Pointblank! mostra como as condições para o golpe de Estado de Pinochet foram preparadas por Allende e pelos partidos de esquerda, que desmobilizaram um proletariado poderoso e minaram a sua força. Ao impedirem que a classe trabalhadora se armasse e ao perpetuar o exército permanente, eles mesmos acabaram por assinar suas próprias sentenças de morte.
sábado, 30 de novembro de 2019
Uma estranha derrota: a revolução chilena – Pointblank! (1973)
Traduzimos o texto Strange defeat: The Chilean revolution, escrito pelo grupo situacionista Pointblank! em outubro de 1973, um mês após o golpe de 11 de setembro no Chile que depôs Salvador Allende.
Pointblank! mostra como as condições para o golpe de Estado de Pinochet foram preparadas por Allende e pelos partidos de esquerda, que desmobilizaram um proletariado poderoso e minaram a sua força. Ao impedirem que a classe trabalhadora se armasse e ao perpetuar o exército permanente, eles mesmos acabaram por assinar suas próprias sentenças de morte.
Pointblank! mostra como as condições para o golpe de Estado de Pinochet foram preparadas por Allende e pelos partidos de esquerda, que desmobilizaram um proletariado poderoso e minaram a sua força. Ao impedirem que a classe trabalhadora se armasse e ao perpetuar o exército permanente, eles mesmos acabaram por assinar suas próprias sentenças de morte.
I
No
palco espetacular dos eventos atuais denominados “notícias”, o
funeral da socialdemocracia no Chile foi orquestrado com alta
dramaticidade por quem entende mais intuitivamente a ascensão e
queda de governos: outros especialistas do poder. As últimas cenas
do script chileno foram escritas em vários campos políticos de
acordo com os requisitos das ideologias particulares. Alguns vieram
para enterrar Allende, outros, para o enaltecer. Ainda outros
reivindicam um conhecimento ex post facto de seus erros.
Quaisquer que sejam os sentimentos expressos, estes obituários foram
escritos com bastante antecedência. Os organizadores da “opinião
pública” só podem reagir reflexivamente e com uma distorção
característica dos próprios eventos.
A
medida que os respectivos blocos da opinião mundial “escolhem
lados”, a tragédia chilena é reproduzida como uma farsa de escola
internacional; a luta de classes no Chile é dissimulada como
pseudo-conflito entre ideologias rivais. Nas discussões da
ideologia, não ouviremos nada sobre aqueles a quem o “socialismo”
do regime de Allende era supostamente destinado: os trabalhadores e
camponeses chilenos. Seu silêncio foi assegurado não apenas por
aqueles os metralharam em suas fábricas, no campo e em suas casas,
mas por aqueles que diziam (e continuam a dizer) representar seus
“interesses”. Mesmo com mil deturpações, no entanto, as forças
que estiveram envolvidas na "experiência chilena" ainda
não se expuseram. O seu conteúdo real será estabelecido apenas
quando as formas de sua interpretação forem desmistificadas.
Mais
do que tudo, o Chile fascinou a dita esquerda em todos os países. E,
ao documentar as atrocidades da junta militar atual, cada partido e
seita tenta ocultar a estupidez das análises anteriores. Dos
burocratas no poder em Moscou, Pequim e Havana aos burocratas
exilados dos movimentos trotskistas, um coro litúrgico de
embusteiros esquerdistas oferece sua avaliação post mortem
do Chile, com conclusões tão previsíveis quanto sua retórica. As
diferenças entre eles são apenas de nuances hierárquicas;
compartilham uma terminologia leninista que exprime 50 anos de
contrarrevolução em todo o mundo.
Os
partidos estalinistas do Oeste e os Estados “socialistas” do
Leste, muito acertadamente, vêem na derrota de Allende a sua própria
– a de um homem de Estado. Com a falsa lógica que é um mecanismo
essencial de seu poder, aqueles que sabem tanto de Estado e de
(derrota da) Revolução denunciam a queda de um regime
constitucional, burguês. Por outro lado, os importadores de
“esquerda” do trotskismo e maoísmo apenas podem lamentar a
ausência de um “partido de vanguarda” - o deus ex machina
do senil bolchevismo – no Chile. Os que herdaram a derrota de
Kronstadt e Xangai revolucionárias sabem do que falam: o projeto
leninista requer a imposição absoluta de uma “consciência de
classe” deformada (a consciência de uma classe dominante
burocrática) àqueles que, em seus projetos, são apenas “as
massas”.
As
dimensões da “Revolução Chilena” transbordam os limites de
qualquer doutrina particular. Enquanto os “anti-imperialistas” do
mundo denunciam – de uma distância segura – o muito conveniente
bicho-papão da CIA, a real razão da derrota do proletariado chileno
deve ser buscada em outro lugar. Allende o mártir foi o mesmo Allende
que desarmou as milícias de trabalhadores de Santiago e Valparaíso
nas semanas que antecedem o golpe, deixando-os indefesos diante dos
militares cujos oficiais já estavam em seu gabinete. Essas ações
não podem ser explicadas simplesmente como “colaboração de
classe” ou como uma “traição”. As condições da estranha
derrota da Unidad Popular (UP) foram preparadas muito antes. As
contradições sociais que emergiram nas cidades e no campo do Chile
em agosto e setembro não foram simplesmente divisões entre
“esquerda” e “direita”, mas envolveram uma contradição
entre o proletariado chileno e os políticos de todos os partidos,
incluindo aqueles que se apresentavam como os mais “revolucionários”.
Num país “subdesenvolvido”, uma luta de classes altamente
desenvolvida surgira, ameaçando as posições de todos aqueles que
queriam o subdesenvolvimento, seja economicamente, através da
continuação da dominação imperialista, ou politicamente, através
do retardo de um autêntico poder proletário no Chile.
II
Em
todo lugar, a expansão do capital cria a sua aparente oposição na
forma de movimentos nacionalistas que procuram se apropriar dos meios
de produção “em nome” dos explorados e, com isso, se apropriar
o poder social e político para si mesmos. A extração de mais-valia
do imperialismo tem suas consequências políticas e sociais, não
somente na pobreza forçada daqueles que devem se tornar seus
trabalhadores, mas no papel secundário designado à burguesia local,
que é incapaz de estabelecer completa hegemonia sobre sociedade. É
precisamente esse vácuo que os movimentos de “libertação
nacional” buscam ocupar, assumindo assim o papel gerencial não
preenchido pela burguesia dependente. Esse processo assumiu muitas
formas – da xenofobia religiosa de Khadafi à religião burocrática
de Mao – mas em todas elas, as palavras de ordem de
“anti-imperialismo” são as mesmas, e aqueles que as dão estão
em idênticas posições de comando.
A
distorção imperialista da economia chilena deu abertura para um
movimento popular que almejava estabelecer uma base de capital
nacional. Porém, o status econômico relativamente avançado do
Chile impediu o tipo de desenvolvimento burocrático que tinha
chegado ao poder pela força das armas em outras áreas do “terceiro
mundo” (um termo usado para ocultar as divisões reais de classe
nesses países). O fato de que a “progressista” Unidad Popular
fosse capaz de uma vitória eleitoral como coalizão reformista
foi um reflexo da peculiar estrutura social no Chile, que era, em
muitos aspectos, similar àquela nos países capitalistas avançados.
Ao mesmo tempo, a industrialização capitalista criou as condições
para a possível superação dessa alternativa burocrática na forma
de um proletariado rural e urbano que emergiu como a classe mais
importante, e com aspirações revolucionárias. No Chile, tanto
democratas cristãos quanto social-democratas deveriam provar ser os
oponentes de qualquer solução radical dos problemas existentes.
Até
o advento da coalizão UP (Unidad Popular), as contradições
na esquerda chilena entre uma base radical de trabalhadores e
camponeses e seus assim chamados “representantes” políticos
permanecia em grande medida um antagonismo latente. Os partidos de
esquerda foram capazes de organizar um movimento popular apenas com
base na ameaça estrangeira posta pelo capital norte-americano. Os
comunistas e socialistas foram capazes de sustentar a imagem de
autênticos nacionalistas sob o governo democrata cristão porque o
programa de Eduardo Frei de “chilenização” (que incluía uma
política de reforma agrária que Allende iria conscientemente emular
mais tarde) era explicitamente conectada à “Aliança pelo
Progresso” patrocinada pelos EUA. A esquerda oficial foi capaz de
construir sua própria aliança dentro do Chile em oposição, não
ao reformismo em si, mas a um reformismo com ligações estrangeiras.
Mesmo com seu caráter moderado, o programa de oposição da esquerda
chilena só foi adotado depois que a atividade de greve militante dos
anos 1960 – organizada independentemente dos partidos – ameaçou
a existência do regime de Frei.
A
vitoriosa UP se moveu em um espaço aberto pelas ações radicais dos
trabalhadores e camponeses chilenos; ela se impôs como uma
representação institucionalizada das causas proletárias na medida
em que ela foi capaz de as recuperar. Apesar do caráter extremamente
radical de muitas das ações de greve anteriores (que incluía
ocupações de fábrica e a administração pelos trabalhadores de
várias plantas industriais, notavelmente a COOTRALACO), a prática
do proletariado chileno carecia de uma correspondente expressão
teórica e organizativa, e essa falha em afirmar sua autonomia o
deixou aberto às manipulações dos políticos. Apesar disso, a
batalha entre reforma e revolução estava longe de ter sido
decidida.
III
A
eleição do maçom Allende, embora não tenha significado de modo
algum que os trabalhadores e camponeses tivessem estabelecido o seu
próprio poder, porém, intensificou a luta de classes que estava
ocorrendo em todo Chile. Ao contrário das declarações da UP de que
a classe trabalhadores alcançara uma grande “vitória”, tanto o
proletariado quanto seus inimigo continuaram sua batalha fora dos
canais parlamentares convencionais. Apesar de Allende constantemente
dizer aos trabalhadores estar engajado em uma “luta comum”, ele
revelou o verdadeiro caráter de seu socialismo-por-decreto no início
de seu mandato quando ele assinou o Estatuto,
que formalmente garantiu que ele respeitaria rigorosamente a
constituição burguesa. Tendo chegado ao poder com um programa
“radical”, a UP entrou em conflito com uma crescente corrente
revolucionária em sua base. Quando o proletariado chileno mostrou
que estava preparado para tomar os slogans da UP literalmente –
slogans que não passavam de retórica vazia e promessas não
cumpridas por parte da coalizão burocrática – colocando-os em
prática, as contradições entre o conteúdo e a forma da revolução
chilena se tornou evidente. Os trabalhadores e camponeses do Chile
estavam começando a falar e agir por si mesmos.
Apesar
de todo seu “marxismo”, Allende nunca passou de um administrador
da intervenção do Estado em uma economia capitalista. O estatismo
de Allende – uma forma de capitalismo de Estado que acompanha a
ascensão de todos os administradores do subdesenvolvimento – nada
mais foi senão uma extensão quantitativa das políticas da
democracia cristã. Ao nacionalizar as minas de cobre e outros
setores industriais, Allende continuou a centralização iniciada sob
o controle do aparato de Estado chileno – uma centralização
iniciada pelo “arqui-inimigo” da esquerda Eduardo Frei. Allende,
de fato, foi forçado a nacionalizar certos setores porque eles
tinham sido espontaneamente ocupados pelos trabalhadores. Ao impedir
a autogestão da indústria pelos trabalhadores, neutralizando essas
ocupações, Allende se opôs ativamente ao estabelecimento de novas
relações sociais de produção. Como resultado de suas ações, os
trabalhadores chilenos apenas substituíram um conjunto de patrões
por outro: agora a burocracia do governo, no lugar da Kennecott ou
Anaconda, dirigia o seu trabalho alienado. Essa mudança de
aparências não podia esconder o fato de que o capitalismo chileno
estava se perpetuando. Dos lucros extraídos pelas corporações
multinacionais aos “planos quinquenais” do estalinismo
internacional, a acumulação do capital sempre é feita às custas
do proletariado.
Que
governos e revoluções sociais nada tem em comum foi também
demonstrado nas áreas rurais. Em contraste com a administração
burocrática da “reforma agrária”, herdada e continuada pelo
governo Allende, a tomada armada espontânea de grandes propriedades
oferecia uma resposta revolucionária à “questão da terra”. Por
maiores que fossem os esforços da CORA (Corporación de la
Reforma Agraria) para impedir essas expropriações pela mediação
de “cooperativas camponesas” (asentamientos), a ação
direta dos camponeses ultrapassou essas formas ilusórias de
“participação”. Muitas tomadas de terra foram legitimizadas
pelo governo somente depois que a pressão dos camponeses tornou
impossível ao governo não fazer isso. Reconhecendo que essas ações
colocavam em questão sua própria autoridade tanto como a dos
proprietários de terras, a UP nunca perdeu a oportunidade de
denunciar as expropriações “indiscriminadas” e de apelar à
“moderação”.
As
ações autônomas do proletariado urbano e rural formaram a base do
desenvolvimento de um movimento significativamente à esquerda do
governo Allende. Ao mesmo tempo, esse movimento forneceu ainda outra
ocasião para que uma representação política se impusesse sobre as
realidades da luta de classes chilena. Esse papel foi assumindo pelos
militantes guevaristas do MIR (Movimiento de Izquierda
Revolucionaria) e sua contraparte rural, o MCR (Movimento
Camponês Revolucionário), os quais tiveram êxito em recuperar
muitas das conquistas radiciais dos trabalhadores e camponeses. O
slogan dos miristas de “luta armada” e sua obrigatória
recusa da política eleitoral eram apenas gestos pro forma:
logo após a eleição de 1970, um corpo de elite das guerrilhas
urbanas do MIR se tornou a guarda palaciana pessoalmente escolhida
por Allende. Os laços que ligam o MIR-MCR à UP foram além de
considerações puramente táticas – ambos tinham interesses comuns
a defender. Apesar da pose revolucionária do MIR, ele agiu de acordo
com as exigências burocráticas da UP: sempre que o governo
estivesse em apuros, os ajudantes do MIR reuniriam seus militantes
sob a bandeira da UP. Se o MIR fracassou em ser a “vanguarda”
do proletariado chileno, não foi porque ele não era vanguarda o
bastante, mas porque sua estratégia sofreu a resistência daqueles
que tentou manipular.
IV
A
atividade direitista no Chile aumentou, não em resposta a algum
decreto governamental, mas por causa da ameaça direta posta pela
independência do proletariado. Diante das crescentes dificuldades
econômicas, a UP só podia falar em “sabotagem direitista” e da
obstinação da “aristocracia operária”. Quaisquer que fossem as
impotentes denúncias do governo, essas “dificuldades” eram
problemas sociais que só poderiam ser resolvidos de maneira radical
através do estabelecimento de um poder revolucionário no Chile.
Apesar de afirmar “defender os direitos dos trabalhadores”, o
governo Allende se mostrou como um espectador impotente da luta de
classes se desdobrando fora das estruturas políticas formais. Foram
os próprios trabalhadores e camponeses que tomaram a iniciativa
contra a reação, e assim, criaram formas novas e radicais de
organização social, formas que exprimiam uma consciência de classe
altamente desenvolvida. Depois do lockout dos patrões em outubro de
1972, os trabalhadores não esperaram que a UP interviesse, mas
ocuparam ativamente as fábricas e iniciaram a produção por si
mesmos, sem “assistência” do Estado ou dos sindicatos. Os
cordones industriales, que controlaram e coordenaram a
distribuição dos produtos e organizaram a defesa armada contra os
empregadores, foram formados nos complexos fabris. Diferentemente das
“assembleias populares” prometidas pela UP, que existia apenas no
papel, os cordones foram criados pelos trabalhadores por si mesmos.
Em sua estrutura e funcionamento, esses comitês – junto com os
consejos rurais – foram a contribuição mais importante ao
desenvolvimento de uma situação revolucionária no Chile.
Uma
situação similar existia nos locais de moradia, onde as
ineficientes “juntas de abastecimento popular” (JAPs) foram
suplantadas pelas proclamações de “autogoverno dos bairros” e
organização de comandos comunais pelos moradores. Apesar da
infiltração pelos castristas do MIR, essas expropriações armadas
do espaço social formaram o ponto de partida para um autêntico
poder proletário. Pela primeira vez, gente até então excluída de
participação na vida social foi capaz de fazer decisões sobre as
realidades mais básicas de suas vidas cotidianas. Os homens,
mulheres e a juventude das poblaciones descobriram que as
revoluções não são assunto de urna eleitoral; independentemente
de como os bairros eram nomeados – Nova Havana, Heróico Vietnã –
o que acontecia dentro deles não tinha nada a ver com as paisagens
alienadas de seus homônimos.
Apesar
de as conquistas realizadas pela iniciativa popular serem
consideráveis, uma terceira força capaz de colocar uma alternativa
revolucionária ao governo e aos reacionários nunca emergiu
completamente. Os trabalhadores e camponeses fracassaram na tarefa de
estender suas conquistas até o ponto de substituir o regime Allende
por seu próprio poder. O MIR, o suposto “aliado”, usou a
retórica de opor ao burocratismo as “massas armadas” como uma
máscara para suas intrigas. No seu esquema leninista, os cordones
eram vistos como “formas de luta” que preparariam o caminho para
futuros modelos organizativos menos “restritos”, cuja liderança
seria fornecida pelo MIR, é claro.
Apesar
de toda preocupação com as conspirações direitistas que ameaçavam
sua existência, o governo impedia os trabalhadores de tomarem
medidas positivas para resolver a luta de classes no Chile. Com isso,
a iniciativa passou das mãos dos trabalhadores para as do governo,
e, ao se deixar enganar, o proletariado chileno pavimentou o caminho
para sua futura derrota. Em resposta aos apelos de Allende após o
golpe abortado de 29 de junho, os trabalhadores ocuparam ainda mais
fábricas, apenas para fechar fileiras sob as forças que os
desarmariam um mês depois. Essas ocupações continuaram definidas
pela UP e seus intermediários do sindicato nacional, a CUT, que
manteve os trabalhadores isolados entre si ao insulá-os dentro das
fábricas. Nessa situação, o proletariado estava impotente para
encetar qualquer luta independente, e quando a Ley de Control de
Armas foi assinada, o seu destino foi selado. Como os
republicanos espanhóis que negaram armas à milícias anarquistas na
frente de Aragão, Allende não estava preparado para tolerar a
existência de uma força proletária armada fora de seu próprio
governo. Nenhuma conspiração da direita teria durado um dia sequer
se os trabalhadores e camponeses chilenos estivessem armados e
organizassem suas próprias milícias. Por mais que o MIR protestasse
contra a entrada dos militares no governo, eles, como seus
predecessores no Uruguai, os Tupamaros, apenas falavam de armar os
trabalhadores e tinham pouco a ver com a resistência que acontecia.
O lema dos trabalhadores “Um povo desarmado é um povo derrotado”
encontraria sua amarga verdade no massacre dos trabalhadores e
camponeses que se seguiu ao golpe militar.
Allende
foi derrubado, não por causa de suas reformas, mas porque ele foi
incapaz de controlar o movimento revolucionário que se desenvolveu
espontaneamente na base da UP. A junta militar que se instalou no
poder claramente percebia a ameaça de revolução e se empenhou em
eliminá-la com todos os meios a sua disposição. Não foi por acaso
que a resistência mais forte à ditadura ocorreu naquelas áreas
onde o poder dos trabalhadores tinha avançado mais longe. Na fábrica
têxtil Sumar e em Concepción, por exemplo, a junta foi forçada a
liquidar esse poder por meio de bombardeios aéreos. Como resultado
das políticas de Allende, os militares foram capazes de ter a mão
livre para finalizar o que tinha começado pelo governo da UP:
Allende foi tão responsável quanto Pinochet pelos assassinatos em
massa de trabalhadores e camponeses em Santiago, Valparaíso,
Antofogasta e nas províncias. Talvez, a mais reveladora de todas as
ironias inerente à queda da UP é que, enquanto muitos apoiadores de
Allende não sobreviveram ao golpe, muitas de suas reformas sim. As
categorias políticas perderam tanto significado que o novo ministro
do exterior pôde se descrever como “socialista”.
V
Os
movimentos radicais são subdesenvolvidos na medida em que eles
respeitam a alienação e entregam seu poder a forças externas, ao
invés de criar-lo por si mesmos. No Chile, os revolucionários
apressaram o dia de seu próprio Termidor ao deixarem que
“representantes” falassem e agissem em seu nome: apesar da
autoridade parlamentar ter sido efetivamente substituída pelos
cordones, os trabalhadores não foram além dessas condições
de duplo poder , e não aboliram o Estado burguês e os partidos que
o mantinham. Se as lutas futuras no Chile devem avançar, os inimigos
dentro do movimento dos trabalhadores devem ser superados na prática;
as tendências conselhistas nas fábricas, locais de moradia e nos
campos deverão ser tudo ou nada. Todos os partidos de vanguarda que
continuarem a se passar por “lideranças dos trabalhadores” -
sejam eles o MIR, um PC clandestino ou qualquer outro grupo
dissidente subterrâneo – só podem repetir as traições do
passado. O imperialismo ideológico deve ser confrontado tão
radicalmente quanto o imperialismo econômico é expropriado; os
trabalhadores e camponeses só podem depender de si mesmos para
avançar além do que os cordones indrustriales já tinha
realizado. Já estão sendo feitas comparações entre a experiência
chilena e a revolução espanhola de 1936, e não só aqui – se
encontra estranhas palavras vindo de trotskistas em louvor às
milícias operárias que lutaram contra todas as formas de
hierarquia. Enquanto é verdade que uma terceira força radical não
emergiu no Chile, eles tatearam nesse sentido. Diferentemente do
proletariado espanhol, os revolucionários chilenos nunca criaram um
tipo inteiramente novo de sociedade com base numa organização de
conselhos, e a revolução chilena teria sucesso apenas se essas
formas (cordones, comandos) fossem capazes de
estabelecer uma hegemonia social. Os obstáculos a seu
desenvolvimento são similares aos que foram confrontados na Espanha:
os conselhos e milícias espanhóis encararam dois inimigos, sob a
forma de fascismo e de governo republicano, enquanto os trabalhadores
chilenos confrontaram o capitalismo internacional e os manipuladores
da social-democracia e leninismo.
Das
favelas no Brasil aos campos de trabalho de Cuba, o proletariado do
Caribe, o proletariado da América Latina manteve uma ofensiva
contínua contra todos aqueles que buscam manter as condições
atuais.
Em
sua luta, o proletariado confronta várias caricaturas de revolução
que se mascaram de aliados. Esses fantasiados encontraram, por sua
vez, um falso movimento de oposição dita de “ultra-esquerda”.
Assim, o ex-fascista Perón prepara a construção de um Estado
corporativo na Argentina, dessa vez com aparência esquerdista,
enquanto os comandos esquerdistas da ERP o denunciam por não ser
“revolucionário” o bastante, e o ex-guerrilheiro Fidel Castro
reprime todos os que não se adaptam aos padrões da disciplina
“comunista”. A história não falhará em dissolver o poder
desses idiotas.
Uma
complô da tradição – com agentes tanto de esquerda quanto de
direita – assegura que a realidade existente seja sempre
apresentada em termos de falsas alternativas. As únicas escolhas
aceitáveis para o poder são aquelas entre hierarquias em
competição: os coronéis do Peru ou os generais do Brasil, os
exércitos dos Estados árabes ou os de Israel. Esses antagonismos
apenas expressam as divisões dentro do capitalismo global, e
qualquer alternativa genuinamente revolucionária terá de ser
criada, dado que ela não existe em lugar algum da América Latina
nem em qualquer outro lugar, e essa impotência impele constantemente a
novas ações. Os trabalhadores chilenos não estão sozinhos em sua
oposição às forças da contrarrevolução; o movimento
revolucionário que começou no México com os bandos de guerrilha de
Villa ainda não veio ao fim. Nas milícias de trabalhadores armados
que combateram nas ruas de Santo Domingo em 1965, a insurreição
urbana em Córdoba, na Argentina em 1969, e as recentes greves e
ocupações na Bolívia e no Uruguai, a revolta espontânea de
trabalhadores e estudante em Trinidad em 1970, e a contínua crise
revolucionária ocorre, enquanto tal, sobre a ruína desses conflitos
espetaculares. A combinação de mentiras dos poderes burguês e
burocrático deve ser enfrentada pela verdade revolucionária com
armas, em todo mundo assim como no Chile. Não pode existir
“socialismo em um país” ou em uma fábrica ou bairro. A
revolução é uma tarefa internacional que só pode ser resolvida no
nível internacional – ela não reconhece fronteiras continentais.
Como toda revolução, a revolução chilena requer o êxito de
movimentos similares em outras áreas. Em todo lugar, nas greves
selvagens nos Estados Unidos e na Alemanha Ocidental, as ocupações
de fábrica na França e nas insurreições civis na URSS, as
fundações de um novo mundo estão sendo postas. Aqueles que se
reconhecem nesse movimento global devem conquistar a oportunidade
para estendê-la com todas as armas subversivas à sua disposição.
Escrito
pelo grupo situacionaista Pointblank! em outubro de 1973 (traduzido do inglês ao português por humanaesfera em novembro de 2019)
Outras traduções que fizemos de textos que também tratam do golpe no Chile de 1973:
- Quando as insurreições morrem – Gilles Dauvé
- Fascismo & Antifascismo - Jean Barrot/Gilles Dauvé
segunda-feira, 4 de novembro de 2019
Revista Intransigence número 5
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humanaesfera
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