O site The Observatory of Economic Complexity permite ter uma noção de como nossas condições de existência - ou seja, as condições materiais de nossa vida, desde medicamentos, alimentos, até smartphones - são interligadas e interdependentes em escala mundial. O site evidencia que é uma total fantasia a ideia de auto-suficiência doméstica, comunitária, municipal ou nacional, porque as condições de nossa existência, mesmo no nível atual (que é muito melhor do que no passado, apesar da pobreza ainda para a maioria), pressupõem em todo o lugar a combinação de materiais e produtos de várias cidades, países, continentes...
Essa simples constatação torna claro que defender "identidades", "nações", "etnias", "comunidades", "países", "autarquias", "territórios autônomos" e "zonas autogeridas" é o mesmo que reivindicar o estabelecimento de novas propriedades privadas e, consequentemente, de novos capitais e novos Estados. Eis o porquê:
1) para sobreviver, cada uma dessas "autarquias" precisará adquirir os materiais e produtos de que é privada;
2) sendo privada desses materiais e produtos (isto é, é uma propriedade privada), terá necessidade de comprá-los;
3) mas para comprar, é preciso vender - vender alguma coisa (troca, tanto faz se por escambo, dinheiro etc);
4) vender coisas requer encontrar compradores, ou seja, concorrer no mercado por "sucesso" - sucesso que nada mais é do que derrubar os concorrentes para alcançar o máximo de monopólio;
5) para concorrer no mercado é necessário impor, dentro da propriedade privada, que se trabalhe jornadas e intensidades no mínimo tão brutais quanto os concorrentes (geralmente concorrentes com um grau muito maior de automação da produção), para que seus produtos tenham um preço e/ou qualidade "concorríveis";
6) impor tais jornadas e intensidades de trabalho exige uma hierarquia, para aplicar punições e recompensas aos trabalhadores a fim de que essas "metas" sejam alcançadas por eles. Ou seja, serão obrigados a recriar na prática algo que tem a exata função de capitalista, para poder sobreviver e não falir (mesmo que essa função de capitalista seja uma comissão "livremente" escolhida em assembleias e em autogestão);
7) e se a propriedade privada "autárquica" tiver enfim "alcançado sucesso" - monopolizando o mercado - a jornada e intensidade de trabalho até poderão ser relaxadas no interior dessa propriedade, porque a pressão da concorrência acabou. Porém, isso significa meramente que ela é um parasita sustentado pelo trabalho dos demais proletários do mundo, que são forçados a trabalhar para ela (direta ou indiretamente), única maneira de comprar esses produtos, monopolizados por ela.
Conclusão: tudo isso demonstra que é imprescindível uma perspectiva internacionalista (anti-nacionalista e anti-comunitarista). Lutar por nossa liberdade e autonomia é lutar por expandir as capacidades humanas de pensar, desejar e agir - jamais lutar por reduzi-las e limitá-las.
Os produtos, luxos, tecnologias e facilidades que a burguesia costuma atribuir ao "capitalismo", ao "mercado", ao "Estado", à "propriedade" e ao "seu trabalho", são na verdade frutos das capacidades humanas, isto é, de nossas capacidades, da humanidade. Ao abolir a propriedade privada das nossas condições de existência universalmente (planetariamente) interconectadas e interdependentes, superando a troca e a economia, transformaremos essa interconexão em condições práticas (meios de produção) universalmente e livremente acessíveis a qualquer um no mundo que queira satisfazer por si mesmo (ou com quem mais quiser) suas inclinações, desejos, projetos, necessidades, pensamentos, paixões. A verdadeira liberdade e autonomia pressupõem o comunismo, isto é, o fim da propriedade privada e o estabelecimento da verdadeira propriedade, que é a propriedade comum humana, pelos indivíduos livremente associados, sobre as condições materiais universalmente acessíveis de sua livre auto-realização, satisfação, e expressão, a comunidade humana mundial.
Para este fim, é útil estudar essas interdependências e interconexões mundiais: como as coisas são hoje produzidas, armazenadas e transportadas pelo mundo e o fluxo informacional que coordena tudo isso? Por exemplo as "supply chains" (redes logísticas). Também é útil conhecer e atualizar as obras que foram fundo nessa perspectiva: por exemplo, as utopias de Joseph Déjacque (Humanisfera), Alexander Bogdanov (Estrela Vermelha), Constant Nieuwenhuys (Nova Babilônia), as obras de Jean Barrot (Gilles Dauvé), Piotr Kropotkin, da Internacional Situacionista, dos autonomistas (autonomia operária) sobre os fluxos materiais que constituem a composição de classe, etc.
humanaesfera, julho de 2015
- A logística e a fábrica sem muros (Brian Ashton)