domingo, 24 de abril de 2016

Sobre a troca (1858) - Joseph Déjacque

Traduzimos Sobre a troca, um clássico comunista libertário, escrito por Joseph Déjacque, o criador da própria palavra "libertário" (palavra que sempre foi sinônimo de comunista anarquista até que a classe proprietária - milionários e burocratas particulares e estatais -, começou a tentar roubá-la para nos impor a crendice absurda de que "liberdade" é a tirania totalitária chamada empresa e mercado)

Alguns trechos:

"[...] Na comunidade anárquica, [...] cada um é livre para produzir e consumir à vontade e segundo suas fantasias sem controlar nem ser controlado por ninguém, e o equilíbrio entre a produção e o consumo se estabelece naturalmente, não mais pela detenção preventiva e arbitrária por uns ou por outros, mas pela livre circulação das capacidades e das necessidades de cada um. Os fluxos humanos não necessitam de diques; deixemos as marés passarem livres: a cada dia, elas reencontram o seu nível!"


"Primeiramente, em princípio, o trabalhador tem direito ao produto de seu trabalho?[...]


Por exemplo, suponha que há um alfaiate, ou um sapateiro. Ele produz muitas roupas e muitos pares de sapato. Ele não pode consumi-los todos de uma vez. Talvez, além disso, não sejam do seu tamanho e nem conformes a seu gosto. Evidentemente, ele só os fez porque é sua profissão fazê-los, e em vistas de trocar por outros produtos de que ele sente a necessidade; e assim é com todos os trabalhadores. As roupas e sapatos que ele produz não são posses dele, porque para ele não tem nenhum uso pessoal;mas são uma propriedade, um valor que ele monopoliza e que ele dispõe conforme seus caprichos, que ele pode à rigor destruir se lhe apraz, que ele pode no mínimo usar e abusar se assim quiser; seja como for, é uma arma para atacar a propriedade dos outros, nessa luta de interesses divididos e antagônicos, onde cada um é entregue a todas as sortes e azares da guerra. 

Além disso, esse trabalhador, em termos de direito e justiça, é bem justificado para se declarar o único produtor do trabalho feito por suas mãos?  Ele criou algo do nada? Ele é onipotente? Ele possui o conhecimento manual e intelectual de toda a eternidade? Sua arte e profissão lhe é inata? Operário, ele saiu totalmente equipado do ventre de sua mãe? É unicamente filho de suas obras? Ele não é em parte obra de seus predecessores e obra de seus contemporâneos? Todos aqueles que lhe mostraram como manusear a agulha e a tesoura, a faca e o furador, que o iniciaram de aprendizagem em aprendizagem até o grau de habilidade que alcançou, todos eles não tem algum direito à uma parte de seu produto? As sucessivas inovações das gerações anteriores também não tiveram parte nessa produção que ele fez? Ele não deve nada à geração atual? Ele não deve nada à geração futura? É justo que ele acumule então em suas mãos os títulos de todos esses trabalhos acumulados e se aproprie exclusivamente dos benefícios?"

"Se se admite o princípio da propriedade do produto pelo trabalhador [...], conforme um certo produto seja mais ou menos procurado, um certo produtor será mais ou menos lesado, mais ou menos beneficiado. A propriedade de um não pode aumentar senão em detrimento da propriedade de outro - a propriedade necessita de exploradores e explorados. Com a propriedade do produto do trabalho, a propriedade democratizada, isso não será mais a exploração da maioria pela minoria, como é com a propriedade do trabalho pelo capital, a propriedade monarquizada; mas ainda assim será exploração da minoria pela maioria. Será sempre a iniquidade, a divisão dos interesses, a concorrência inimiga, com desastres para uns e sucessos para outros. [...]"

"[...] No dia em que se compreender que o organismo social deve ser transformado não sobrecarregando com complicações, mas o simplificando; no dia em que não se buscar mais demolir uma coisa para a substituir por outra similar, renomeando e multiplicando, nesse dia ter-se-á destruído da base ao topo o velho mecanismo autoritário e proprietário, e ter-se-á reconhecido a insuficiência e a nocividade tanto do contrato individual quanto do contrato social. Então o governo natural e a troca natural – o governo natural, isto é, o governo do indivíduo pelo indivíduo, de si mesmo por si mesmo, o individualismo universal, o si-humano [moi-humain] se movendo livremente no todo-humanidade [tout-humanité]; e a troca natural, quer dizer, o indivíduo trocando de si mesmo consigo mesmo, sendo ao mesmo tempo produtor e consumidor, co-operário e co-herdeiro do capital social, a liberdade humana, a liberdade infinitamente divisível na comunidade dos bens, na indivisível propriedade – então, vos digo, o governo natural, a troca natural, organismo movido pela atração e pela solidariedade, se elevarão majestosos e benéficos no coração da humanidade regenerada. Então, o governo autoritário e proprietário, a troca autoritária e proprietária, maquinação sobrecarregada de intermediários e de signos representativos cairá solitária e abandonada no leito seco da antiga arbitrariedade."

Link para o texto completo:  
Sobre a troca (1858) - Joseph Déjacque 




Outros clássicos que traduzimos:


terça-feira, 19 de abril de 2016

O crepúsculo das personificações (1972) - Fredy Perlman


O Flautista de Hamelin traduziu e nós fizemos a revisão para publicação  desse grande texto de Fredy Perlman: 

O crepúsculo das personificações


Alguns trechos:
"Os produtores criam uma tecnologia industrial que elimina a necessidade material do trabalho forçado enquanto reproduzem as condições sociais do trabalho forçado. As forças produtivas que eliminam as condições materiais de escassez tornam-se instrumentos sociais para a manutenção de escassez. A pobreza deixa de ser uma função da natureza e torna-se uma função das relações sociais."

"O paradoxo consiste no fato de que, tão logo os indivíduos abdicam de seus poderes autônomos [self-powers] para personificações destes poderes, os indivíduos se tornam vítimas das personificações; eles se tornam instrumentos, ou meios, pelos quais os poderes da personificação são executados. Assim é possível para os mesmos indivíduos envenenar o ar durante o dia e respirar o ar envenenado ao descansar a noite, uma vez que não são estes indivíduos que envenenam o ar - é a General Motors. Assim é possível para os mesmos indivíduos produzir armas em tempos de paz e massacrar uns aos outros com as armas em tempos de guerra, uma vez que não são esses indivíduos que produzem as armas ou combatem nas guerras; as armas são produzidas pela General Dynamics e a guerra é combatida pelo General Eisenhower, o Marechal de Campo Rommel e o Marechal Stalin."

"Uma vez que as forças produtivas da sociedade são alienadas dos produtores, apropriadas por outra classe, e representadas por “pessoas” que ocupam as funções [offices] para as quais o poder é delegado, parece aos produtores que são, não os produtores, mas as personificações que produzem. Isso é uma aparência, uma alucinação, mas é difícil para alguém ver além das alucinações de sua própria época quando se nasce nela. Em uma época anterior, quando foi dito que a França conquistou a Borgonha em um campo, o evento real foi o encontro militar entre dois exércitos recrutados entre as populações da França e da Borgonha, mas essa afirmação descrevia o encontro entre dois indivíduos, a personificação da França e a personificação da Borgonha. Em outras palavras, parece que as capacidades, os poderes, não estão nos indivíduos que o possuem, mas nas personificações.

Essa alucinação não poderia surgir se o poder atribuído à personificação se apoiasse na força bruta ou coerção. Se o poder da personificação consistisse na força bruta, no caso da conquista pela França da Borgonha, a história desse período antigo seria estupenda, pois de forma a conquistar o Duque, o Rei deveria primeiro ter conquistado a França – um único indivíduo contra uma multidão de camponeses. Se este fosse o caso, a conquista dos camponeses pelo Rei seria tão mais espetacular que a conquista do Duque que este último evento não seria sequer registrado na história.

Mas nesse caso o Rei deveria ter sido descrito em termos de seus próprios poderes autônomos [self-powers], não importa quão grande estes fossem, e não como uma personificação, como um Rei, como França.

O poder da personificação reside precisamente nessa alucinação, e não no indivíduo que ocupa a função [office]. Certas palavras pronunciadas por um indivíduo específico não são uma declaração política ou declaração de guerra a menos que o indivíduo seja visto como a autoridade que tenha o direito de ditar uma política ou declarar guerra; as palavras do indivíduo não podem ter conseqüências a menos que outros seres humanos se submetam a essa autoridade e considerem seu dever obedecer. A personificação é apta a deter o poder delegado a uma função específica apenas quando a legitimidade da função é aceita. A legitimidade não é uma propriedade possuída pela função ou por um ocupante específico da função. A legitimidade é uma propriedade conferida à função e à sua pessoa por todos os outros indivíduos."

"[...] A violência acompanha o poder exercido por uma personificação, mas não torna essa personificação legítima. A função e sua pessoa tornam-se legítimas apenas quando a autoridade da função e de seus ocupantes são internalizadas por todos os outros indivíduos. Ao aceitar a legitimidade de uma função para exercer um poder social específico, os indivíduos abdicam de seu próprio poder sobre essa parte da vida social. [...] A abdicação não é um evento histórico que ocorreu num tempo específico do passado; ela é um evento cotidiano que toma forma toda vez que as pessoas se submetem à autoridade.

Ao transformar o poder produtivo da sociedade em uma mercadoria alienável, em atividade vendida por um salário, o capitalismo estendeu a personificação do poder alienado a todos os campos da vida social. Tão logo um indivíduo consente em vender energia produtiva por uma dada soma de dinheiro, essa soma de dinheiro se torna “equivalente” à energia produtiva, o dinheiro possui a potência da energia produtiva. O dinheiro se torna o representante do poder produtivo, dos instrumentos de produção e dos produtos. Assim que todos os indivíduos consentem em vender sua própria energia produtiva, o dinheiro se torna o representante universal do poder produtivo da sociedade. É nesse ponto que as forças produtivas da sociedade se tornam Capital, que é apenas outro nome para o poder das forças produtivas representadas por uma soma de dinheiro. Tão logo essas forças produtivas assumem a forma de Capital, os possuidores de grandes somas de dinheiro são Capitalistas, personificações do poder produtivo representado por sua soma de dinheiro, personificações das forças produtivas da sociedade. É a venda do poder produtivo que torna o dinheiro o agente histórico universal. Nesse ponto, cidades são criadas e destruídas, ambientes são transformados, a história é feita, pelo gasto de somas de dinheiro. Nesse ponto, os indivíduos, ou mesmo comunidades, abdicaram de seu poder de construir ambientes que os satisfaçam. Apenas os investidores, personificações de toda construção social, cujo poder reside na potência criativa de seu dinheiro, são capazes a construir ambientes."

"Cada ato que ocorre na esfera de influência de uma personificação está fora de alcance para um indivíduo. Os indivíduos não apenas veem a ação de seus próprios poderes sobre o ambiente como ilegítima, moralmente errada; eles se sentem inaptos para exercer tais poderes: as personificações são capazes de fazer tudo; o indivíduo é incapaz de fazer qualquer coisa."

"Entretanto, a criação da impotência universal não é a única conquista histórica do capitalismo. O outro lado da figura é uma democracia verdadeiramente representativa na qual cada indivíduo é apto para participar em ao menos um fragmento do poder personificado da sociedade. Essa democracia é tornada possível por duas características dos representantes universais das forças produtivas da sociedade: ela é líquida, e assim pode correr de mão em mão independentemente da posição ou função social, e ela é infinitamente divisível, permitindo a todos tê-la. Assim enquanto todos são privados de poderes autônomos [self-powers] sobre o ambiente social, ninguém é excluído de uma partilha dos poderes personificados."

"Por exemplo, um “bom eletricista” é aquele que faz nem mais nem menos do que é prescrito à função, ou técnica, dos “eletricistas”. O propósito de um “bom eletricista” não é sob qualquer circunstância o resultado singular de um encontro particular de um indivíduo específico com certos instrumentos. O “serviço” é o resultado padrão esperado dessa função. Qualquer outro “bom eletricista” deverá efetuar exatamente o mesmo resultado. Em outras palavras, os poderes residem na função, e o indivíduo é meramente um instrumento mais ou menos eficiente da função. Consequentemente, a medida que o ser humano se torna uno com uma função, identifica seus próprios poderes com os poderes da função, ao ponto de os seres humanos se tornarem uma personificação de certos poderes sociais e negarem a si mesmos ou si mesmas como seres humanos. Um indivíduo que se torna o que “nós os eletricistas”, “nós os doutores” ou “nós os professores” são, se torna uma coisa que responde de um modo padrão específico, que executa sua rotina especial esperada, sempre que ela é ativada pelo dinheiro. Essa internalização dos poderes personificados é o cimento que mantém coesas as relações sociais."



Link para o texto completo:
O crepúsculo das personificações

.