Trechos de Charles Fourier sobre educação

Trechos traduzidos por humanaesfera do inglês.


“Não há problema sobre o qual se tenha errado mais do que o da instrução pública e seus métodos. A Natureza, nesse ramo da política social, sofreu um prazer maligno em todas as épocas, ao confundirem as teorias e seus expoentes, desde o tempo da desgraça incorrida por Sêneca, o instrutor de Nero, até o dos fracassos de Condillac e Rousseau, dos quais o primeiro constituiu apenas um idiota político e o segundo sequer ousou se responsabilizar da educação de suas próprias crianças.” (U.U., IV)

“Será observado que, na Harmonia, a única função paterna é se render a seus impulsos naturais, estragar a criança, mimar todos os seus caprichos.

A criança mimada será suficiente reprovada e ridicularizada pelos seus pares. Quando uma criança passa o dia com meia dúzia de tais grupos e sofre suas piadas, ela fica completamente imbuída com um sentimento de sua insuficiência, e fica muito disposta a ouvir os conselhos dos patriarcas e veneráveis que são bons o bastante para lhes oferecer instrução.

Depois disso, terá pouca consequência que os pais se comprazam em mimar a criança na hora de dormir, dizendo que ela foi tratada muito severamente, que ela é realmente encantadora, muito inteligente; essas efusões apenas vão raspar a superfície, elas não irão convencer. A impressão foi feita. Ela está humilhada pelos zombarias dos  sete ou oito grupos de pequenos que ela visitou durante o dia. Será em vão que o pai e a mãe expliquem que as crianças que as repeliram são bárbaros, inimigos do intercurso social, da gentileza e bondade; todas essas platitudes dos pais não terão efeito, e a criança, ao retornar os seristérios infantis no dia seguinte, só vai lembrar das afrontas do dia anterior; na realidade é ela que vai curar o pai do hábito de mimar, redobrando seus esforços e provando que ela é consciente de sua inferioridade.” (U.U., IV)

“A Natureza concede a toda criança um grande número de instintos industriais, cerca de trinta, dos quais alguns são primários ou diretores e conduzem aos que são secundários.

A questão é descobrir antes de tudo os instintos primários: a criança morde a isca assim que se apresenta; desse modo, tão logo ela aprende a andar, deixando o seristério infantil, o cuidador ou cuidadora que se responsabiliza por ela rapidamente a conduz a todas as oficinas e comparece aos encontros industriais próximos dali; e como a criança vê por toda parte ferramentas diminutas, uma indústria em miniatura, na qual crianças de dois anos e meio até três já estão engajadas, e com quem ela está ávida por se associar, bisbilhotar, futucar, no fim de duas semanas podem ser discernidas quais oficinas a atraem, quais os seus instintos industriais.

Havendo uma variedade excessivamente grande de ocupações na falange, é impossível que a criança não encontre oportunidades de satisfazer vários de seus instintos dominantes; estes se exibirão à vista de pequenas ferramentas manipuladas por outras crianças alguns meses mais velhas do que ela.

Segundo os pais e professores civilizados, as crianças são pequenos preguiçosos; nada é mais errôneo; as crianças de dois e três anos são muito industriosas, mas nós devemos conhecer os móveis que a Natureza deseja pôr em ação para atraí-las à indústria nas séries apaixonadas e não na civilização. Os gostos predominantes em todas as crianças são:

1. Bisbilhotice ou inclinação a futucar tudo, examinar tudo, olhar dentro de tudo, e mudar constantemente as acupações.
2. Comoção industrial, o gosto por ocupações barulhentas.
3. Macaquice ou mania imitativa.
4. Miniatura industrial, o gosto por oficinas em miniatura.
5. Atração progressiva do fraco para o forte.

Há muitas outras; limito-me a enumerar essas cinco primeiras, que são bastante familiares ao civilizado. Examinemos o método a ser seguido para aplicá-las à indústria desde cedo.

O homem ou a mulher que cuida dela inicialmente vai explorar a mania de bisbilhotar, tão dominante nas crianças de dois anos. Ela quer mexer em tudo, manusear e examinar tudo que vê. Hoje, ela é separada, colocada numa sala vazia, pois de outro modo ela destruiria tudo.

Essa propensão a manusear tudo é uma isca da indústria; para atraí-la, a criança será conduzida para as pequenas oficinas; ali, ela verá crianças de dois e meio a três anos usando pequenas ferramentas, pequenos martelos. Ela desejará exercitar sua mania imitativa chamada MACAQUICE; serão lhe dadas algumas ferramentas, mas ela vai querer ser admitida entre as crianças de vinte e seis e vinte sete meses que sabem como trabalhar, e que vão rejeitá-la.

Ela vai insistir se o trabalho coincidir com qualquer de seus instintos: o cuidador ou patriarca ensinará alguma parte do trabalho, e ela vai rapidamente ter sucesso se mostrando útil em algumas coisas frívolas que lhe servirão como introdução; examinemos esse efeito com relação a um tipo de trabalho sem importância, dentro do alcance das menores crianças – descascar e escolher ervilhas. Esse trabalho, que conosco ocupa as mãos de pessoas de trinta, será confiado a crianças de dois, três, quatro anos: o salão é guarnecido de mesas inclinadas contendo vários ocos; duas crianças estão sentadas no lado elevado; elas tiram as ervilhas da vagem, a inclinação da mesa faz os grãos rolarem para o lado mais baixo onde três crianças menores são posicionadas, de vinte e cinco, trinta e trinta e cinco meses, encarregadas da tarefa de escolher, e mobiliada com implementos especiais.

A tarefa é separar as menores ervilhas para o guisado adocicado, as medianas para o guisado de toucinho, e as maiores para a sopa. A criança de trinta e cinco meses primeiro seleciona as pequenas que são as mais difíceis de pegar; ela envia todas as grandes e medianas para o próximo oco, onde a criança de trinta meses empurram aquelas que parecem grandes para o terceiro oco, retorna as pequenas para o primeiro, e coloca os grãos medianos na cesta. A criança de trinta e cinco meses, posicionada no terceiro oco, tem uma tarefa fácil; ela retorna alguns grãos medianos para o segundo, e reúne as grandes em sua cesta.

É nessa terceira posição que a criança iniciante será colocada; ela vai se misturar orgulhosamente com os outros no lançamento dos grãos grandes na cesta; é um trabalho bem bobo, mas ela sentirá como se ela tivesse realizado tanto quanto seus companheiros; ela ficará entusiasmada e será tomada por um espírito de emulação, e na terceira sessão ela será capaz de substituir a criança de trinta e cinco meses, retornar os grãos do segundo tamanho no segundo compartimento, e reunir somente os maiores, que são facilmente distinguidos.” (N.M.)

“Se a educação civilizada desenvolvesse em cada criança suas inclinações naturais, veríamos quase todas as crianças ricas se enamorarem com várias ocupações muito plebeias, tais como aquela do pedreiro, do carpinteiro, do ferreiro, do seleiro. Exemplifiquei Luiz XVI, que amava o negócio do serralheiro; uma infanta da Espanha preferia aquele do sapateiro; um certo rei da Dinamarca se satisfazia fabricando seringas; a anterior rei de Nápoles amava vender ele mesmo o peixe que ele tinha pescado na feira; o príncipe de Parma, que Condillac tinha treinado em sutilizas metafísicas, no entendimento da intuição, da cognição, só tinha gosto pela ocupação dos representantes de igreja e a dos irmãos leigos.

A grande maioria das crianças ricas seguiria esses gostos plebeus, se a educação civilizada não se opusesse ao desenvolvimento deles; e se a sujeira das oficinas e a grosseria dos trabalhadores não levantasse uma repugnância mais forte do que a atração. Que filho de príncipe existe que não gosta de uma das quatro ocupações que mencionei, aquela do pedreiro, do carpinteiro, ferreiro e do seleiro, e quem não avançaria nelas se ela contemplasse desde tenra idade o trabalho feito em bonitas oficinas, por gente refinada, que sempre arranjaria oficinas em miniatura para as crianças, com poucas complicações e trabalho leve?” (U.U., III)


Nenhuma tentativa será feita, como no caso da educação atual, de criar pequenos sábios precoces, escolas primárias intelectuais iniciantes, introduzindo desde os seis anos em sutilezas científicas; o propósito será de preferência assegurar a precocidade mecânica; capacidade na indústria corporal, que, longe de retardar o crescimento da mente, o acelera.

Se quisermos observar a inclinação geral das crianças de quatro anos e meio a nove anos de idade, veremos que elas são fortemente atraídas para todos os exercícios materiais, e muito pouco aos estudos; é certo então que, de acordo com o desejo da natureza ou atração, o cultivo material deve predominar nessa idade.

Por que esse impulso da infância para os exercícios materiais? Porque a Natureza quer, sobretudo, fazer do homem um lavrador e um fabricante, para levá-lo à riqueza antes de conduzi-lo à ciência.” (U.U., IV)

[Traduzido por humanaesfera a partir do inglês e francês]


Nota:
[*] Siglas usadas para obras de Charles Fourier:
Q.M. - Théorie des quatre mouvements et des destinées générales (1808).
U.U. - Théorie de l'unité universelle (1822-1823).
N.M. - Le Nouveau monde industriel et sociétaire ou invention du procédé d'industrie attrayante et naturelle, distribuée en séries passionnées (1829).
F.I. - La fausse industrie morcelée répugnante et mensongère et l'antidote, l'industrie naturelle, combinée, attrayante, véridique donnant quadruple produit (1835).

Man. - Manuscrits de Fourier (1845-1858)



Ver também: 
A atração apaixonada (trechos) - Charles Fourier

Outros clássicos que traduzimos:

Anarquia e Comunismo (1880) – Carlo Cafiero

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