por Brian Ashton
(2006)
A Tecnologia da
Informação (TI) permite ao capital coordenar a produção de mercadorias como
nunca antes. É uma aparente contradição: a produção está fragmentada por todo o
mundo, e as partes, fabricadas aqui e ali, são transportadas por milhares de
quilômetros para serem montadas, mas esse processo produz mais mercadorias do
que nunca. O capital renovou-se mais uma vez, e, no processo, deixou a esquerda em crise. Enquanto
os intelectuais falam em trabalho imaterial e precariedade, o capital se ocupa
em dar os últimos retoques a seu novo sistema de produção. Ao mesmo tempo,
porém, ele está criando um sistema de comunicação que capacita os trabalhadores
a interagir entre si para além das
fronteiras nacionais e continentes. Quase todo trabalhador é hoje um
trabalhador de TI, e é a potencialidade que surge disso que coloca o capital
sob a maior ameaça. Não se trata de saber se o trabalho é imaterial ou
material. Os intelectuais deveriam parar de criar hierarquias de trabalhadores,
como operário massa e operário social, trabalhador imaterial e precariado.
Seria melhor se buscassem uma compreensão adequada de como a cadeia de suprimentos - que alguns
capitalistas chamam de empresa virtual - funciona hoje. Conheça o seu inimigo, aconselha
Sun Tzu em A Arte da
Guerra.
Uma equipe de
pesquisadores da Escola de Negócios de Cardiff [Cardiff Business School]
estudou a cadeia de ações necessária para fazer uma lata de coca-cola. Todo o
processo, começando na mina de bauxita na Austrália e terminando com a lata na
geladeira de alguém, levou nada menos do que 319 dias. Desse tempo, apenas três
horas foram gastas na fabricação, e todo o restante no transporte e
armazenamento. Um anúncio da companhia de navegação P&O Nedlloyd afirma que
a jornada de um único contêiner pode envolver literalmente uma centena de pessoas.
Isso abrange desde gente que faz o carregamento dos contêineres até o pessoal
de TI, passando pelos planejadores de logística e os estivadores, os motoristas
e os trabalhadores do armazém, o funcionário da alfândega e o capitão do navio.
Tudo isso põe em destaque tempo e trabalho. O controle desses dois fatores é a
principal preocupação dos encarregados do gerenciamento das cadeias de suprimentos (também chamadas cadeia
de fornecimento, cadeia de abastecimento, cadeia logística, rede logística, supply chain).
Conforme explica
o referido estudo da Escola de Negócios de Cardiff, a logística é um fator determinante na cadeia de suprimentos. Segundo
o Conselho de Gerenciamento Logístico [Council of Logistics Management], a
logística é: o processo de planejar, implementar e controlar o eficiente e eficaz fluxo
e estoque de matérias-primas, inventário de processo, produtos finais, desde a
extração/produção até o ponto de consumo.
Nos últimos vinte
anos, houve uma revolução na área da logística, uma revolução que parece ter passado
despercebida pela esquerda autônoma. Essa reviravolta decorre da aplicação de tecnologia
à mundialização da produção de mercadorias. Ou, como disse Marx:
"Uma mudança radical no modo de produção em
uma esfera da indústria envolve uma mudança correspondente em outras esferas. Isto ocorre antes de tudo naqueles ramos da indústria que, embora
isolados pela divisão social do trabalho de modo que cada um deles produz uma
mercadoria independente, são, porém, entrelaçados como fases separadas de um
mesmos processo global.[...]
Mas sobretudo a revolução nos modos de
produção da indústria e da agricultura tornou necessária uma revolução nas
condições gerais do processo social de produção, ou seja, nos meios de
comunicação e transporte.[...]
Os meios de comunicação e transporte eram
tão intrinsecamente inadequados para os requisitos produtivos do período
manufatureiro, com a sua divisão ampliada do trabalho social, sua concentração
dos instrumentos de trabalho e operários e seus mercados coloniais, que eles
foram de fato revolucionados. [..] E também no período da ´indústria moderna´
os meios de comunicação e transporte herdados do período manufatureiro se
tornaram obstáculos."
O Capital, vol. 1 (Capítulo: Maquinaria e Grande Industria).
O marxismo autonomista vê
a luta dos trabalhadores como o motor do desenvolvimento capitalista. Nos anos 70, o capital começou a atacar os núcleos de poder de classe que alguns chamavam de operário-massa.
Ele atacou em três frentes. Buscou
quebrar a rigidez imposta à produção pela
militância de classe usando a tecnologia para desqualificar
os trabalhadores e
reconfigurar o layout da fábrica. Passou a deslocar parte da capacidade produtiva para fábricas menores, sub-contratando o trabalho de
outras empresas (terceirização). E ele usou
o Estado para impor a crise sobre a classe trabalhadora. Ele teve tanto êxito em seu projeto que,
desde os anos 80, a classe trabalhadora
sofre derrota após derrota. A composição política forjada
na batalha foi desmantelada e descartada. Parece, para este velho operário da
indústria automobilística que vos fala, que não foi
só o capital que nos descartou, mas que um grande
número de intelectuais comunistas viraram as costas para nós também. A conseqüência é que agora temos uma geração de anti-capitalistas que não sabe como interagir com a classe trabalhadora. Apesar de estarem
rodeados pela classe que eles parecem estar mais interessados, eles vão à
selva mexicana, ou preferem ir à Gênova e Seattle e dar
à máquina do Estado oportunidades para treinar controle de multidão.
Nos anos 60 e 70 havia
uma constante interação entre
militantes da classe trabalhadora
e a esquerda emergindo das universidades. Nem sempre isso foi positivo,
mas onde houve uma sinergia, a teoria e a prática
tinham alguma conexão. Aprendemos
uns com os outros e coisas ótimas
foram produzidas. Aqui na Grã-Bretanha, a obra publicada de
Big Flame e Solidarity é prova disso.
Na Itália, Potere Operaio e Lotta
Continua ajudaram a desenvolver
uma compreensão dos pontos fortes e fracos da composição do
capital. Hoje, podemos falar de
um sistema de produção globalizado, mas
quantos de nós pode descrever como ele funciona? Como é que a lata de coca vai de A
a Z? Nos anos 70 nós
sabíamos como a fábrica e os sistemas
de transporte funcionavam e era
desse conhecimento que vinha nossa
capacidade de combater a capital.
Hoje, é certamente difícil entender
exatamente como as coisas são feitas,
mas é imperativo que ganhemos um
conhecimento profundo dos
processos de produção e logística, das cadeias de suprimento do capital,
ou, dito de outra forma, das fábricas sem muros. Alguns
capitalistas vêem a cadeia de fornecimento como uma fábrica
virtual e querem que os trabalhadores se remetam à cadeia de
fornecimento, ao invés de perceberem-se
como empregados das empresas que integram
essa cadeia.
A composição da classe trabalhadora
vem da luta, mas antes requer que
os capitalistas reúnam trabalhadores para
impor uma disciplina de produção.
No presente período, só podemos entender
como a disciplina é imposta
mediante uma abordagem global. A
composição técnica do capital está
difusa por todo o mundo, assim como os trabalhadores da cadeia de suprimento de mercadorias. Sob tal sistema, a disciplina é imposta pela aplicação do kaizen (melhoria contínua) e da entrega just-in-time combinados com a aplicação de tecnologias da informação para policiar
a produtividade dos trabalhadores.
Isso é reforçado pela
mudança no modo como as mercadorias são movimentadas
pelo sistema. O capital passou de uma economia de empurro [push economy] para uma economia de empuxo [pull economy], em outras palavras, está fazendo as coisas enquanto elas são demandadas,
ao invés de fazê-las conforme uma demanda prevista. O lema da economia de empuxo é:
"Se não foi vendido, não produza." A economia de empuxo dá às grandes cadeias de supermercados um poder enorme, porque elas controlam a informação que “puxa” as mercadorias através da cadeia de fornecimento. Quando você compra uma lata de feijão no supermercado Asda, a informação é transmitida para todos que estão ao longo da cadeia, para que outra
lata de feijão seja produzida. Claro, milhões dessas peças de informação voam pelo
ciberespaço a cada instante. Um
dos efeitos da economia de empuxo
é o aumento do trabalho precário:
se a demanda diminuir, demita trabalhadores. As empresas têm programas de computador
que calculam o número de trabalhadores
necessários para satisfazer uma determinada
demanda, e “puxa” trabalhadores de um reservatório de precariedade, muitas vezes disponibilizado por agências de
emprego. E cada vez mais elas terceirizam atividades acessórias
subcontratando empresas de serviços; essa é uma das razões para a rápida proliferação da
indústria logística nos últimos anos. A indústria automotiva está indo para o
modelo “economia de empuxo”, o que é um
dos motivos principais de os operários dessa indústria nos EUA estarem sendo atacados neste momento.
Se as cadeias de suprimento
são espalhadas pelo planeta e os
níveis de estoque são reduzidos ao
just-in-time, então, para
completar o ciclo de acumulação, a
aplicação da logística torna-se determinante.
Ao mesmo tempo isso aumenta a possibilidade de luta efetiva da classe trabalhadora: quando os
caminhoneiros da costa oeste dos
EUA, há um ano, fizeram greve, eles paralisaram as cadeias de fornecimento do Wal-Mart e de outras cadeias gigantes,
provocando ondas de pânico em muitas salas de diretoria.
A importância da logística não pode ser subestimada - tente imaginar
a cadeia de fornecimento de qualquer
produto sem o input logístico. A globalização da produção tem deixado muitos trabalhadores acreditando que eles não podem fazer nada
sobre isso, e quando as empresas transferem
a produção para a China ou a
Índia, eles ficam hipnotizados pelas
luzes do rolo compressor capitalista que os esmaga, mas
esta aparente força do capital
multinacional é de fato a sua
fraqueza.
Historicamente, os operários da logística eram os mensageiros
do pensamento radical e
transportadores de notícias das lutas
dos trabalhadores. Eles próprios, é claro, se envolveram em muitas batalhas. Nos últimos vinte anos, muitas dessas batalhas foram
defensivas, lutas para salvar empregos e manter condições de trabalho.
A retirada do Estado na gestão direta do setor
de logística foi o catalisador de um ataque global que continua até hoje.
O capital privado entrou em peso
no ataque aos trabalhadores em toda a indústria. Ao mesmo tempo, estas empresas têm se empenhado num frenesi de fusões e
aquisições, que resultaram no surgimento de empresas verdadeiramente mundiais que empregam muitos milhares de trabalhadores.
Pode-se ter uma idéia do tamanho dessas
empresas a partir de dois exemplos: a United Parcel Services (UPS) e a Deutsche
Post (DP). A UPS é uma empresa de 33,5 bilhões de dólares que opera em 200
países e emprega mais de 340.000 trabalhadores. Ela fornece
logística/distribuição de transporte e fretagem, comércio internacional,
serviços financeiros, mecanismos de correspondência financeira e serviços de
consultoria. Ela cresceu se beneficiando de processos de subcontratação, que
são comuns nesse setor, e através da aquisição de outras empresas. Ela faz
grandes cartadas: comprou a transportadora Fritz por 450 milhões de dólares. A DP
é parcialmente do governo alemão, que detém 41,6 por cento das ações. Estas
serão vendidas a investidores institucionais nos próximos anos. A DP opera o
serviço postal alemão, é dona da DHL, e no ano passado comprou a Exel,
britânica. A própria Exel era uma empresa aquisitiva antes de ser comprada; ela
já havia comprado a Tibbett & Britten, a sétima maior empresa de logística
do mundo. Isto resultou em uma empresa que emprega mais de 103.000 pessoas. Não
sei quantas pessoas trabalham para a DP, mas deve ser da ordem das centenas de
milhares.
A fábrica de automóveis Jaguar em Halewood, em
Merseyside, talvez possa nos dar
uma idéia de como uma cadeia de
suprimentos funciona e de como a
logística se encaixa na cadeia.
Em Halewood, a Ford fabricava o Escort e
foi lá que este proletário que vos fala trabalhou por sete longos anos. A fábrica era considerada pela Ford uma pedra no sapato, e a ameaça de fechamento estava sempre pairando sobre ela.
A Ford comprou a Jaguar e decidiu fabricar o carro Jaguar em Halewood. Ao mesmo tempo, decidiu alterar radicalmente as práticas de trabalho na fábrica. Ela trouxe uma empresa americana chamada Senn-Delaney
para alterar a mentalidade da força de trabalho, e parece ter sido bem
sucedida, porque Halewood é agora considerada a melhor fábrica de carros
da Europa. Se tentassem isso nos anos 70, o trabalho dessa empresa teria sido desafiado pela contra-informação da esquerda.
Quando eu trabalhava em
Halewood na década de 70, havia 14 mil de nós empregados
no local. Hoje a Jaguar emprega cerca de 2.800 pessoas, mas
este número é enganoso, porque uma fatia
considerável do trabalho foi
transferida aos fornecedores que,
por sua vez, repassam parte do trabalho
para fornecedores menores. Numa cadeia de
suprimento, as empresas são
classificados assim: Original Equipment Manufacturer (OEM),
ou seja, a Jaguar; fornecedor de primeiro nível [First Tier Supplier], ou seja, a Bosch,
os pequenos fornecedores são chamados
de segundo nível, terceiro nível, etc. Quem conecta tudo
são as empresas de logística.
Em Halewood, a UCI Logística, subsidiária da empresa japonesa
Nippon Yusen Kaisha
(NYK), opera o conjunto logístico. Como fornecedora logística principal, a UCI é responsável pela logística de entrada [inbound logistics] em Halewood, e também pela logística interna da fábrica em si. Nos dias da Ford, a logística
interna era realizada pelos próprios
trabalhadores da Ford. O serviço
de logística de entrada envolve uma operação da cadeia de suprimento, na coleta
de peças, partes e submontagens
por toda a Europa,
usando em parte sua própria frota
(da UCI Logística) e em parte
a de sócias da UCI. O serviço de logística interna envolve descarregamento de peças,
o movimento dos componentes para as
áreas de armazenamento e sua
disponibilização nas linhas de produção sem incorrer em estoques laterais. Também é
tarefa da UCI garantir
que, nas linhas, nunca um estoque lateral exceda o volume de duas horas estipulado pela Jaguar. São os trabalhadores
da UCI que dirigem as empilhadeiras que transferem material por dentro da fábrica de Halewood.
Vejamos a logística de um
determinado produto que chega em Halewood,
da montagem de rodas e pneus. A UCI movimenta
500.000 montagens por ano em Halewood. O contrato inclui a
logística externa para o suprimento
de rodas de liga, da Itália para
instalações da Pirelli no Reino Unido, e a entrega de montagens completas para
Halewood, três vezes por dia,
juntamente com a logística interna
na fábrica da Jaguar. A UCI seleciona entre 12
tipos diferentes de montagens a partir de instruções automatizadas
transmitidas pela Jaguar e
entrega o produto no ponto de
encaixe na fábrica. O operário massa não
foi destruído, mas reconfigurado.
O capital adquire poder a partir da extração de mais-valia, e a cadeia de suprimentos é a fábrica sem muros onde
esse processo ocorre. No passado,
os socialistas se organizavam
e agitavam em torno dos centros de produção de mercadorias - pensemos na atividade
realizada em torno da fábrica
da Fiat Mirafiori, em Turim e os esforços de Big Flame
em Dagenham e
Halewood - mas esse
tipo de atividade pode ser feita hoje? Se uma tal agitação ocorrer hoje, terá de ser em uma escala global, mas há tecnologia para isso. O capital, ao se
tornar planetário com suas cadeias de suprimento,
está criando a oportunidade para uma luta
mundial dos trabalhadores. Para que tenhamos êxito, é preciso conhecer como a composição atual do capital funciona. O
artesão e o operário massa sabiam como o
sistema produzia mercadorias; precisamos
desenvolver esse conhecimento hoje.
(Brian Ashton <t.ashton EM
merseymail.com> é ex-operário da indústria automobilista na Inglaterra que desenvolveu
um interesse pela indústria logística quando apoiou os estivadores de
Liverpool saqueados durante meados dos anos noventa.)
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