internet, a chamada "web 1.0" resultou numa confluência vulcânica de dimensões díspares da existência: vida cotidiana e tecnologia da informação se chocaram sem controle, provocando um universalismo ou comunismo de ideias livremente produzidas por qualquer um e acessíveis a todos no mundo. A cada um se abria um universo infinitamente além do familismo, da familiaridade das "panelinhas" de amigos e da reificação identitária. Disparidade vulcânica potencialmente revolucionária, porque tornava a perspectiva de uma livre associação mundial dos indivíduos através de suas necessidades, desejos, projetos e paixões mais apaixonante do que o miserável e amedrontrado auto-encarceramento familiar. As pessoas se definiam, se encontravam e se relacionavam pelo que desejavam ser e fazer: o pseudônimo e o anonimato eram a regra.  Porém, com o aparecimento da chamada "web 2.0", o capital cuidou de destruir essa disparidade vulcânica, obrigando todos a se identificarem, se encontrarem e se relacionarem como "pessoas com famílias, amigos e registradas pelo Estado", minando na raiz a perspectiva de uma internet universalista de indivíduos livremente associados em função do suas necessidades e paixões livres e comuns [nota 6].

A "web 2.0" é o esvaziamento da internet (websites, fóruns, emails etc) pelas chamadas "redes sociais" (hoje dominadas pelo facebook, whatsapp etc), que levam a uma privatização ou mesmo uma feudalização do que se compartilha e se acessa na internet. O familismo (e o panelismo ou "amiguismo" inerente a ele) passa a ocupar todo o tempo e libido das pessoas: não é mais possível à quase ninguém existir socialmente se não aceitar se deixar chafurdar numa "timeline" frenética e interminável de exibicionismos pessoais e familiares infinitamente descartáveis a cada segundo. Quase toda internet universalista e livremente acessível (por buscadores) e feita autonomamente (homepages, grupos de discussão...) foi abandonada e esvaziada. Nessas condições, dá-se uma redução brutal da capacidade dos indivíduos de se expressarem, se associarem e pensarem fora da burrice da dimensão pessoal, familiar, amiguista e identitária. Ocorre uma infantilização geral.

Há ainda um aspecto ainda mais estarrecedor do familismo das "redes sociais". Como todos praticamente só são acessíveis e só se comunicam por elas (facebook, whatsapp...), cada proletário ficaria isolado e incomunicável se não se tornasse também usuário delas. Isso dá um poder de vigilância absurdo sobre o que pensa, faz e sente cada um. O facebook é o maior e mais poderoso sistema de vigilância e monitoramento que já existiu na história da humanidade. E não só pelo Estado e serviços secretos. Quem é forçado, para sobreviver, a se vender como objeto de consumo vivo no mercado de trabalho, tem, por isso mesmo, sua sobrevivência sob o poder e arbítrio de outras pessoas (a classe capitalista, tanto burocratas quanto proprietários), que, é claro, vigiam e monitoram o facebook de seu escravo. Qualquer ideia levemente questionadora que encontrar, no dia seguinte, por um pretexto qualquer, o proletário está demitido, no olho da rua. Então, o familismo se torna o único pensamento e sentimento que é permitido ao proletariado expressar em público, a não ser que queira se suicidar socialmente (se tornando mendigo) ou fisicamente.

SAÍDA : ABOLIÇÃO DA FAMÍLIA

Nos perguntam: "Que nova família substituirá a família tradicional?" Nenhuma.  A família enquanto tal terá de ser superada: as novas gerações encontrarão livremente (gratuitamente) em comum na sociedade os meios de desenvolverem por si mesmas suas diversas potencialidades, aptidões e paixões, crescendo como seres autônomos. Ou seja, encontrarão livremente os meios de não serem obrigadas à se sujeitar à arbitrariedade nem capricho de ninguém. Então, pais e filhos enfim poderão ter verdadeiro amor uns pelos outros, porque não será mais fingido pelo interesse dos filhos em receber dos pais os meios de se satisfazerem. É claro que tudo isso só poderá ocorrer com a auto-abolição mundial do proletariado e, portanto, do capital e do Estado, mediante a livre associação global dos indivíduos que acessam livremente, gratuitamente e universalmente as condições práticas materiais (meios de produção mundialmente interconectados) necessárias para a auto-realização e livre desenvolvimento de seus desejos, necessidades, paixões, aptidões, projetos... Somente assim os apaixonados em ajudar a tornar autônomas as novas gerações (os que hoje são os escravos assalariados chamados educadores, professores,  babás etc), poderão se associar livremente por todo o mundo para exercer e aprimorar suas capacidades que tanto amam, fornecendo gratuitamente às novas gerações o fundamento para que cresçam e desenvolvam sua autonomia. A lição básica: que jamais aceitem o servilismo de fazer seja o que for em troca de dinheiro, cargos ou qualquer outro tipo de chantagem ou ameaça. [nota 7]

humanaesfera, novembro de 2015

NOTAS



[nota 2]  Já era assim nas comunidades tribais, onde a família geralmente se identificava com a própria tribo, podendo todos os tios e tias terem status de mães e pais (ou dependendo do sistema de parentesco, patrilinear ou matrilinear, apenas os parentes do pai ou da mãe). Para cada tribo, todos os outros humanos não-familiares eram  bestas, não-humanos ou falsos humanos, contra os quais se estava em estado de guerra constante ou latente (quando então, através da "dádiva", criava-se um laço de dívida mútua, por exemplo, o potlatch). Para marcar o pertencimento à suposta única tribo dos "verdadeiros humanos", que seriam os mais fortes e superiores, a família tribal submetia as novas gerações a ritos de passagem como provação do "merecimento" de pertencer à sua família em exclusão de toda humanidade. Esses ritos escreviam literalmente na carne e na alma as marcas de pertencimento (mutilações, humilhações, várias provas de resistência à dor, prova de que não se é "frouxo" assassinando inimigos sem hesitação, adquirindo cicatrizes de guerra etc). Evidentemente, as novas gerações eram forçadas a se submeter porque não havia nenhum outro meio de satisfazerem suas necessidades fora da tribo, exceto se desejassem a solidão da natureza inclemente, vulneráveis às tribos e feras inimigas. E se se juntassem para criar uma outra tribo independente, eles seriam obrigados a recriar as mesmas provações dos ritos de passagem e as mesmas violências para com as outras tribos.  Porque isso não depende só da vontade, mas das condições de existência materiais, ou seja, da capacidade humana de, com as forças produtivas existentes, transformar a natureza, a circunstâncias, as condições concretas das relações humanas. É o estado de natureza com que se deparavam que materialmente os obrigava a adotar todas essas coerções, se agrupando na forma social família-tribo.

[nota 3] Ver o livro O Anti-Édipo (volume I de Capitalismo e esquizofrenia), Gilles Deleuze e Felix Guattari.

[nota 4] Em O Capital, Marx explica que na esfera da circulação de mercadorias, essa aparência de igualdade e trocas voluntárias é real, não uma simples mentira. E como a esfera da produção é invisível, privada, isolada e sem comunicação com a sociedade, não é à toa que a aparência do capitalismo seja mesmo essa de trocas voluntárias e que a maioria dos proletários se considere "classe média" e até mesmo "capitalista". O livro O Capital começa analisando a aparência imediata do modo de produção capitalista, a produção simples de mercadorias (em que cada um, sozinho, produz, vende e compra mercadorias, buscando satisfazer suas necessidades), mostrando que a ilusão  é baseada nessa aparência. Marx explica que só do ponto de vista do proletariado, quando ele se impõe como classe autônoma contra o trabalho que lhe é imposto, contra a empresa e as fronteiras nacionais, pode-se ter uma perspectiva teórico-prática que torna publicamente visível a esfera da produção - exploração, trabalho alienado, reificação, fetichismo do capital etc - como fundamento da sociedade capitalista.

[nota 5] Essa perspectiva parece permitir uma compreensão da "sociedade de controle" de modo muito menos holístico e misterioso do que se costuma fazer (que parece levar muitos a crer equivocadamente que a sociedade atual é "permissiva" - como defendem por exemplo os estrelistas espetaculares Zizek, Safatle - ou que a auto-sujeição é verdadeiramente auto-sujeição - por exemplo. a visão auto-culpista "tirano dentro de si"), possibilitando compreender o que é determinante e o que é acidental. Ou seja, parece abrir uma perspetiva prática libertária mais potente. Aos que ainda não sabem de onde veio essas expressões "sociedade de controle" e "sociedade disciplicar", ver as obras de Deleuze e Guattari e Foucault.  A repressão da sexualidade, o sentimento de culpa etc, tudo isso continua sob a forma brutal objetivista segundo a qual, como todos seriam essencialmente monstros estrupradores, assassinos e vagabundos, "bandidos", é preciso se reprimir e reprimir os outros, sofrer e fazer sofrer, para "subir na vida" e se juntar aos poucos "vencedores". Quanto maior a capacidade de sacrificar a si e aos outros, maior seria provado e legitimado o mérito, a subida de posição na pirâmide da meritocracia.

[nota 6] Ver Infoenclosure 2.0 (Dmytri Kleiner & Brian Wyrick) e Fetishism of Digital Commodities and Hidden Exploitation (Wu Ming).

[nota 7] A abolição da família não é nenhuma ideia nova, mas parte do comunismo invariável do proletariado autônomo, isto é, anti-estatal e internacionalista, desde o século XVIII e XIX. Joseph Déjacque, Karl Marx, Wiliam Morris, Piotr Kropotkin e Alexander Bogdanov, entre muitos outros, contribuíram com suas obras para sistematizar e aprimorar essas ideias. 



domingo, 1 de novembro de 2015

Textos contra a nova "Crítica Crítica" (Krisis, Robert Kurz, Moishe Postone, Anselm Jappe...)



O padeiro e o teórico (sobre a teoria da forma-valor) (2014) – Gilles Dauvé

O (quase) discreto fetiche do grupo Kriris  (2001) –  ZEROWORKER

Review: Moishe Postone's Time, labour and social domination - capital beyond class struggle? (2007) - Aufheben 
Crítica completa e definitiva ao postonismo.

The Critique of Pure Theory: Moishe Postone’s Dialectic of the Abstract and the Abstract (2006) - Loren Goldner

Grupo Krisis: A Montanha Pariu um Rato (2003) - Charles Reeve


Luta de classes e forma-valor (2016) - humanaesfera
Pequena crítica a todo e qualquer anti-capitalismo que ignora a luta de classes.

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No mais, bastam os argumentos abaixo para mostrar que a nova "crítica crítica", quando se apresenta como última novidade demolidora e pensa que está fazendo "tabula rasa" só ataca seus próprios espantalhos e fantasmas, que são basicamente os mesmos da velha "crítica crítica":

"Proletariado e riqueza são antíteses. E nessa condição formam um todo. Ambos são formas do mundo da propriedade privada. Do que aqui se trata é da posição determinada que um e outro ocupam na antítese. Não basta esclarecê-los como os dois lados – ou extremos – de um todo.

A propriedade privada na condição de propriedade privada, enquanto riqueza, é obrigada a manter sua própria existência e com ela a existência de sua antítese, o proletariado. Esse é o lado positivo da antítese, a propriedade privada que se satisfaz a si mesma.

O proletariado na condição de proletariado, de outra parte, é obrigado a suprassumir a si mesmo e com isso à sua antítese condicionante, aquela que o transforma em proletariado: a propriedade privada. Esse é o lado negativo da antítese, sua inquietude em si, a propriedade privada que dissolve e se dissolve.

A classe possuinte e a classe do proletariado representam a mesma autoalienação humana. Mas a primeira das classes se sente bem e aprovada nessa autoalienação, sabe que a alienação é seu próprio poder e nela possui a aparência de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-se aniquilada nessa alienação, vislumbra nela sua impotência e a realidade de uma existência desumana. Ela é, para fazer uso de uma expressão de Hegel, no interior da abjeção, a revolta contra essa abjeção, uma revolta que se vê impulsionada necessariamente pela contradição entre sua natureza humana e sua situação de vida, que é a negação franca e aberta, resoluta e ampla dessa mesma natureza.

Dentro dessa antítese o proprietário privado é, portanto, o partido conservador, e o proletário o partido destruidor. Daquele parte a ação que visa a manter a antítese, desse a ação de seu aniquilamento.

Em seu movimento econômico-político, a propriedade privada se impulsiona a si mesma, em todo caso, à sua própria dissolução; contudo, apenas através de um desenvolvimento independente dela, inconsciente, contrário a sua vontade, condicionado pela própria natureza da coisa: apenas enquanto engendra o proletariado enquanto proletariado, enquanto engendra a miséria consciente de sua miséria espiritual e física, enquanto engendra a desumanização consciente – e portanto suprassunsora – de sua própria desumanização. 
O proletariado executa a sentença que a propriedade privada pronuncia sobre si mesma ao engendrar o proletariado, do mesmo modo que executa a sentença que o trabalho assalariado pronuncia sobre si mesmo ao engendrar a riqueza alheia e a miséria própria. Se o proletariado vence, nem por isso se converte, de modo nenhum, no lado absoluto da sociedade, pois ele vence de fato apenas quando suprassume a si mesmo e à sua antítese. Aí sim tanto o proletariado quanto sua antítese condicionante, a propriedade privada, terão desaparecido. 

Se os escritores socialistas atribuem ao proletariado esse papel histórico-mundial, isso não acontece, de nenhuma maneira, conforme a Crítica Crítica pretexta dizer que acontece, ou seja, pelo fato de eles terem os proletários na condição de deuses. Muito pelo contrário. Porque a abstração de toda humanidade, até mesmo da aparência de humanidade, praticamente já é completa entre o proletariado instruído; porque nas condições de vida do proletariado estão resumidas as condições de vida da sociedade de hoje, agudizadas do modo mais desumano; porque o homem se perdeu a si mesmo no proletariado, mas ao mesmo tempo ganhou com isso não apenas a consciência teórica dessa perda, como também, sob a ação de uma penúria absolutamente imperiosa – a expressão prática da necessidade –, que já não pode mais ser evitada nem embelezada, foi obrigado à revolta contra essas desumanidades; por causa disso o proletariado pode e deve libertar-se a si mesmo. Mas ele não pode libertar-se a si mesmo sem suprassumir suas próprias condições de vida. Ele não pode suprassumir suas próprias condições de vida sem suprassumir todas as condições da vida desumana da sociedade atual, que se resumem em sua própria situação." (Marx e Engels, A Sagrada Família - Crítica da Crítica Crítica, 1845)

sábado, 31 de outubro de 2015

Composição de classe


Abaixo, estão links para três textos fundamentais sobre composição de classe, ferramenta teórica e prática que visa favorecer o movimento autônomo do proletariado. Partindo das conexões materiais e sociais (geográficas, produtivas, educativas, subjetivas...) colocadas pela classe capitalista, o proletariado cria suas próprias conexões, sua própria autonomia de classe, podendo se tornar capaz de se opor ao capital num nível mais radical:

Definição de composição de classe - Zerowork


Notas sobre composição de classe - Kolinko


A rede de lutas na Itália - Romano Alquati

A logística e a fábrica sem muros - Brian Ashton

Teste de realidade: estamos vivendo em um mundo imaterial? - Steve Wrigh





sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Autonomia e cotidiano - Espinosa e o imperativo de Kant: "Tratar os outros e a si mesmo como fins, jamais como meios"


(English translation: Autonomy and daily life - Spinoza and Kant's imperative: "Treat others and yourself as ends, never as means" - humanaesfera)

Immanuel Kant (1724-1804) dizia [nota 1] que a ética deveria emanar, para cada indivíduo ser autônomo, de uma esfera ideal incondicional, absoluta, que seria independente e superior ao mundo relativo e mutável que é o da existência cotidiana, social e histórica de cada um. Ele chamou essa esfera ideal absoluta de "razão legisladora". Legisladora porque dita "imperativos categóricos", que são fins e deveres incondicionais. O conjunto dos imperativos formaria o que ele chama "reino dos fins", uma espécie de império supra-mundano ideal dentro da cabeça de cada um e de todos. Liberdade, para ele, é apenas se submeter e cumprir os ditames emanados dessa esfera absoluta supra-sensível, que seria o único bastião livre de paixões.

Porém, como a liberdade kantiana poderia não contradizer o mais impressionante dos seus imperativos categóricos que diz "aja de tal modo a tratar a humanidade, tanto em ti mesmo quanto em qualquer outra pessoa, nunca meramente como um meio para um fim, mas sempre simultaneamente como fim"? Pode-se discutir que "humanidade" parece sugerir um ente abstrato separado de ti mesmo e das outras pessoas, redundando em autonomia nenhuma; porém essa discussão não é a que propomos. Pode-se interpretar mais frutiferamente a frase simplesmente como "tratar a si e ao outro como fins e jamais como meios". Por outro lado, questionável é o próprio pressuposto que fundamenta a ética kantiana, porque, se a razão legisladora é incondicional, absoluta, imperativa, todos e cada um de nós não passam de relativos, meios, instrumentos, objetos, servos, dessa esfera absoluta, que é o reino dos fins em si supra-mundano. 

E na complexidade da existência prática cotidiana, social e histórica, a liberdade kantiana, com seus imperativos, pouco tem a oferecer que não admoestações moralistas, formais e ranzinzas. Isso no melhor dos casos, porque no pior, visto que praticamente ninguém leva à sério as reprimendas, surge a tentação de pôr essas "leis da razão" em prática não pelas leis da razão em si (que se revela impotente), mas por outra instância que, fora da lei e da razão, seria supostamente a única capaz de aplicá-las efetivamente - a polícia.

Existe alguma maneira de salvar o princípio de "tratar a si e ao outro como fins e jamais como meios" sem recair na contradição de fazer disso um "imperativo", que, enquanto imperativo, por definição trata os outros e quem o assume como meios para aplicá-lo? Acreditamos que sim, e que a proposta de liberdade de Baruch Espinosa (1632-1677) [nota 2] é a que permite superar essas dificuldades, iluminando perspectivas mais ricas e frutíferas dos problemas da existência prática.

Espinosa já criticava em Descartes justamente a ideia de uma razão (ou liberdade) transcendente, que seria feita de uma substância (in)diferente e superior à substância de todos nós e de nossa existência. Mas, ao criticar Descartes, Espinosa não abandonou a razão universal nem a liberdade. Muito pelo contrário, ele as radicalizou. Comecemos explicando que, para ele, a liberdade (ou razão) não é nem pode ser um decreto.

Segundo ele, cada indivíduo (humano ou não) surge e se desenvolve por uma confluência casual de infinitas determinações simultâneas que atuam a todo instante e que ele chama de "afecções". E, enquanto essa confluência de afecções sustenta sua existência, o indivíduo continua existindo. Essa é a dimensão passiva (do latim, "passio", paixão) da existência. Porém, quando passa a existir, cada indivíduo é uma determinação nova ("conatus"), uma capacidade específica, um desejo, uma potência ativa que cria novas confluências, outras relações e outras capacidades e desejos que, é claro, não existiam antes. 

Mas mesmo quando passa a existir, cada indivíduo humano continua sendo "afetado" continuamente por novas "afecções" e as experimenta como o que Espinosa chama de "afetos". Os afetos que aumentam as suas capacidades denominam-se "alegria". Os que as reduzem, "tristeza".  Mas qual a relação disso com a liberdade?

O aspecto ativo do "afeto de tristeza" é o "ódio", o desejo pela destruição daquilo que o indivíduo imagina causar a redução de suas capacidades (redução de sua existência), seja imaginando essa causa por engano ou não. Assim, a tristeza leva meramente à reação contra o que imaginamos causá-la. Apesar do que pode parecer, a reação é uma servidão diante daquilo contra que reagimos, e por isso não é uma ação livre, não é autodeterminada. O ódio se manifesta geralmente como uma agressão igual ou maior à imaginada violência original, e quando um indivíduo imagina outro indivíduo humano como causa e reage, isso costuma torná-los escravos de um círculo vicioso de represálias recíprocas e crescentes, uma espiral de reações em cadeia que ocupam uma parte cada vez maior de suas lamentáveis existências. Aliás, nada mais adequado do que a palavra "reacionário" para designar esses infelizes.

Contrariamente, o "afeto de alegria" tem como aspecto ativo o "amor", o desejo por aumentar a capacidade daquilo (ou de quem) que o indivíduo imagina aumentar suas próprias capacidades, sua própria existência. Mas quando sua imaginação se engana, e atribui como causador de sua alegria algo que não o é, o amor é ainda reação, paixão, joguete das circunstâncias,  já que se transformará em tristeza, daí em ódio, como resultado necessário do engano. Só quando atribui com conhecimento adequado, o amor deixa de ser paixão para se tornar ação, razão, transformação consciente do mundo e de suas relações com os outros. O amor, o desejo nascido da alegria, então, se manifesta como ação livre, autodeterminada, porque o indivíduo age aumentando sua própria liberdade, e isso só ocorre efetivamente aumentando a liberdade do outro e do mundo em que vive. Amar, por definição, é tratar a si e ao outro como fins em si, como seres livres, não como meios, objetos, coisas, instrumentos.

No entanto, na complexidade da existência prática cotidiana, em que predominam afecções aleatórias e cegas (paixões), os afetos de tristeza e alegria, e os correspondentes desejos de ódio e amor, se misturam e se combinam, dando surgimento a uma infinidade de afetos e desejos intermediários (Espinosa analisa detalhandamente um vasto apanhado deles: esperança, medo, contentamento, glória, irrisão, inveja, consideração, remorso, compaixão, orgulho, gratidão, crueldade, bajulação, desprezo, audácia, despeito, modéstia, vergonha, generosidade...) pelos quais os indivíduos humanos, fora alguns poucos sortudos, se engajam num emaranhado de reações em cadeia que só reduz ainda mais as suas próprias capacidades e aumenta sua servidão [nota 3]. 

Gostemos ou não, é nesse emaranhado que se passa nossa existência cotidiana, social e histórica, em que existimos mais como objetos, que reagem tão previsivelmente às afecções quanto robôs, do que como seres autônomos que transformam sua existência. As admoestações, as reprimendas, as raivinhas, as culpabilizações, as ladainhas não só são hipócritas (porque ninguém está fora dessa confusão), mas colocam ainda mais lenha na fogueira, já que só sabem pedir e apoiar uma servidão ainda maior (por exemplo, sonhando com uma grotesca violência invencível e incontrolável que acabe com a própria violência: um capataz, um diretor, um rei, um inquisidor, um super-herói, um deus, o karma, o inferno, o fim do mundo, uma invasão alienígena...).

Onde está então a liberdade e a razão nesse emaranhado escabroso? É claro: liberdade é agir, ser protagonista, tornar-se sujeito e não objeto. E para ser livre, é preciso compreender as causas específicas dos afetos e desejos que temos, conhecer as afecções (as circunstâncias) que nos afetam, porque só conhecendo-as podemos transformá-las efetivamente, aumentando as capacidades, nossas, dos outros e do ambiente em que vivemos. Mas a liberdade não é um decreto. Ela surge com experiências, uma confluência específica de afecções, que nos faz experimentar certa alegria que aumenta tanto nossas capacidades de pensar e agir que nos permitem, por sua vez, agir sobre as próprias afecções transformando-as conscientemente, isto é, modificando as circunstâncias

Assim, o procedimento dos reacionários, que se resume a apontar "culpados", bodes expiatórios, "pessoas com vontade má", além de inútil, causa ainda mais ódio e reação. O erro de outro indivíduo, ou mesmo sua violência, não pode ser combatido por decreto, porque isso não faz senão transferir a violência para outro âmbito ainda mais violento e sem controle, como o poder e a hierarquia (hoje ungidos com a lamentável superstição da meritocracia, da "mão invisível" da guerra de todos contra todos chamada mercado, e da idolatria chamada Estado). O que é efetivo para combater o erro, e especialmente a violência, é apontar a esse indivíduo experiências que o permitam compreender que, se ele reduz os outros indivíduos a objetos, meios, é porque ele próprio se comporta ridiculamente como um robô, porque seus atos, que ele pensava ser livres, são meras reações completamente previsíveis às afecções que lhe ocorrem, o que faz automaticamente o ódio (e a servidão decorrente dele, a reação) ocupar a maior parte de sua existência. Em suma, contribuír para fazê-lo compreender as afecções que o afetam é o único modo de ajudá-lo a deixar de ser objeto, mudá-las e transformar ativamente a sua vida, única condição para que passe a tratar a si e aos outros como fins em si e não como meios.

E a razão? Se a razão for entendida como decreto (como em Kant), ela se resume a uma emissão de imperativos, reprimendas, que, embora muitos (ou mesmo todos) de nós possamos categoricamente concordar, praticamente ninguém pode nem quer seguir de fato na vida cotidiana. Isso porque todo decreto busca burramente passar por cima da confusão concreta que é a nossa existência prática cotidiana, social e histórica, contribuindo, na verdade, como um elemento a mais, até multiplicador, no emaranhado de reações, de servidões. 

A única razão universal que pode ser efetivamente assumida e posta em prática, então, só pode ser um tipo de alegria, um tipo de amor que seja mais apaixonante do que as reações. Um amor pela autonomia, pela liberdade, pelo conhecimento, ou seja, pela virtude como algo desejado por si só, universal, livremente acessível à todos para desfrute e alegria generalizados. Decorre da razão, consequentemente, o projeto de transformar a vida cotidiana, social e histórica no sentido universal de que todos possam desenvolver suas capacidades livremente, como seres autônomos, ou, em outras palavras, a finalidade de suprimir todas as condições que levem seja que indivíduo for a aceitar ser tratado como objeto, como instrumento,  meio para um fim alheio.

Concluindo: O que está em jogo é a nossa capacidade de, nesse mundo que é um emaranhado servil de reações cegas, sermos efetivamente capazes de criar e propagar a razão e a liberdade. Para isso, vimos que um imperativo ou decreto só traz mais servidão, enquanto que provamos que só podemos propagar a razão, a virtude e a liberdade se, na vida cotidiana, provarmos que são válidos por si sós, ou seja, como amor, alegria. 

humanaesfera, outubro de 2015

NOTAS:
[nota 1] No livro Fundamentação da metafísica dos costumes.

[nota 2] Aqui tratamos especificamente da proposta de liberdade naquilo que Espinosa chama de "segundo gênero de conhecimento", exposto em Ética demonstrada à maneira geométrica, partes III, IV, V e VI.

[nota 3] Essa mistura confusa, por exemplo, explica o vício: um indivíduo imagina como causa do aumento de suas capacidades [isto é, de alegria e, portanto, amor] algo que na realidade aumenta uma parte limitada e temporária de suas capacidades [por exempo, a capacidade de ficar super-ativo ou super-relaxado, como os efeitos de certas drogas] mas que reduz suas capacidades como um todo e a longo prazo, causando tristeza e, portanto, ódio e, consequentemente, tornando-o um escravo.


Continuação destas reflexões éticas
Contra as recompensas e punições (contra a meritocracia, contra a coerção) (2014)
Autonomia, espiral de violências e apelo à força (i.e. à classe dominante) (2015)
Dissecando a metafísica da escassez (2017)
Materialismo (2014)
Pequena crítica antimoralista da dominação (crítica à idéia de "servidão voluntária") (2011)
Propriedade privada, escassez e democracia (2014)

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Autonomia, "classe média" e auto-abolição do proletariado

Continuação das reflexões do texto Ação direta VERSUS trabalho de base

Antes de tudo esclareçamos que a ideia de "fazer as pessoas lutarem" é não só presunçosa, mas completamente equivocada.

A existência dos proletários já é ação, já é luta, e eles já estão tão auto-organizados quanto está sob seu poder neste momento combater a classe dominante (composta por burguesia e burocracia, e seus órgãos de poder: Estado, empresas, sindicatos, ongs e partidos). Estamos em ação, em luta, independentemente de termos ou não consciência disso.

A todo momento, conforme o grau da capacidade de agir do proletariado,  ele, por si só, se vale de órgãos auxiliares (órgãos que ele cria ou, se a capacidade de agir é reduzida, órgãos pré-existentes, que são os da classe dominante - sindicatos, partidos, direito - que ele tenta utilizar a seu favor contra a própria classe dominante, que, por medo de uma explosão, pode ceder, como válvulas de alívio). Órgãos que são meios de aumentar sua capacidade prática. Orgãos cujas tarefas devem ser, para eles, específicas e explícitas (por exemplo, os conselhos de trabalhadores e soldados, os sovietes, tem a tarefa de coordenar a execução de tarefas entre bairros, cidades, países, continentes contra os órgãos da classe dominante que também coordenam sua ação contra nós nesses âmbitos) e que devem ser dissolvidos quando a tarefa é finalizada ou derrotada, para que não sejam mantidos como múmias cuja carniça, avidamente disputada por uruburocratas, só serve para alimentar estes inimigos.


No entanto, os proletários, por maior que seja sua autonomia, são contraditórios. Neles se encontram duas tendências em tensão: uma delas é sua afirmação como capital variável, ou seja, vendedores/compradores tanto quanto a classe dominante é vendedora/compradora (daí a aparência de existir apenas "classe média", infinitamente subdivisível desde alta alta alta até baixa baixa baixa, cada grau imaginando-se protegido pela polícia contra os graus inferiores), afirmação de sua posição de assalariados, mantenedores do status quo, do Estado e do capital. Mas como na realidade os proletários não possuem nenhuma mercadoria para vender a não ser a si mesmos (no mercado de trabalho), há a outra tendência, que é a sua afirmação como classe autônoma, como proletariado, a classe daqueles que não possuem mercadorias (que não tem nada a perder a não ser as correntes que o aprisionam) e cuja praxis é o comunismo (auto-abolição do proletariado, pela supressão da sociedade de classes e o Estado).

Por isso, a capacidade de agir dos proletários, sua autonomia, que eles sempre possuem em algum grau, é uma tensão, e toma contraditoriamente partido de duas direções: uma é reacionária e a outra é comunista. A única tendência cujos órgãos podem se tornar "duradouros" e de "longa duração" dentro da sociedade atual é a reacionária (daí a recuperação dos órgãos, como os sovietes, pela classe dominante, e a burocratização), pois sua permanência supõe a adequação à continuidade do proletariado como sustentáculo da sociedade de classes e do Estado (os proletários podem até mesmo afirmar radicalmente sua autonomia como capital variável, autogerindo sua própria exploração e repressão). A outra tendência, a comunista, só pode ter êxito quando numa dinâmica de rápida e crescente expansão, ultrapassando subitamente as fronteiras nacionais e divisões identitárias, estabelecendo desde o princípio o modo de produção comunista, o livre acesso aos meios de produção e de vida. E isto só pode ter êxito se toma os fluxos e estoques do circuito produtivo mundial, abolindo a economia ("ordem emergente" do mercado, que reflete não as necessidades humanas mas o poder de compra e o lucro), para submetê-los às necessidades humanas, ao poder dos indivíduos livremente associados que abolem as classes e o Estado.

Portanto, quando afirmamos a teoria comunista, não é que queiramos levar seja quem for à luta, mas sim afirmar a tendência comunista das lutas que todos os proletários do mundo já estão fazendo pelo simples fato de existirem. A expressão da teoria é espontânea, porque não parte de outro ponto de vista senão da condição problemática, contraditória, que constitui o proletariado em todo o mundo, sendo que nós mesmos, que nos dedicamos à essa teoria, sofremos a contradição como todos os demais proletários em nossa prática cotidiana. Quando a expressamos, sabemos que não somos "mais" do que ninguém, até porque somos plenamente conscientes de que ela jamais vai encontrar ressonância e ampla difusão, e permanecerá parecendo um  delicioso delírio megalomaníaco (delícia que é uma das razões pela qual nos dedicamos a ela),  enquanto os proletários, em sua prática, continuarem sendo forçados predominantemente ao lado reacionário (o de serem capital variável, "classe média") de sua luta. Se o lado comunista predominar, a difusão vai se fazer sem a necessidade de nenhum "trabalho de formiguinha" ("trabalho de base"), porque ela será apropriada espontaneamente, grandemente desenvolvida e difundida por cada proletário empenhado em abolir a venda de si mesmo e que busca entender sua situação para poder agir de forma mais poderosa.

Humanaesfera, agosto de 2015

Bibliografia:
Crise e Autogestão (Négation, 1973)
Capitalismo e comunismo (Jean Barrot/Gilles Dauvé, 1972)
O «renegado» Kautsky e seu discípulo Lênin  (Jean Barrot, 1969)
Leninismo e Ultra-esquerda (Jean barrot & François Martin, 1972)
Composição de classe (Zerowork, 1975)
Notas sobre Composição de Classe (Kolinko, 2001)
A Impotência do Grupo Revolucionário (Sam Moss, 193?)
Sobre Organização: As Gangues (dentro e fora do Estado) e o Estado como Gangue (Jacques Camatte & Gianni Collu, 1969)
Origem e função da forma partido (Programma Comunista, 1961)
A revolução não é tarefa de partido (Otto Ruhle, 1920)

domingo, 30 de agosto de 2015

O Fetichismo das Mercadorias


Com legendas em português. Capítulo O Fetichismo das Mercadorias do livro A Reprodução da Vida Cotidiana, de Fredy Perlman.




quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Abolição do trabalho e a questão do circuito produtivo global no comunismo



Traduzimos alguns trechos extraídos da intervenção de Libcom no debate "Parecon or libertarian communism?" ("Economia participativa ou comunismo libertário?"):

A ABOLIÇÃO DO TRABALHO

"Ao invés de generalizar o trabalho para medir ´com justiça´ o esforço feito na sociedade como um todo e pagar proporcionalmente, nós buscamos o movimento oposto: generalizar a atividade humana que vale por si mesma, negando a necessidade de incentivos ou sanções, negando o sistema salarial."

"Essa generalização da atividade além da medida é o que chamamos de abolição do trabalho e da economia como uma esfera separada da vida social. A objetivo é eliminar o trabalho como uma categoria separada de atividade humana, fazendo a atividade produtiva ser satisfatória por si só. Assim, por exemplo, poderemos usar a tecnologia não apenas para aumentar a produtividade, mas também para reduzir o esforço, o tempo de trabalho, etc., porque a produção será um assunto  social, e atenderá diretamente e de forma transparente as necessidades sociais. O objetivo é a abolição do trabalho, não a sua democratização."

"Além disso, uma sociedade que [como a economia participativa] faz da recompensa do esforço e do sacrifício um princípio fundacional não oferece nenhum incentivo para reduzir o esforço e o sacrifício. Assim como hoje, os trabalhadores buscariam esconder as inovações que reduzem o trabalho, a fim de maximizar suas recompensas (dado que eles perderiam se revelassem ter descoberto um modo de fazer as mesmas tarefas com menos esforço). Por exemplo, se eu fizesse X tarefas  e ela me desse Y créditos para sobreviver, eu não gostaria de ver a queda no meu padrão de vida simplesmente porque eu (ou outra pessoa) inventei uma nova forma de fazer a tarefa mais facilmente. Em contraste, sem salário, veríamos a redução do esforço e do sacrifício, junto com a sustentabilidade ecológica, se tornarem as forças motrizes do desenvolvimento sob o comunismo libertário (ou seja, manifestações concretas de 'necessidade' na máxima ´de cada um conforme as suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades')."

"A remuneração pelo esforço e sacrifício incentiva a mentir e enganar, já que os indivíduos podem se beneficiar tanto por meios sujos quanto como honestos. As possíveis soluções para isso (teste mandatório etc) apenas criaria uma outra camada desnecessária de tarefas tecnocráticas,  mais preocupada em monitorar os trabalhadores do que em satisfazer as necessidades humanas".


O CIRCUITO PRODUTIVO GLOBAL NO COMUNISMO

"Em contraste [com a ideia de planificação central], propomos a "produção por empuxo" ["pull production", que contrasta com a "push production", "produção por empurro"], que significa produção  em resposta ao consumo; a medida que os estoques vão sendo consumidos, isso sinaliza automaticamente a produção para reabastecê-los, 'puxando' bens através da rede logística [supply chain]. Como se percebe, não se trata da mão invisível do mercado, até porque não há dinheiro, preços e nem troca. Nossa crítica ao planejamento central não é apenas que  ele exclui a maioria de elaborar o plano (embora essa crítica seja correta, ela é limitada), mas que a própria ideia de planificar centralmente metas (cotas) para algo tão dinâmico como uma sociedade de bilhões é fundamentalmente falho, tanto em termos práticos como epistemologicamente.

Consequentemente, vemos o planejamento social racional ocorrendo pela definição da prioridade de setores e bens/serviços, desde os essenciais até o luxo. Os volumes exatos de produção  são, então, determinados localmente em resposta ao consumo, com  a alocação de recursos determinada pela prioridade relativa das indústrias, produtos e serviços em questão. Desse modo, a macro-ordem em termos de volumes reais de produção é emergente e não planificada, embora possa surgir de acordo com as prioridades do plano decidido socialmente (ao contrário da ordem emergente dos mercados, que simplesmente reflete o poder de compra e o que é lucrativo produzir, ao invés do que é necessário, ou a ordem emergente da evolução biológica, que reflete nada mais do que aptidão reprodutiva).


Os meios pelos quais nós pensamos que este processo de planejamento social deve acontecer é através de estruturas de conselhos, por delegados com mandatos revogáveis ou rotativos definidos em assembleias para tratar das decisões de alocação de recursos de acordo com as prioridades do plano social. Pode haver outras maneiras de fazer isso incorporando tecnologia (como por exemplo, qualquer pessoa ser capaz de acessar um banco de dados para atualizar suas preferências individuais, atualizando automaticamente o plano social). No entanto, uma tal base de dados em larga escala seria sem precedentes, e em qualquer caso, há provavelmente benefícios em ter discussões cara-a-cara em conselhos, em vez de escolhas individuais atomizadas. Nós estamos de mente aberta para meios melhores, mas uma estrutura de conselhos parece um bom ponto de partida."



Continuação das reflexões deste texto: 

 Fundamentação teórica: 
Propriedade privada, escassez e democracia 

 Perspectiva prática: 




sábado, 8 de agosto de 2015

Concorrência e monopólio


Não existe concorrência sem monopólio, porque a concorrência em si já pressupõe privação de propriedade, ou seja, escassez. Escassez é simplesmente uma situação em que a satisfação de um exclui a satisfação do outro. Portanto, concorrência, por definição, é sempre pelo monopólio para si e pela privação para o outro. Concorrência e monopólio são apenas adjetivos da propriedade privada e não existem sem ela.

Graças à propriedade privada, quanto maior a escassez e necessidade, maior o lucro, porque mais caro é possível cobrar em pagamento. 

O "empreendedor de sucesso" é aquele que, depois de concorrer, consegue ao fim monopolizar, isto é, privar, reproduzindo numa escala sempre maior a escassez e a necessidade.

Alcançando o monopólio, o lucro da empresa se multiplica e parece surgir do nada  (super-lucros), como se fosse desproporcional ao trabalho feito dentro dela. Na realidade é o resto da sociedade que, pagando caro, trabalha de graça  (sobre-trabalho) para aquele proprietário. E também, o novo monopólio pressiona os antigos concorrentes, que, desesperados, impõem que os proletários trabalhem ainda mais para tentar compensar seu crescente fracasso no mercado frente ao vencedor. 

Por diversas vias, o sobre-trabalho (trabalho não pago) que os proletários são açoitados para fazer por todos os proprietários concorrentes flui como mais-valia para os proprietários com mais sucesso na concorrência pela monopolização sob a forma de super-lucros  - o sonho de todas as empresas concorrentes.

No entanto, a concorrência (que sempre é pelo monopólio) nunca acaba, porque sempre podem surgir novos concorrentes com novas máquinas e mercadorias que buscam suplantar os monopólios, embora estes, por terem já anteriormente acumulado super-lucros, sempre estejam numa posição vantajosa para investir em inovação e desenvolvimento de máquinas e produtos frente aos novos concorrentes. 

Essa dinâmica entre monopólio e concorrência explica como funciona todo e qualquer tipo de mercado (troca, inclusive escambo), e todos os tipos de capital que dele decorrem automaticamente: 

-capital rentista (que vive de rendas, monopolizando patentes, copyright, royalties, imóveis, terrenos); 

-capital comercial (que monopoliza rotas comerciais para poder comprar barato e vender caro)

-capital financeiro (que empresta para receber com juros, porque o banco tem o dinheiro o que outros não tem), e  

-capital industrial (que é a propriedade privada das condições de existência da população, que força a classe proletária a se oferecer como objeto de consumo no mercado de trabalho  à classe proprietária em troca do salário).

humanaesfera, agosto de 2015


quinta-feira, 30 de julho de 2015

Condições de existência universalmente interconectadas/interdependentes

(English translation here)


O site The Observatory of Economic Complexity permite ter uma noção de como nossas condições de existência - ou seja, as condições materiais de nossa vida, desde medicamentos, alimentos, até smartphones -  são interligadas e interdependentes em escala mundial.  O site evidencia que é uma total fantasia a ideia de auto-suficiência doméstica, comunitária, municipal ou nacional, porque as condições de nossa existência, mesmo no nível atual (que é muito melhor do que no passado, apesar da pobreza ainda para a maioria), pressupõem em todo o lugar a combinação de materiais e produtos de várias cidades, países, continentes... 

Essa simples constatação torna claro que defender "identidades", "nações", "etnias", "comunidades", "países", "autarquias", "territórios autônomos" e "zonas autogeridas" é o mesmo que reivindicar o estabelecimento de novas propriedades privadas e, consequentemente, de novos capitais e novos Estados. Eis o porquê:

1) para sobreviver, cada uma dessas "autarquias" precisará adquirir os materiais e produtos de que é privada; 

2) sendo privada desses materiais e produtos (isto é, é uma propriedade privada), terá necessidade de comprá-los;

3) mas para comprar, é preciso vender - vender alguma coisa (troca, tanto faz se por escambo, dinheiro etc);

4) vender coisas requer encontrar compradores, ou seja, concorrer no mercado por "sucesso"  - sucesso que nada mais é do que derrubar os concorrentes para alcançar o máximo de monopólio;

5) para concorrer no mercado é necessário impor, dentro da propriedade privada, que se trabalhe  jornadas e intensidades no mínimo tão brutais quanto os concorrentes (geralmente concorrentes com um grau muito maior de automação da produção), para que seus produtos tenham um preço e/ou qualidade "concorríveis";

6) impor tais  jornadas e intensidades de trabalho exige uma hierarquia, para aplicar punições e recompensas aos trabalhadores a fim de que essas "metas" sejam alcançadas por eles. Ou seja, serão obrigados a recriar na prática algo que tem a exata função de capitalista, para poder sobreviver e não falir (mesmo que essa função de capitalista seja uma comissão "livremente" escolhida em assembleias e em  autogestão);

7) e se a propriedade privada "autárquica" tiver enfim "alcançado sucesso" - monopolizando o mercado - a jornada e intensidade de trabalho até poderão ser relaxadas no interior dessa propriedade, porque a pressão da concorrência acabou. Porém, isso significa meramente que ela é um parasita sustentado pelo trabalho dos demais proletários do mundo, que são forçados a trabalhar para ela (direta ou indiretamente), única maneira de comprar esses produtos, monopolizados por ela.


Conclusão: tudo isso demonstra que é imprescindível uma perspectiva internacionalista (anti-nacionalista e anti-comunitarista). Lutar por nossa liberdade e autonomia é lutar por expandir as capacidades humanas de pensar, desejar e agir - jamais lutar por reduzi-las e limitá-las. 

Os produtos, luxos, tecnologias e facilidades que a burguesia costuma atribuir ao "capitalismo", ao "mercado", ao "Estado", à "propriedade" e ao "seu trabalho", são na verdade frutos das capacidades humanas, isto é, de nossas capacidades, da humanidade. Ao abolir a propriedade privada das nossas condições de existência universalmente (planetariamente) interconectadas e interdependentes, superando a troca e a economia, transformaremos essa interconexão em condições práticas (meios de produção) universalmente e livremente acessíveis a qualquer um no mundo que queira satisfazer por si mesmo (ou com quem mais quiser) suas inclinações, desejos, projetos, necessidades, pensamentos, paixões.  A verdadeira liberdade e autonomia pressupõem o comunismo, isto é, o fim da propriedade privada e o estabelecimento da verdadeira propriedade, que é a propriedade comum humana, pelos indivíduos livremente associados, sobre as condições materiais universalmente acessíveis de sua livre auto-realização, satisfação, e expressão, a comunidade humana mundial. 

Para este fim, é útil estudar essas interdependências e interconexões mundiais: como as coisas são hoje produzidas, armazenadas e transportadas pelo mundo e o fluxo informacional que coordena tudo isso? Por exemplo as "supply chains" (redes logísticas). Também é útil conhecer e atualizar as obras que foram fundo nessa perspectiva: por exemplo, as utopias de Joseph Déjacque (Humanisfera), Alexander Bogdanov (Estrela Vermelha), Constant Nieuwenhuys (Nova Babilônia), as obras de Jean Barrot (Gilles Dauvé), Piotr Kropotkin, da Internacional Situacionista, dos autonomistas (autonomia operária) sobre os fluxos materiais que constituem a composição de classe, etc.

humanaesfera, julho de 2015


Textos relacionados:




Continuação das reflexões deste texto: 

 Fundamentação teórica: 
Propriedade privada, escassez e democracia

 Perspectiva prática: 


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