domingo, 24 de março de 2013

A logística e a fábrica sem muros


por Brian Ashton  (2006)
(Apresentação   do estudo Logistics and The Factory Without Walls.  Tradução por Humanaesfera)

  

 A Tecnologia da Informação (TI) permite ao capital coordenar a produção de mercadorias como nunca antes. É uma aparente contradição: a produção está fragmentada por todo o mundo, e as partes, fabricadas aqui e ali, são transportadas por milhares de quilômetros para serem montadas, mas esse processo produz mais mercadorias do que nunca. O capital renovou-se mais uma vez, e, no processo, deixou a esquerda em crise. Enquanto os intelectuais falam em trabalho imaterial e precariedade, o capital se ocupa em dar os últimos retoques a seu novo sistema de produção. Ao mesmo tempo, porém, ele está criando um sistema de comunicação que capacita os trabalhadores  a interagir entre si para além das fronteiras nacionais e continentes. Quase todo trabalhador é hoje um trabalhador de TI, e é a potencialidade que surge disso que coloca o capital sob a maior ameaça. Não se trata de saber se o trabalho é imaterial ou material. Os intelectuais deveriam parar de criar hierarquias de trabalhadores, como operário massa e operário social, trabalhador imaterial e precariado. Seria melhor se buscassem uma compreensão adequada de como a cadeia de suprimentos - que alguns capitalistas chamam de empresa virtual - funciona hoje. Conheça o seu inimigo, aconselha Sun Tzu em A Arte da Guerra.

Uma equipe de pesquisadores da Escola de Negócios de Cardiff [Cardiff Business School] estudou a cadeia de ações necessária para fazer uma lata de coca-cola. Todo o processo, começando na mina de bauxita na Austrália e terminando com a lata na geladeira de alguém, levou nada menos do que 319 dias. Desse tempo, apenas três horas foram gastas na fabricação, e todo o restante no transporte e armazenamento. Um anúncio da companhia de navegação P&O Nedlloyd afirma que a jornada de um único contêiner pode envolver literalmente uma centena de pessoas. Isso abrange desde gente que faz o carregamento dos contêineres até o pessoal de TI, passando pelos planejadores de logística e os estivadores, os motoristas e os trabalhadores do armazém, o funcionário da alfândega e o capitão do navio. Tudo isso põe em destaque tempo e trabalho. O controle desses dois fatores é a principal preocupação dos encarregados do gerenciamento das cadeias de suprimentos (também chamadas cadeia de fornecimento, cadeia de abastecimento, cadeia logística, rede logística,  supply chain).

Conforme explica o referido estudo da Escola de Negócios de Cardiff, a logística é um fator determinante na cadeia de suprimentos. Segundo o Conselho de Gerenciamento Logístico [Council of Logistics Management], a logística é:  o processo de planejar, implementar e controlar o eficiente e eficaz fluxo e estoque de matérias-primas, inventário de processo, produtos finais, desde a extração/produção até o ponto de consumo.

Nos últimos vinte anos, houve uma revolução na área da logística, uma revolução que parece ter passado despercebida pela esquerda autônoma. Essa reviravolta decorre da aplicação de tecnologia à mundialização da produção de mercadorias. Ou, como disse Marx:


"Uma mudança radical no modo de produção em uma esfera da indústria envolve uma mudança correspondente  em outras esferas. Isto ocorre  antes de tudo  naqueles ramos da indústria que, embora isolados pela divisão social do trabalho de modo que cada um deles produz uma mercadoria independente, são, porém, entrelaçados como fases separadas de um mesmos processo global.[...]

Mas sobretudo a revolução nos modos de produção da indústria e da agricultura tornou necessária uma revolução nas condições gerais do processo social de produção, ou seja, nos meios de comunicação e transporte.[...] 

Os meios de comunicação e transporte eram tão intrinsecamente inadequados para os requisitos produtivos do período manufatureiro, com a sua divisão ampliada do trabalho social, sua concentração dos instrumentos de trabalho e operários e seus mercados coloniais, que eles foram de fato revolucionados. [..] E também no período da ´indústria moderna´ os meios de comunicação e transporte herdados do período manufatureiro se tornaram obstáculos." O Capital, vol. 1 (Capítulo: Maquinaria e Grande Industria).

O marxismo autonomista vê a luta dos trabalhadores como o motor do desenvolvimento capitalista. Nos anos 70, o capital começou a atacar os núcleos de poder de classe que alguns chamavam de operário-massa. Ele atacou em três frentes. Buscou quebrar a rigidez imposta à produção pela militância de classe usando a tecnologia para desqualificar os trabalhadores e reconfigurar o layout da fábrica. Passou a deslocar parte da capacidade produtiva para fábricas menores, sub-contratando o trabalho de outras empresas (terceirização). E ele usou o Estado para impor a crise sobre a classe trabalhadora. Ele teve tanto êxito em seu projeto que, desde os anos 80, a classe trabalhadora sofre derrota após derrota. A composição política forjada na batalha foi desmantelada e descartada. Parece, para este velho operário da indústria automobilística que vos fala, que não foi só o capital que nos descartou, mas que um grande número de intelectuais comunistas viraram as costas para nós também. A conseqüência é que agora temos uma geração de anti-capitalistas que não sabe como interagir com a classe trabalhadora. Apesar de estarem rodeados pela classe que eles parecem estar mais interessados, eles vão à selva mexicana, ou preferem ir à Gênova e Seattle e dar à máquina do Estado oportunidades para treinar controle de multidão.

Nos anos 60 e 70 havia uma constante interação entre militantes da classe trabalhadora e a esquerda emergindo das universidades. Nem sempre isso foi positivo, mas onde houve uma sinergia, a teoria e a prática tinham alguma conexão. Aprendemos uns com os outros e coisas ótimas foram produzidas. Aqui na Grã-Bretanha, a obra publicada de Big Flame e Solidarity é prova disso. Na Itália, Potere Operaio e Lotta Continua ajudaram a desenvolver uma compreensão dos pontos fortes e fracos da composição do capital. Hoje, podemos falar de um sistema de produção globalizado, mas quantos de nós pode descrever como ele funciona? Como é que a lata de coca vai de A a Z? Nos anos 70 nós sabíamos como a fábrica e os sistemas de transporte funcionavam e era desse conhecimento que vinha nossa capacidade de combater a capital. Hoje, é certamente difícil entender exatamente como as coisas são feitas, mas é imperativo que ganhemos um conhecimento profundo dos processos de produção e logística, das cadeias de suprimento do capital, ou, dito de outra forma, das fábricas sem muros. Alguns capitalistas vêem a cadeia de fornecimento como uma fábrica virtual e querem que os trabalhadores se remetam à cadeia de fornecimento, ao invés de perceberem-se como empregados das empresas que integram essa cadeia.

A composição da classe trabalhadora vem da luta, mas antes requer que os capitalistas reúnam trabalhadores para impor uma disciplina de produção. No presente período, só podemos entender como a disciplina é imposta mediante uma abordagem global. A composição técnica do capital está difusa por todo o mundo, assim como os trabalhadores da cadeia de suprimento de mercadorias. Sob tal sistema, a disciplina é imposta pela aplicação do kaizen (melhoria contínua) e  da entrega just-in-time combinados com a aplicação de tecnologias da informação para policiar a produtividade dos trabalhadores.

Isso é reforçado pela mudança no modo como as mercadorias são movimentadas pelo sistema. O capital passou de uma economia de empurro [push economy] para uma economia de empuxo [pull economy], em outras palavras, está fazendo as coisas enquanto elas são demandadas, ao invés de fazê-las conforme uma demanda prevista. O lema da economia de empuxo é: "Se não foi vendido, não produza." A economia de empuxo dá às grandes cadeias de supermercados um poder enorme, porque elas controlam a informação que “puxa” as mercadorias através da cadeia de fornecimento. Quando você compra uma lata de feijão no supermercado Asda, a informação é transmitida para todos que estão ao longo da cadeia, para que outra lata de feijão seja produzida. Claro, milhões dessas peças de informação voam pelo ciberespaço a cada instante. Um dos efeitos da economia de empuxo é o aumento do trabalho precário: se a demanda diminuir, demita trabalhadores. As empresas têm programas de computador que calculam o número de trabalhadores necessários para satisfazer uma determinada demanda,  e “puxa” trabalhadores de um reservatório de precariedade, muitas vezes disponibilizado por agências de emprego. E cada vez mais elas terceirizam atividades acessórias subcontratando empresas de serviços;  essa é uma das razões para a rápida proliferação da indústria logística nos últimos anos. A indústria automotiva está indo para o modelo “economia de empuxo”, o que é um dos motivos principais de os operários dessa indústria nos EUA estarem sendo atacados neste momento.

Se as cadeias de suprimento são espalhadas  pelo planeta e os níveis de estoque são reduzidos ao just-in-time, então, para completar o ciclo de acumulação, a aplicação da logística torna-se determinante. Ao mesmo tempo isso aumenta a possibilidade de luta efetiva da classe trabalhadora: quando os caminhoneiros da costa oeste dos EUA, há um ano,  fizeram greve, eles paralisaram as cadeias de fornecimento do Wal-Mart e de outras cadeias gigantes, provocando ondas de pânico em muitas salas de diretoria. A importância da logística não pode ser subestimada - tente imaginar a cadeia de fornecimento de qualquer produto sem o input logístico. A globalização da produção tem deixado muitos trabalhadores acreditando que eles não podem fazer nada sobre isso, e quando as empresas transferem a produção para a China ou a Índia, eles ficam hipnotizados pelas luzes do rolo compressor capitalista que os esmaga, mas esta aparente força do capital multinacional é de fato a sua fraqueza.

Historicamente, os operários da logística eram os mensageiros do pensamento radical e transportadores de notícias das lutas dos trabalhadores. Eles próprios, é claro, se envolveram em muitas batalhas. Nos últimos vinte anos, muitas dessas batalhas foram defensivas, lutas para salvar empregos e manter condições de trabalho. A retirada do Estado na gestão direta do setor de logística foi o catalisador de um ataque global que continua até hoje. O capital privado entrou em peso no ataque aos trabalhadores em toda a indústria. Ao mesmo tempo, estas empresas têm se empenhado num frenesi de fusões e aquisições, que resultaram no surgimento de empresas verdadeiramente mundiais que empregam muitos milhares de trabalhadores.

Pode-se ter uma idéia do tamanho dessas empresas a partir de dois exemplos: a United Parcel Services (UPS) e a Deutsche Post (DP). A UPS é uma empresa de 33,5 bilhões de dólares que opera em 200 países e emprega mais de 340.000 trabalhadores. Ela fornece logística/distribuição de transporte e fretagem, comércio internacional, serviços financeiros, mecanismos de correspondência financeira e serviços de consultoria. Ela cresceu se beneficiando de processos de subcontratação, que são comuns nesse setor, e através da aquisição de outras empresas. Ela faz grandes cartadas: comprou a transportadora Fritz por 450 milhões de dólares. A DP é parcialmente do governo alemão, que detém 41,6 por cento das ações. Estas serão vendidas a investidores institucionais nos próximos anos. A DP opera o serviço postal alemão, é dona da DHL, e no ano passado comprou a Exel, britânica. A própria Exel era uma empresa aquisitiva antes de ser comprada; ela já havia comprado a Tibbett & Britten, a sétima maior empresa de logística do mundo. Isto resultou em uma empresa que emprega mais de 103.000 pessoas. Não sei quantas pessoas trabalham para a DP, mas deve ser da ordem das centenas de milhares.

A fábrica de automóveis Jaguar em Halewood, em Merseyside, talvez possa nos dar uma idéia de como uma cadeia de suprimentos funciona e de como a logística se encaixa na cadeia. Em Halewood, a Ford fabricava o Escort e foi lá que este proletário que vos fala trabalhou por sete longos anos. A fábrica era considerada pela Ford uma pedra no sapato, e a ameaça de fechamento estava sempre pairando sobre ela. A Ford comprou a Jaguar e decidiu fabricar o carro Jaguar em Halewood. Ao mesmo tempo, decidiu alterar radicalmente as práticas de trabalho na fábrica. Ela trouxe uma empresa americana chamada Senn-Delaney para alterar a mentalidade da força de trabalho, e parece ter sido bem sucedida, porque Halewood é agora considerada a melhor fábrica de carros da Europa. Se tentassem isso  nos anos 70, o trabalho dessa empresa teria sido desafiado pela contra-informação da esquerda.

Quando eu trabalhava em Halewood na década de 70, havia 14 mil de nós empregados no local. Hoje a Jaguar emprega cerca de 2.800 pessoas, mas este número é enganoso, porque uma fatia considerável do trabalho foi transferida aos fornecedores que, por sua vez, repassam parte do trabalho para fornecedores menores. Numa cadeia de  suprimento, as empresas são classificados assim: Original Equipment Manufacturer (OEM), ou seja, a Jaguar; fornecedor de primeiro nível [First Tier Supplier], ou seja, a Bosch, os pequenos fornecedores são chamados de segundo nível, terceiro nível, etc. Quem conecta tudo são as empresas de logística. Em Halewood, a UCI Logística, subsidiária da empresa japonesa Nippon Yusen Kaisha (NYK), opera o conjunto logístico. Como fornecedora logística principal, a UCI é responsável pela logística de entrada [inbound logistics] em Halewood, e também pela logística interna da fábrica em si. Nos dias da Ford, a logística interna era realizada pelos próprios trabalhadores da Ford. O serviço de logística de entrada envolve uma operação da cadeia de suprimento,  na coleta de peças, partes e submontagens por toda a Europa,  usando em parte sua própria frota (da UCI Logística) e em parte a de sócias da UCI. O serviço de logística interna envolve descarregamento de peças, o movimento dos componentes para as áreas de armazenamento e sua disponibilização nas linhas de produção sem incorrer em estoques laterais. Também é tarefa da UCI garantir que, nas linhas, nunca um estoque lateral exceda o volume de duas horas estipulado pela Jaguar. São os trabalhadores da UCI que dirigem as empilhadeiras que transferem material por dentro da fábrica de Halewood.

Vejamos a logística de um determinado produto que chega em Halewood, da montagem de rodas e pneus. A UCI movimenta 500.000 montagens por ano em Halewood. O contrato inclui a logística externa para o suprimento de rodas de liga, da Itália para instalações da Pirelli no Reino Unido, e a entrega de montagens completas para Halewood, três vezes por dia, juntamente com a logística interna na fábrica da Jaguar. A UCI seleciona entre 12 tipos diferentes de montagens a partir de instruções automatizadas transmitidas pela Jaguar e entrega o produto no ponto de encaixe na fábrica. O operário massa não foi destruído,  mas reconfigurado.

O capital adquire poder a partir da extração de mais-valia, e a cadeia de suprimentos é a fábrica sem muros onde esse processo ocorre. No passado, os socialistas se organizavam e agitavam em torno dos centros de produção de mercadorias - pensemos na atividade realizada em torno da fábrica da Fiat Mirafiori, em Turim e os esforços de Big Flame em Dagenham e Halewood - mas esse tipo de atividade pode ser feita hoje? Se uma tal agitação ocorrer hoje,  terá de ser em uma escala global, mas há tecnologia para isso. O capital, ao se tornar planetário com suas cadeias de suprimento, está criando a oportunidade para uma luta mundial dos trabalhadores. Para que tenhamos êxito, é preciso conhecer como a composição atual do capital funciona. O artesão e o operário massa sabiam como o sistema produzia mercadorias; precisamos desenvolver esse conhecimento hoje.


(Brian Ashton <t.ashton EM merseymail.com> é ex-operário da indústria automobilista na Inglaterra que desenvolveu um interesse pela indústria logística quando apoiou os estivadores de Liverpool saqueados durante meados dos anos noventa.)

Ver também: 
A rede de lutas na Itália (Romano Alquati, anos 1970)

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