O Incrível é que Marx, estudando as entranhas mais viscerais do sistema creditício no século XIX, já percebia exatamente isso:
"O crédito é o julgamento que a Economia Política realiza sobre a moralidade de um homem. No crédito, em lugar do metal ou do papel, é o próprio homem que se torna o mediador da troca - não como homem, mas como modo de existência de um capital e de seus juros. Assim, deixando sua forma material, sem dúvida o meio de troca retornou ao homem e se reincorporou ao homem, mas unicamente porque o próprio homem lançou-se para fora de si e se tornou para si mesmo uma forma material. Não é o dinheiro que se suprime no homem no interior do sistema creditício; é o próprio homem que se converte em dinheiro ou, noutra expressão, é o dinheiro que se encarna no homem. A individualidade humana, a moral humana, transformam-se, simultaneamente, em artigo de comércio e na existência material do dinheiro. Em lugar do dinheiro, do papel, é a minha existência pessoal, a minha carne e o meu sangue, a minha virtude social e a minha reputação social que se tornam a matéria e o corpo do espírito do dinheiro. O crédito calcula o valor monetário não em dinheiro, mas em carne e coração humanos. Este é o ponto em que todos os progressos e todas as inconsequências ocorrentes no interior de um sistema falso constituem a suprema regressão e a suprema consequência da abjeção.
No interior do sistema creditício, a natureza alienada do homem se afirma duplamente sob a aparência do máximo reconhecimento econômico do homem:
1º) entre o capitalista e o trabalhador, entre o grande capitalista e o pequeno capitalista, aprofunda-se a oposição, porque o crédito só é concedido a quem já possui, constituindo para o rico uma nova oportunidade de acumulação, enquanto o pobre - cuja existência depende dessa oportunidade - a vê assegurada ou negada segundo o arbítrio do rico ou conforme a opinião casual formada sobre ele;
2º) a mistificação, a hipocrisia e a vigarice recíprocas são levadas ao cúmulo; quanto àquele que não recebe crédito, não é julgado apenas como um pobre, mas também moralmente, como quem não merece confiança nem estima, um pária, um homem mau - à miséria do pobre soma-se a humilhação de rastejar para mendigar crédito ao rico;
3º) dada essa existência completamente ideal ao dinheiro, o homem pode praticar a falsificação monetária não só sobre qualquer matéria, mas ainda sobre a sua pessoa: o próprio homem, forçado a falsificar sobre si mesmo, deve simular, mentir etc. para obter crédito; assim, o crédito se torna - tanto para quem o concede quanto para quem o solicita - objeto de tráfico, de engano e de abuso mútuos. Aqui se revela, com toda a clareza, como, na base dessa confiança econômica, estão: a desconfiança, o cálculo suspeitoso para conceder ou negar o crédito; a espionagem em busca dos segredos da vida privada do solicitante; a denúncia de dificuldades momentâneas de um concorrente para desacreditá-lo etc. - todo esse sistema de falências e empresas falsas... No crédito público, o Estado ocupa a mesma posição que acabamos de caracterizar para o homem particular. Na especulação com os valores públicos, vê-se muito bem como o Estado se tornou o joguete dos comerciantes etc;
4º) enfim, o sistema creditício encontra seu acabamento no sistema bancário. A criação do banqueiro, o poder público da banca, a concentração da fortuna nessas mãos, este areópago econômico da nação, eis a digna coroação do sistema monetário. Quando, no sistema creditício, a avaliação moral de um homem, assim como a confiança no Estado etc, toma a forma do crédito, o mistério que se oculta sob a mentira dessa avaliação, a infâmia imoral dessa moralidade, tanto como a hipocrisia e o egoísmo dessa confiança no Estado - tudo isso emerge e aparece à luz do dia tal como é na realidade.” (Karl Marx, Cadernos de Paris, 1844)
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