Traduzimos as principais partes e alguns artigos completos do jornal L'Humanitaire, publicado em 1841, em Paris [1]. O jornal exprimia a tendência denominada communistes matérialistes, também chamados communistes immédiats ou humanitaires. Foi “a primeira publicação comunista libertária”, segundo o historiador Max Nettlau. Infelizmente, devido à forte repressão que se seguiu (em que 20 envolvidos foram presos), o jornal foi descontinuado após o segundo número. [2]
Os textos dos dois números do jornal (publicados, respectivamente, em julho e agosto de 1841) defendiam:
- a criação imediata de uma sociedade “onde toda dominação do homem pelo homem seja inteiramente abolida”;
- a abolição das fronteiras nacionais (a palavra humanitaire, humanitário, não existia no dicionário. Era então um neologismo para se referir à ideia de comunidade humana mundial, ao universalismo, internacionalismo, cosmopolitismo etc, ou seja, tinha um sentido diferente de hoje, que se restringe à filantropia estatal, bélica ou burguesa [3]);
- a abolição da coerção ao trabalho, assim como da divisão do trabalho, através da instauração do trabalho atrativo (ideia inspirada em Fourier), numa situação em que os seres humanos viajariam livre e continuamente pelo mundo, deixando “livre curso ao desenvolvimento da fraternidade ao livrar o homem do contato perpétuo com os mesmos seres, o que engendra o apego individual que é positivamente a negação da lei da atração, una e universal” e em que ninguém faria o mesmo trabalho por mais de um dia. E
- coerentemente com a superação da divisão do trabalho, a abolição tanto da venda quanto da troca, numa sociedade que se organiza em função da livre satisfação de todas as necessidades humanas e do livre desenvolvimento de todas as faculdades.
O jornal causou escândalo, sendo fortemente criticado e combatido pelas demais tendências socialistas de então, como os icarianos (seguidores de Étienne Cabet, defensor de um comunismo cristão autoritário, pacifista, a-classista, autor da utopia Viagem à Icária, e fundador do jornal Le Populaire) e os socialistas reformistas com tendências espiritualistas e nacionalistas (como os jornais L´Atelier, Le Travail e La Fraternité) [4].
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Gabriel Charavay, em 1878 |
Os redatores de L'Humanitaire eram: Gabriel Charavay (camiseiro, depois jornalista iniciante e livreiro), Jean Joseph May (agrônomo), Julien Gaillard (encanador), Pierre Antoine Nicolas Page (joalheiro). Sabemos os nomes dos outros participantes por causa da forte repressão policial que se abateu sobre eles: a feminista Louise Dauriat, os camiseiros Jean Charavay e Donatien Dauvergne, os joalheiros Anselme Mugnier e Augustin Noël, os tipógrafos François Garde e Claude Chassard, os sapateiros Antoine Fombertaux e Jean Sans, o telhadista Désiré Gaillard, os alfaiates Alexis Trottier e Théodore Ber, o contador Corneille Homberg, o pedreiro Silvain Mourlon, o marceneiro Quéré, o curtidor Auguste Sauvaitre, o secretário de negócios Hyppolite Loudier e o vendedor de vinhos Etienne Rousseau [5].
Muitos temas que apareceram em L'Humanitaire, como o das viagens contínuas, reapareceram amplamente desenvolvidos depois, em 1857, em A Humanisfera - utopia anárquica, de Joseph Déjacque. Também em Karl Marx, especialmente em A Ideologia Alemã, de 1846 e nos Manuscritos de Paris, de 1844. Por exemplo, a questão da superação da divisão do trabalho por uma livre associação de indivíduos em escala mundial, culminando no tema da abolição do trabalho em si. Nessas obras de Marx, há inclusive frases que parecem quase que transcritas de L'Humanitaire, por exemplo: “O que é a vida senão atividade?” No entanto, não há provas de que eles tenham lido o jornal. É possível que tenham sido influenciados através do contato direto com as ideias circulantes no meio proletário parisiense da década de 1840, ou que tenham desenvolvidos essas ideia por si mesmos, uma vez que os problemas concretos que levam a tratar dessas questões são comuns aos proletários do mundo inteiro, inclusive hoje.
O jornal também publicou uma biografia de Sylvain Maréchal (que não traduzimos), com quem se identificavam por suas ideias "anti-políticas ou anarquistas".
Aliás, um dos redatores de L'Humanitaire, Jean Joseph May, é citado pelo espião Lucien de La Hodde, que relatou: “O Sr. Jean Joseph May, que está morto – o Deus da comunidade guarde a sua alma! – não era um homem ordinário, visto que o Sr. Proudhon se dignou a tomar suas ideias. O famoso sistema de governo an-árquico, isto é, do governo sem governantes nem governados, não é nem mais nem menos que a propriedade do falecido Sr. May” [6].
humanaesfera, março de 2017
Notas:
[1] Os dois números de L'Humanitaire em francês podem ser acessado neste link da Gallica da Biblioteca Nacional da França.
PRIMEIRA PARTE
Doutrina
[publicado em L'Humanitaire, Nº 1, julho de 1841]
"[...]
Antes de expormos as bases de nossa doutrina,
nos parece indispensável resolver uma questão que se apresenta naturalmente a
qualquer um que busca descobrir a causa dos males, crises e revoluções, em
suma, de todas as calamidades que atormentaram a humanidade por tantos séculos.
A causa seria produto da sociabilidade?
O mal seria inerente à natureza humana?
Nem uma, nem outra, e nós vamos provar.
Se a primeira questão fosse respondida
afirmativamente, a sociabilidade não seria o modo de existência mais conforme à
natureza humana, ao seu organismo, e
o estado selvagem, de isolamento, seria então o que mais lhe convém. A questão
colocada deste modo se torna muito menos difícil de responder, sendo quase
impossível de não responder pela negativa. Com efeito, uma simples noção da
natureza e das necessidades humanas basta para compreender que o estado de
sociedade é o único conforme a seu organismo, no sentido de que só a sociedade
pode dar e garantir uma satisfação completa de todas as suas necessidades. Além
disso, as necessidades intelectuais e morais, cuja satisfação é tão imperiosa
quanto as necessidades físicas para constituir a felicidade, não podem receber
nenhuma satisfação no estado selvagem e de isolamento. Assim, portanto, o homem
é um ser fatalmente social. E a
sociabilidade produz também a única
situação que torna possível todas as melhoras de que seu organismo é
suscetível. Qual é então a causa dessas revoluções incessantes, desses
sofrimentos eternos da humanidade que a história nos oferece o quadro? A causa
do mal está na organização da sociedade, que, ao invés de basear suas leis
naquelas da natureza, e de conformá-las ao organismo humano, é constantemente
mais ou menos afastada dessas leis, e coloca entraves ou obstáculos ao
desenvolvimento do organismo: eis a verdadeira fonte do mal. As diversas fases,
as crises violentas que a humanidade sofreu confirmam nossa asserção. Elas nos
ensinam que o homem, saindo das mãos da natureza, não tem nem ideia, nem
inclinação, nem aptidão, porque a cada vez que a situação social mudou, sua
maneira de pensar, de agir, de raciocinar, também diferiu; daí a conclusão de
que o sistema de ideias inatas, de inclinações inatas, de aptidões inatas, é
soberanamente absurdo, e soberanamente em contradição com o conhecimento do
organismo humano. Como seria possível supor que o homem nasce com ideias, enquanto
o meio social tem o poder de as mudar, desnaturar, perturbar? As leis da
natureza têm mais constância e fixidez; o homem não pode nunca mudá-las
totalmente, e é sempre se prejudicando que ele as rejeita. Não continuaremos essa
argumentação neste artigo, porque os limites nos impedem: nosso objetivo aqui é apenas indicar as bases
de nossa doutrina. Demostraremos, nos números seguintes, a evidência da verdade
de nossos princípios. Dizemos então: o homem nasce com necessidades e
faculdades; sua conservação exige imperiosamente a satisfação absoluta das
primeiras e o desenvolvimento completo das segundas. As crises violentas, as
diversas revoluções que volta e meia e frequentemente abalaram a humanidade são
o protesto da natureza humana contra a ordem social que não garante a
satisfação completa de todas as suas necessidades, e nem o desenvolvimento
completo de suas faculdades; eis o ensino que deriva do estudo da história das
vicissitudes humanas. [...]
O desenvolvimento completo de todas as
faculdades humanas será a garantia da utilidade
(*) de todos os seus atos. Assim, o mal, ou seja, o ato pelo qual o homem é
nocivo a si mesmo, ou nocivo a um ser de sua espécie, deve se tornar impossível
em uma organização social baseada na natureza humana. Há algo mais absurdo do
que supor que o homem, ser dotado de inteligência,
de razão, possa ser nocivo a si
mesmo ou cometer atos insensatos, irracionais, quando todas as suas faculdades
intelectuais e morais receberam um desenvolvimento completo? Não, nada seria
mais absurdo; pois do desenvolvimento completo das faculdades deve resultar a razão, ou o conhecimento exato,
preciso, do útil e do nocivo: e essas duas coisas, escrupulosamente indicadas e
definidas, não podem mais ser confundidas, se tornando então o único móvel de
todos os atos do homem, como é hoje o móvel de todo homem sábio. Alguém nos dirá: “não é verdade, portanto, que o homem é mau, já que pretendeis lhe
retirar até mesmo a possibilidade de fazer mal?” Não, certamente que não, os
homens não são maus; eles são tolos e ignorantes. Uma ordem social em evidente oposição
às leis eternas da matéria e às necessidades da natureza humana falsificou
todos os nossos conhecimentos, obstruiu o desenvolvimento da ciência e impeliu
o homem, ignorante e embrutecido, a cometer atos nocivos à sua conservação. Para
remediar o mal, é preciso desenvolver no homem essa faculdade preciosa que ele
recebeu da natureza, a razão, fazer
dela a medida da satisfação de suas necessidades materiais, uma vez que ela é a
única regra que ele pode consultar em cada um de seus atos. Com esse
desenvolvimento da razão, se retira do homem toda possibilidade de fazer o mal,
pois seria odiosamente absurdo pretender que um homem sensato, que não age
nunca fora da razão, possa ser nocivo a si mesmo.
[(*) {Nota de L'Humanitaire:} Entendemos por esta palavra {utilidade} tudo aquilo
que contribui à saúde, à conservação e, portanto, à felicidade do homem; nós
chamamos de nocivo tudo que é o
contrário disso.]
Mas alguém objetará: “nós estamos convencidos,
como vós, de que um homem cuja razão ou inteligência tenha sido desenvolvida
nunca será nocivo a si mesmo por nenhum de seus atos, entretanto, onde está a
garantia de que ele não será nunca nocivo a mais ninguém de sua espécie?” Essa
garantia está no próprio princípio que acabamos de expor: reconhecemos e
proclamamos que o homem sensato é
aquele que vive conforme a sua natureza. Assim, uma vez que viver de uma maneira
conforme à sua natureza é satisfazer todas as suas necessidades, se segue que o
homem que é nocivo a seu semelhante não satisfaz completamente todas as suas
necessidades, visto que as necessidades morais nada mais são do que a simpatia
e o amor de seus semelhantes; amar seu semelhante não é ser nocivo a ele, e
dizer que o contrário possa ocorrer seria negar imediatamente que o homem tenha
necessidades morais. Quem admitiria essa consequência? Além disso, mesmo que ninguém
concorde com a exatidão de nosso último raciocínio, nós diremos que, em nossa
organização, o problema subsequente é claramente resolvido: encontrar uma situação na qual seja
impossível que o homem seja nocivo a seu semelhante sem ser nocivo a si mesmo.
Retornaremos a todas essas questões.
[...]
Após estudar e pesquisar por muito tempo a
solução de todos esses problemas, adquirimos a certeza de que a situação
igualitária pode, sozinha, resolver
todos eles; nosso jornal provará isso de uma maneira evidente e irrefutável.
A consequência primeira desse princípio sendo a
unidade, a indivisibilidade não pode admitir nenhuma divisão, nenhum particionamento
do solo. Queremos portanto a comunidade de bens.
Mas que tempestade de recriminações e objeções essas
duas palavras, igualdade e comunidade, não levantam?! “A igualdade, lei absoluta, não existe em lugar nenhum. Sua realização
será a negação do ser intelectual e moral! Será a destruição da ciência e das
artes, o retorno ao embrutecimento e ao estado selvagem! E a atividade, essa
nobre e preciosa faculdade do homem, é aniquilada pela igualdade! E que langor,
que monotonia, que coerção na comunidade de bens! Além disso, quanta
dissidência entre os comunistas! Cada um entende a comunidade à sua maneira! De
onde vem essa falta de unidade? Por que então esse novo jornal comunista,
quando já existem dois em Paris?”
Os fisiologistas reconhecem no homem três
naturezas bem distintas, em outros termos, três ordens de fatos. Há três tipos
de necessidade: as necessidades físicas, as necessidades intelectuais e as
necessidades morais. Longe de querer contestar essa trindade do organismo
humano, de cuja existência estamos perfeitamente convencidos, o que afirmamos é
que a sociedade deve satisfazer por inteiro todas as necessidades humanas. Assim,
visto que reconhecemos no homem as necessidades intelectuais e morais, cuja
satisfação, para nós, é tão imperiosa quanto as necessidades físicas, então
estamos longe de querer aniquilar o ser intelectual e moral. Nós demostraremos,
pelo contrário, que a organização igualitária permite por si só o
desenvolvimento completo de todas as faculdades humanas. Essa é, além do mais,
a consequência implicada na fórmula que usamos para anunciar o problema social.
De fato, ao colocar como princípio que o objetivo da ciência social é garantir
a conservação da espécie humana, com isso implicamos também que ela deve
garantir ao homem o desenvolvimento de todas as suas faculdades intelectuais, visto
que só esta última indica os meios para chegar a esse objetivo. Desse modo,
está aniquilada essa objeção tola de que a igualdade é a negação do ser
intelectual.
Assim, cai também aquela outra objeção segundo
a qual a lei igualitária destruiria a ciência e as artes.
“Mas a
igualdade esmaga, sufoca e aniquila a atividade humana.” Ah! Se fosse assim,
nós seríamos bem criminosos, e a igualdade seria uma lei horrivelmente atroz! Mas
sabemos que viver é ser ativo. Longe então de querer negar no homem essa
necessidade de conhecer, de raciocinar, de agir, e, consequentes com o
princípio que expomos, queremos que essa necessidade tenha uma satisfação
completa. Provaremos que a situação igualitária pode garantir por si só essa
satisfação. Mas não basta que a atividade humana tenha uma satisfação completa
para que tudo possa ser melhor quanto a isso. A ciência social, que busca todos
os meios que são úteis à humanidade, deve também encontrar o de atrair sem
cessar essa faculdade aos objetos úteis, ao invés de deixá-la se perder na
aberração ou em futilidades. Cremos que atingir esse resultado é chegar ao
último termo da perfectibilidade.
Quanto à acusação de monotonia, de langor, que
se dirige à comunidade, ela só pode ser feita por quem não tem nenhuma ideia da
organização comunista. Veja, com efeito, como essa organização é monótona! O
homem, sob esse regime, fará apenas quatro ou cinco vezes a volta ao mundo. A
organização do trabalho, ordenada de acordo com o princípio de comunidade, não
é menos acomodatícia; nunca, nessa ordem social, alguém ficará ligado por mais
de um dia ao mesmo trabalho. Que langor, portanto, nesse estado de coisas onde
o homem viajará continuamente. E isso, com o objetivo de operar a mistura a
mais íntima da raça humana; de estimular sem cessar sua atividade ao lhe
oferecer sempre fatos novos a estudar; de deixar livre curso ao desenvolvimento
da fraternidade ao livrar o homem do
contato perpétuo com os mesmos seres, o que engendra o apego individual que é
positivamente a negação da lei da atração, una e universal. Ó sim! Em uma
organização social combinada assim deve existir uma monotonia e um langor
insuportáveis. Leitores, não penseis que tudo isso seja um sonho, nós provaremos que é uma realidade.
Após isso que foi dito, cremos ser inútil
responder a essa outra objeção: a comunidade impõe ao homem uma coerção
insuportável. Certamente, nenhum daqueles que nos fazem essa objeção leva mais
alto do que nós o amor pela liberdade. Todos eles ficariam muito embaraçados se
pedíssemos a eles o plano de uma organização social onde toda dominação do homem pelo homem seja inteiramente abolida: nós daremos
esse plano neste jornal.
Enfim, responderemos à terceira e última
objeção: “os comunistas são divididos;
cada um entende a comunidade à sua maneira”. Respondemos: isso é verdade.
Mas qual a causa principal das dissidências? Não é preciso procurar por muito
tempo; ela se encontra na ausência de uma obra que formule a doutrina de um
modo claro e completo. Todas as que foram publicadas até hoje não atingiram o
objetivo que propuseram. As obras antigas, bem como as novas, seja por
ignorância de seus autores, ou por medo de ferir alguns preconceitos, estão
cheias de ideias falsas, de inconsequências e contradições, que, ao invés de reunir,
só fazem dividir. Assim, uma obra, ou uma publicação, que exponha claramente e
contundentemente a organização comunista é indispensável para restabelecer a
unidade na doutrina, e entre os homens que a professam. Nó viemos para realizar
essa tarefa. Que não nos acusem de vir para semear a cizânia, buscar e querer a
desunião. Todos os nossos esforços tenderão, ao contrário, à reunir os homens
de boa fé sob a bandeira da verdade.
Somos profundamente convencidos de que a verdade é o mais poderoso elo para
reunir os homens, assim como somos igualmente convencidos de que o erro e a
mentira são causas eternas de divisão. Não recuaremos nunca diante da verdade,
e nos engalfinharemos com os preconceitos que nos impedem de chegar à ela.
Guerra mortal a todos os erros, a todos os preconceitos! A mentira já treme ao
aspecto da verdade que avança: viva a verdade!
[...]”
Sobre a
ciência social
[publicado em L'Humanitaire, Nº 2, agosto de 1841]
"[...]
Algumas pessoas exclamaram com desatino, e as
objeções feitas ao nosso primeiro número se renovaram. “Quereis fazer desaparecer todos os males! Que loucura! Que quimera!
Ensinais também certamente ao homem os meios de se subtrair à morte, de evitar
as doenças. Tendes essa pretensão, não é?” Não, nossas faculdades ainda não
estão nesse estado de demência. Sabemos distinguir o mal do acidente; e, provavelmente, nossos adversários jamais
fizeram essa distinção. O primeiro não existe em nenhum lugar na natureza; ele
desaparecerá totalmente no dia em que o homem for assaz esclarecido e sábio o
bastante para basear sua regra de conduta de acordo com as leis imutáveis da
natureza. O segundo (o acidente) é o caso em que uma porção da matéria se
encontra privada da lei universal, e isso por uma causa fortuita, que, em
alguns casos, poderia ter sido evitada pela determinação do homem, e que, em
outras circunstâncias, o homem pode não ter nenhum poder. Resulta então que
alguns acidentes são provavelmente inevitáveis, enquanto que o retorno de
outros será facilmente impedido. Ao estudar as causas que produzem os acidentes
na situação atual, é-se prontamente convencido de que o maior número deles se
deve à imprevidência humana. Todos os que tem essa natureza não se
reproduziriam na nossa organização.
Assim, acalmem-se, os homens da sociedade
futura não serão nem um pouco isentos da morte. Apenas estamos convencidos de
que a duração da vida será muito mais longa que na sociedade atual. A morte não
é um mal, nem um acidente. Não se pode chamar com nenhum desses dois nomes
aquilo que é uma lei absoluta da matéria. Porém, às vezes, a morte é o
resultado de um acidente, e então ela é um mal. Se o acidente provêm de uma
causa sobre a qual o homem pode agir, a ciência social deve pesquisar os meios
de evitar que essa causa se renove. Hoje, por exemplo, a morte, com muita
frequência, se deve à devassidão, à má alimentação, a um trabalho muito penoso
e excessos de todos os tipos. Sobre todas essas coisas, o homem pode exercer um
poder absoluto, e então esses são flagelos de que a humanidade pode se pôr ao
abrigo. Mas no que se refere à morte normal, ela é inevitável. É a consequência
da lei da transformação a que toda a natureza é impiedosamente submetida;
quando esse fato se produz, uma combinação nova ocorre, e, num instante, a
coisa que é o objeto deixa de ser aquilo que era: nenhum poder pode parar os
resultados de uma causa sem a qual nada existiria. De fato, sem a lei da
transformação, seria de todo impossível conceber a existência e a reprodução.
Por isso, não nos atribua gratuitamente
pretensões que nós não temos. Alguns acidentes poderão ainda perturbar a
organização social a qual explicaremos o mecanismo, mas seu número será muito
pequeno. Para citar um exemplo, as doenças são acidentes. Não podemos afirmar,
no estado atual de nossos conhecimentos higiênicos, que o homem, um dia, estará
absolutamente isento delas. Porém, possuímos muitos elementos para estabelecer
em princípio que elas serão muito menos numerosas e muito menos frequentes. O
mesmo se aplica a uma multidão de outros inconvenentes desse gênero que é
inútil enumerar aqui. Quanto aos males, todos desaparecerão, porque todos eles
devem sua origem à ignorância do homem, ou a uma situação viciosa que, não lhe
garantindo todas as condições indispensáveis à sua existência, o força a
cometer atos que ele não teria tido a mesma ideia se a inflexível necessidade
não o coagisse a cometer. Pois, repitamos, nenhuma parte da matéria é
destruída, ela se transforma, não se aniquila nunca. Pelo que precede, já
definimos a palavra mal; é tudo que,
ocorrendo pela determinação do homem, produz imediata ou mediatamente a
destruição.
O assassinato, que produz imediatamente a
destruição; a intemperança, a devassidão, que levam mediatamente ao mesmo
resultado. Como uns e outros são devidos a causas produzidas pela determinação
do homem, são males, cuja própria ideia será desconhecida aos homens da
sociedade futura. A mendicância abjeta, a ignóbil domesticidade, esses que são
dois dos flagelos mais horríveis das sociedades antigas e modernas, são
instantaneamente destruídos pela aplicação da comunidade.
[...]
Razão, agora
governe o mundo! Por muito tempo, em nome do progresso e da liberdade, a
humanidade se afundou na mais horrível miséria, na mais odiosa escravidão. Em
vão se pretende que a razão não é suficientemente poderosa para fazer o que
atribuímos a ela. Essa é uma objeção tola, destruída inteiramente pelo que
vamos dizer. [...] Hoje, ousam dizer que mesmo que a situação social desenvolva
no grau máximo as faculdades intelectuais, o homem não será nunca
suficientemente sábio para obedecer constantemente as leis da razão e que
alguns desejos nocivos a ele mesmo, vindo ocasionalmente lhe solicitar,
acabarão por fazê-lo cometer atos que a razão reprova? Assim, certos pratos são
prejudiciais à saúde, mas eles seduzem o órgão do gosto; a razão grita em vão
que eu devo me abster, mas eu o comerei porque ele me apraz. Eis o argumento
terrível com que se declara que nossa doutrina é uma quimera. É lamentável ter
que refutar tais bobagens. Mas como a objeção nos foi feita por comunistas, é
nosso dever responder, a fim de esclarecer os homens que os tolos e ignorantes
enganam. Primeiramente, por isso que precede, é demostrado que o homem colocado
numa situação decente não pode ter desejos maus. Nessa condição, esclarecido
pelas indicações da ciência, todas as suas determinações, todos os seus atos,
serão conformes as leis da conservação. A história, que se invoca contra nós,
prova, ao contrário, a correção de nosso raciocínio. Se a humanidade sempre foi
insensata, é absurdo concluir que ela sempre será. Isso é fazer um entidade,
não resolver a questão. Qual é a causa dessa loucura, dessa demência da
humanidade? Ela convém a uma situação viciosa, ou ela é resultado inevitável da
natureza humana? Eis como a questão pode ser resolvida. Já explicamos de modo
suficientemente sobre isso. Seria supérfluo recomeçar uma nova demonstração. O
espiritualismo contribuiu poderosamente à aberração da razão humana. O meio
social, sempre oposto ao organismo, e a ignorância, ou o não-desenvolvimento de
suas faculdades, fizeram o resto. Assim, a história não é a condenação de nossa
doutrina: é pela falha de compreender seus fundamentos que se tira um argumento
contra nós. A história prova que a razão cessa de ser um guia infalível quando,
ao invés de ser levada por uma boa via durante as primeiras fases de seu desenvolvimento,
se imprime nela, ao contrário, uma falsa direção. Agora, uma vez reconhecido
que a razão humana pode se enganar, e isso quando as faculdades intelectuais
que a constituem não receberam desenvolvimento suficiente, ou porque as
primeiras impressões a colocaram numa falsa direção, é indispensável, para que
a humanidade não cometa nunca mais atos insensatos, que sejam removidas dessas
causas de desvio e aberração toda possibilidade de se reproduzir. Sendo essas
causas tais quais acabamos de explicar, o remédio a seguir é certo e infalível:
Colocar o homem numa situação conforme a
sua natureza; desenvolver suas faculdades em toda sua extensão; afastar dele
tudo o que contribui imediatamente e mediatamente a enganar sua razão, e
então acabar com a demência da humanidade. Desse modo, também desaparecerão o
despotismo, ou a dominação do homem pelo homem, que se reveste de uma multidão
de formas diferentes, as quais repudiamos todas. Nossa doutrina reúne todos
esses benefícios. Ela coloca o homem em uma situação tal que é impossível que
ele cometa um único ato insensato, isto é, um ato nocivo a sua conservação.
Dirão que retirando assim do homem a possibilidade de fazer o mal, nós
aniquilamos o eu, assassinamos a liberdade humana, constituindo uma tirania de
tipo novo, mas não menos odiosa que a que existia? Já declaramos que ninguém é
amigo mais ardente da liberdade do que nós, que ninguém abomina mais todas as
tiranias; se a objeção fosse verdadeira, nossa doutrina estaria em contradição
com a declaração que fizemos. Examinemo-la. Primeiramente, o que é liberdade? O
que é a tirania? A liberdade é uma
situação em que o homem não obedece a nenhuma autoridade que não a razão; a
tirania é o oposto, ou uma situação em que ele é forçado a cometer atos outros
que aquele que sua razão lhe dita. O que é então a razão? É a ciência, ou o conhecimento do que é útil e do que é nocivo. Ora, esse
conhecimento é fácil de adquirir. Admitindo que o erro tome o lugar da verdade,
ele não poderá durar muito; os fatos virão prontamente para desmascará-lo.
Portanto, não há tirania na nossa organização, porque o homem não obedece a
qualquer autoridade que não a razão; ela por si só possui todas as condições da
verdadeira liberdade.
[...]”
Resposta ao jornal L´Atelier
[publicado
em duas partes, nos números 1 e 2 de L'Humanitaire, respectivamente de julho e
agosto de 1841]
"O último número do jornal L´Atelier contém um artigo intitulado: Aos operários comunistas [Aux
ouvriers communistes], no qual ele endereça muitas questões e conselhos ao
nosso jornal, que, embora não tivesse ainda aparecido, se encontra, assim como Le Travail, jornal comunista publicado
em Lyon, claramente indicado por seu título. Nós passaremos em revista as
ideias fundamentais desse artigo.
Os diversos rumores que circularam sobre a
publicação de nosso jornal, a recepção e as recriminações que experimentou a
linha que ele seguirá invariavelmente e a doutrina que ele professará explicam
suficientemente, para nós, como L´Atelier
foi levado a falar de um jornal que ele ainda não conhecia.
Primeiramente, nós o elogiaremos pela simpatia
que ele nos mostrou, e pelo tom polido que reina em todo o artigo. L´Atelier felicita que nosso jornal seja
fundado e deve ser redigido exclusivamente por operários. Lê-se ali: “É tanto mais importante que esse trabalho
seja feito entre nós, operários, que só nós possamos nos dizer nossa verdade”.
Nós não compartilhamos da opinião de nosso colega; cremos que isso é um erro
muito grave e muito funesto. Um meio social falso deve necessariamente produzir
ideias falsas, daí resultando que, na sociedade atual, um número muito pequeno
de homens tem ideias verdadeiras. [...] Se a estatística prova em favor da
classe operária, é evidentemente porque ela é a mais numerosa, e não porque só
a ela é reservada a posse da verdade, pois todos os homens são igualmente aptos
a descobrir a causa dos fatos diversos que lhe aparecem cotidianamente. A
situação social na qual cada um se encontra constitui a única diferença das
capacidades e aptidões. Assim, não recusamos e nem excluímos ninguém. Chamamos,
pelo contrário, todos os homens de boa vontade. [...] É preciso recusar uma
verdade porque ela nos chegou de alguém de origem aristocrática? A verdade não
é sempre a verdade, seja de qualquer parte que ela chegue? [...]
[...]
A seguir,
L´Atelier aconselha “a deixar de lado
por um momento as grandes palavras e as fórmulas vagas, e considerar seriamente
o que cada um deseja”; depois, ele se pergunta “se ele não é tão comunista como nós, embora não julgamos necessário
dizer isso”.
E L´Atelier
nos pergunta:
“Se por
comunidade vós entendeis que o sentimento nacional deve ser comum, e que todos
devem querer aquilo que a nação verdadeira quer – então nós somos comunistas
como vós.
Se, por comunidade, vós entendeis a organização social do ponto de
vista da igualdade, não essa igualdade que conta por cabeça e que diz: o homem vale o homem, porque essa não é
justa; mas aquela igualdade bem mais ampla, que quer que se abra os caminhos a
todos, que quer que todos sejam protegidos e sustentados, e que mede a
recompensa pela boa vontade de cada um; - se vós quereis que o trabalho seja
feito em comum; - se vós quereis que a criança, o idoso e o doente sejam
alimentados ás custas do Estado; - se vós quereis que ninguém suporte sozinho
as perdas que não dependem desse alguém evitar, e que a fortuna pública repare
os infortúnios individuais; - não há nada em tudo isso que nós não desejamos:
nós somos comunistas como vós.
Se, por comunidade, vós entendeis ainda essa vida mais íntima
onde, no que respeita ao casamento e a família, alguém se associa
voluntariamente tanto por necessidade de economia quanto por sentimento de
fraternidade, e onde todos os meios de existência seriam comuns; se vós
entendeis, além disso, que sob o regime de associações agrícolas e industriais,
o sistema de troca poderá substituir com vantagem, em muitos casos, o sistema
de venda, ainda sobre esses pontos, nós somos comunistas como vós.
Todos esses desejos de reforma social são perfeitamente razoáveis
e legítimos; e a geração atual deverá ser considerada como tendo feito muito se
ela puder realizar apenas uma parte
disso.
Mas se vossas ideias de comunidade vão além das generalidades; se vos
deixais seduzir por promessas quiméricas; se sonhais, em suma, com aquela era de
ouro, em que o trabalho não seria senão uma agradável distração, em que os
frutos da terra seriam tão numerosos que não seria possível nem mesmo recusar o
preguiçoso de se sentar no banquete, em que o homem se ocuparia unicamente com
sua felicidade, e não pensaria senão em criar novos gozos; se podeis acreditar
em coisas semelhantes, só nos resta nos apiedarmos das decepções que vós vos
preparais, e lamentar de ver uma atividade tão preciosa perdida na busca do
impossível.
Não, estamos convictos de que não vos enganais assim. Porque sois,
como nós, antes de tudo, homens práticos; porque, para nós, as teorias não têm
valor senão a medida em que são realizáveis. Se então ainda não vistes a
utopia, refletis seriamente, e não tardareis em rejeitá-la de vosso espírito.
Despojemos, portanto, essa doutrina do véu sedutor que a envolve,
e vejamos qual é a sua conclusão final: ´o homem deve ter felicidade´, dizem, ´e
tudo que contribuir para ela se chama bem;
tudo que se opõe a ela se chama mal´.
Eis o raciocínio em todo seu rigor. É preciso longas reflexões para ver aonde
ele conduz? Quando se tiver posto no espírito de todos os homens que eles são
feitos para a felicidade, ninguém mais vai querer cumprir os deveres sociais,
porque todo dever é uma pena; ninguém quererá se submeter às interdições
morais, porque essas interdições são obstáculos a nossos prazeres. E não venha
nos dizer que, por felicidade, eles
entendem o prazer de se devotar uns aos outros... O devotamento é um ato de
sacrifício; e em nenhuma língua sacrifício
e felicidade significaram a mesma
coisa. É então um puro sofisma para dissimular o lado material da teoria. Nós
supomos que, pela palavra felicidade,
quis-se claramente dizer gozo positivo,
já que enumerou-se nos menores detalhes os prazeres variados e incessantes da
comunidade absoluta.
E, por fim, com semelhante doutrina, como se pode chegar à
unidade? Não vedes que ela já produziu seus efeitos reparadores? Poderia ser de
outro modo, de fato? Cada um define a felicidade a sua maneira, segundo seu
temperamento, sua idade, hábitos morais que a sociedade o faz tomar, sua
audácia ou timidez. E por que não seria assim? Quem pode ser juiz da felicidade
dos outros? Os instintos individuais não seriam a melhor regra?”
Nós declaramos francamente que não somos nem um
pouco comunistas dessa maneira. Pensamos que a passagem - que transcrevemos
integralmente para que nossos leitores tenham os dois raciocínios sob os olhos
e tenham melhores recursos para decidirem por si mesmos - pensamos que essa
passagem se baseia inteiramente em ideias errôneas.
Vamos dissecá-la e refutá-la do início ao fim.
Primeiramente, não compreendemos o que entendeis
por nação verdadeira. Para nós, a
nação é o conjunto de todos os indivíduos de um mesmo país. Não há então muitas
maneiras de interpretar a palavra nação,
e o adjetivo verdadeiro que adicionais
não pode ser, para nós, senão a representação de uma ideia absurda. Por nação
verdadeira entendeis apenas isso que
chamais de povo? Então já
demonstramos suficientemente vosso erro; não adicionaremos nada mais. Quereis
nos dizer que o filósofo, que o socialista não deve querer senão o que quer a
soberania do número? Nós não nos inclinamos mais a essa tola e ridícula
soberania. Quando um meio social falsificou todas as ideias, quando as simples
noções de verdadeiro e de falso foram desnaturadas, não se pode operar uma
regeneração humanitária a não ser em nome da ciência provada e demonstrada, e
não em nome de uma maioria ignorante e cega, que só sairá desse estado por uma
mudança da situação social. Quando mais tarde a operação tiver terminado, a
soberania do número não será mais a regra do homem; toda a humanidade obedecerá
à uma lei comum, não porque todos reconhecem seu acerto, mas porque este último
(o acerto) é demonstrado pela ciência, pela razão desenvolvida. Nossa soberania
será sempre a razão.
Perguntais se, por comunidade, nós entendemos “a organização social do ponto de vista da
igualdade”. Afirmamos que sim. Depois, adicionais: “não essa igualdade que conta por cabeça e que diz: o homem vale o
homem, porque essa não é justa”. E por que ela não é justa? Além disso, que
ideia atribuis à palavra justiça? Se
considerais as coisas sob o ponto de vista atual, sem dúvida é soberanamente
verdadeiro dizer: o homem não vale o
homem, uma vez que nem todos receberam uma educação completa, igual e
comum. Em outras palavras, enquanto as faculdades intelectuais e morais de uns
foram desenvolvidas, e as de outros permaneceram não cultivadas, se segue que
nem todos podem ter a mesma dose de inteligência, nem de moralidade; de onde a
conclusão de que hoje nem todos se valem. Mas quando a situação social garantir
a todos o desenvolvimento completo de todas as suas faculdades; quando, pela
organização do trabalho criteriosamente combinado, o homem puder fazer de tudo;
quando a atividade humana não for mais contida e obstruída, isto é, quando a
necessidade de pensar, de raciocinar, de conhecer, tiver recebido uma
satisfação completa; quando, enfim, os interesses materiais não sufocarem o
sentimento de simpatia, de benevolência, de amor, que é para o homem uma
necessidade real, não vedes então a possibilidade, mediante uma educação igual,
comum, de fazer com que o homem valha o homem? Vós negais a perfectibilidade!
Decretais então que o mal é eterno! Mas sabemos que tendes bom senso o bastante
para não sustentar semelhante absurdo.
O homem, por natureza, é essencialmente
aperfeiçoável. A história prova isso. A cada crise violenta, a cada modificação
da situação social, vê-se uma diferença nas suas ideias, seu caráter, seus
costumes, suas inclinações, seus hábitos, suas atitudes. Então, por meio de uma
situação que responde exatamente ao objetivo proposto, é possível dar ao homem
ideias, inclinações, em suma, qualidades que tendem todas à sua conservação. A
situação igualitária satisfaz completamente esse objetivo; nosso jornal
provará.
Vós afirmais a igualdade “que mede a recompensa pela boa vontade de cada um”, mas isso também
se baseia em um erro. Os homens terão todos a mesma vontade quando todos
receberem a mesma educação e forem todos colocados na mesma situação social.
Perguntais se nós “queremos que o trabalho seja feito em comum”. Certamente, nós
queremos isso. Perguntais se nós queremos “que
a criança, o velho e o doente sejam alimentados às custas do Estado”. Isso
não é bem o que queremos: queremos que todos, sem exceção e sem exclusão, se
assente na mesa comum, porque todos tem necessidades materiais a satisfazer, e
sem isso não podem ter uma garantia suficiente de satisfação.
Perguntais se nós queremos, enfim, “que ninguém suporte sozinho as perdas que
não dependem desse alguém evitar, e que a fortuna pública repare os infortúnios
individuais”. Uma vez que ninguém tem mais nada próprio, que nada é mais de
ninguém, ou que tudo é de todos, é evidente que ninguém experimentará perdas
individuais. Quando um infortúnio se manifestar, é a comunidade inteira que
será abalada e que trabalhará para sua reparação.
Perguntais se nós entendemos “por comunidade, essa vida mais íntima onde, no
que respeita ao casamento e à família, alguém se associa voluntariamente tanto
por necessidade de economia quanto por sentimento de fraternidade, e onde todos
os meios de existência seriam comuns”. Nós respondemos que não é assim que
entendemos a comunidade, cuja organização, além do mais, não tem nenhuma
relação com a associação que nos apresentais. A julgar por essa associação que
vosso jornal apresenta, nós estamos muito distantes de vós. “Os meios de existência seriam comuns”.
E entendeis, por meios de existência, os instrumentos de trabalho, isto é, as
ferramentas; muito bem. Mas o homem, ao mesmo tempo que é um instrumento de
consumo, é também um instrumento de trabalho, mais indispensável que as
ferramentas que usa. Ora, se entre dois homens se encontra um mais forte que um
outro, que produz menos, e que, entretanto, tem tantas necessidades quanto aquele
(o que não chega a ser tão incomum), então o menos forte será mais infeliz. Mas
esse ainda não é o melhor lado da medalha. Suponhamos (o que não é impossível)
que o fraco tenha, diferente do forte, uma família a alimentar com o módico
trabalho de seus braços. No que se torna a vossa pretensa comunidade de meios
de existência? Não é ela uma piada amarga? Uma piada atroz? E isso não é também
exatamente a ordem de coisas atual que mudais apenas o nome? Não faleis então
de fraternidade, pois ela não faria nenhum sentido em uma associação
semelhante.
Quanto ao sistema
de venda, não mais que aquele de troca
que quereis substituir e que consideramos como uma engrenagem igualmente inútil,
eles não figuram nem um pouco na nossa teoria. Cada comuna será suprida
abundantemente, pelas vias de transporte, sem a intervenção de vendedores, nem
trocadores, dos objetos necessários a todos os seus membros. Basta que a
necessidade seja revelada por cada uma para ser satisfeita instantaneamente e
com as mesmas condições.
Até agora, estaríeis de acordo conosco, se nós
abundássemos no vosso sentido, mas vós vos apiedais se nossas ideias de
comunidade forem mais longe; se nós sonharmos com essa era de ouro onde o trabalho não passa de uma agradável distração,
onde os frutos da terra são tão numerosos que não se poderá recusar inclusive
ao preguiçoso que se sente no banquete. Então, apiedai-vos à vontade, pois a
era de ouro que pintastes como um erro é o objetivo constante a que tendemos.
Sim, o trabalho, para o homem, não passará de uma agradável distração. E se não
tivesse que ser assim, o que significam então essas máquinas que fazem,
sozinhas, o trabalho de uma grande quantidade de braços? Por que se inventaria
essa multidão inumerável de mecanismos, uns mais engenhosos do que outros, se
não fosse para centuplicar o produto do trabalho, abreviar sua duração, e torná-lo
atraente suprimindo o que é penoso? Não perguntaremos se sois contra as
mecânicas, isso seria vos fazer injúria, pois sabeis tanto quanto nós que, se
elas são hoje um grande mal, elas serão um grande bem quando a sociedade for
organizada tal como deve ser, e o homem não precisar mais do que conduzi-las e
descobrir novas. Mas então queremos saber por que sois tão excitados em favor
da reforma industrial? Seguramente não é para deixar o trabalho tão
desagradável quanto já é hoje em dia, nem para torná-lo pior.
A palavra preguiçoso
não terá nenhum significado na língua da comunidade, assim como ela já não tem
na língua atual. O homem é um ser
essencialmente ativo; ele tem uma soma de atividade a exprimir; o objetivo
da ciência social é dar a essa atividade uma direção boa e não má; útil e não
nociva, nem inútil. Hoje ocorre o contrário. Os indivíduos exercem sua
atividade em pura perda, em coisas fúteis, insignificantes, de resultados
estéreis. Por quê? Porque foram dados maus exemplos de atividades, porque elas
são mal direcionadas, porque, enfim, elas se encontram em um meio social
vicioso, ao invés de um meio social bom, um meio em que não se teria que fazer
e nem se teria visto fazerem senão coisas úteis, e que nada poderia extraviá-las.
Desse modo, as palavras preguiça, vagabundagem e ociosidade são vazias de sentido, a menos que se negue o movimento
incessante que se manifesta na natureza e, por consequência, no homem, que não é senão uma maneira de ser dessa natureza. Logo, não existem preguiçosos,
vagabundos e nem ociosos, mas seres ativos que os vícios da organização social
fazem com que se consumam em atos inúteis, e que uma boa sociedade os deixaria
se exprimirem em atos úteis.
Estais convencidos de que somos, como vós, homens práticos antes de tudo, e depois,
acrescentais, “as teorias não tem valor,
para nós, a não ser enquanto realizáveis”. Se entendeis por homens práticos aqueles que
querem aplicar seus princípios imediatamente, por pequenas frações, na
sociedade atual, não partilhamos de vossa opinião: obstáculos inumeráveis se
opõem. É bem tolo, bem imprudente, quem ousar tentar. Não vimos os
saint-simonianos se quebrarem contra esse rochedo? Não vimos a inutilidade
prática dos ensaios de Owen? E não
vemos que os esforços desse generoso amigo da humanidade não alcançam nenhum
resultado aparente? Ao invés de se consumir em milhões de tentativas
infrutíferas, seria melhor alcançar o objetivo se dedicando a uma propaganda
ativa e ampla. Assim, dizemos: nós somos
homens de propaganda antes de tudo; pois sentimos a urgência de convicções fortes e inabaláveis.
Para nós, também, as teorias não tem valor a
não ser que sejam realizáveis, e se não estivéssemos convencidos de que esse é
o caso da nossa, seria insensato que nos dediquemos a propagá-la para que
nossos irmãos a adotem. A história nos transmitiu os nomes de muitos povos que
a praticaram; mas mesmo se não tivéssemos a nosso favor essas autoridades
irrecusáveis, não estaríamos menos convencidos: continuaremos convencidos até
que vós provais, pela ciência, que a ciência é falsa. Então, não atenderemos o
que nos pedis, que a “utopia vista, nós a
rejeitemos de nosso espírito”.
Continua no próximo número” [nota do
tradutor: infelizmente esse número não saiu, porque o jornal foi descontinuado
devido à repressão].
Resposta
ao jornal La Fraternité
[publicado em L'Humanitaire, Nº 2, agosto de 1841]
"É penoso ser levado contra a vontade a um
terreno que se queria evitar. Não é que a discussão nos assuste, ao contrário,
nós a provocamos, porque só ela pode nos esclarecer e trazer de volta a unidade
na doutrina. Mas nós desejávamos que ela fosse sábia, conscienciosa e sem
paixão. O jornal La Fraternité, cuja
linguagem é pouco harmoniosa com o título, ultrapassou, com relação a nós, os
limites da polidez. Não tivemos jamais a ideia de atacar essa publicação do
comunismo, pela qual temos simpatias; mas é ela que nos ataca, e ela faz isso
com um tom tão estranho que não podemos nos eximir de responder, porque não queremos
ficar, ao olhos dos comunistas, sob o peso de acusações tão graves. Vamos dar a
nossos agressores uma lição de sabedoria e prudência, e trataremos de fazê-los
compreender que a discussão fria é mais frutífera do que o escândalo.
La Fraternité nos acusa de sermos “os primeiros a começar a liça, não para
combater os adversários do comunismo, mas para atacar as próprias publicações
comunistas”. A seguir, acrescenta que
nós começamos por acusar o jornal Le
Travail por suas tendências espiritualistas, e que é seu dever defender as ideias de Le Travail, que também são as dele. Ao
criamos L'Humanitaire, não pensamos
que nos acusariam, mais tarde, de poupar os inimigos do comunismo, e de atacar
seus defensores. O redator de La
Fraternité, evidentemente, colocou isso em sua cabeça, e o que podemos
dizer de mais militante em seu favor é que ele julgou sem ter lido. De fato, se
tivesse lido nosso artigo sobre Le
Travail, ele teria visto que, longe de atacá-los,
nós demos a nossos irmãos de Lyon conselhos ditados por uma convicção profunda
que era completamente amigável. Os redatores de Le Travail nos responderam, e nós os felicitamos, com essa
amenidade, essa simpatia que sempre deve caracterizar os apóstolos da
verdadeira doutrina. Quanto à acusação endereçada a nós de não combater os adversários do comunismo, os dois números de
nosso jornal a reduz a seu justo valor. Agora, vamos discutir com La Fraternité que toma, sem que tenha sido solicitado a isso, a
defesa de Le Travail, “a obrigação de
repudiar com todas as forças as interpretações
anti-naturais, anti-sociais e monstruosas que o jornal L'Humanitaire dá à
doutrina comunista”.
“Apesar
de suas boas intensões”, diz ele, “os
redatores desse jornal concluem diretamente contra os princípios da igualdade, da
liberdade e da fraternidade que eles querem, como nós, propagar.
Se cada homem consiste no organismo
material, como pretende o jornal, esse organismo deve ser tomado como
medida do homem e marcar seu lugar entre seus semelhantes. Ora, vemos os homens
divididos em grandes e pequenos, em fortes e fracos, materialmente falando. E
se tomarmos as demonstrações palpáveis e visíveis que L'Humanitaire crê serem as únicas demonstrações rigorosas, então os
homens são desiguais entre si.
´Com que direito´, o gigante e o atleta questionarão, ´quereis nos
fazer crer que estamos no mesmo nível do anão e do doente, nos rebaixando a sua
pequenez e fragilidade, uma vez que a natureza visível fez de nós seres grandes
e fortes? Nós fomos criados para ser senhores, e eles, escravos. É a lei de
nosso organismo.´
E L'Humanitaire não poderá contradizê-los, visto que o organismo é sua regra.
Porém, L'Humanitaire, cheio de boas intenções, provavelmente responderá: ´a fraternidade
quer que façais, em favor dos frágeis e pequenos, o sacrifício de vossa
grandeza e de vossa força´.
O que dizer? Deixemos o gigante e o atleta responderem: ´não nos
ensinais que o único motor das ações humanas é a utilidade? Ora, seria útil para nós nos sacrificar em benefício dos
mais fracos do que nós? O que receberíamos em troca disso que daríamos a eles?
O que é fraternidade? Os homens não são mais irmãos entre si do que são irmãos
das árvores e das pedras. Assim como as árvores e as pedras, o homem é uma agregação
de moléculas materiais, e tudo que não é ele, tudo que está fora de seu
organismo, separado de seu corpo, é estranho para ele. O homem corta as pedras
e come as frutas. Ele pode, do mesmo modo, sem escrúpulos, explorar os seres
com rosto humano que estão à sua volta. E não digais que nossas necessidades
morais não estariam satisfeitas quando tornarmos infelizes aqueles que vós
chamais de semelhantes. Nossa moral é, repetimos convosco, a utilidade, e se
nos for útil comer os homens, nós comeremos.´
L'Humanitaire, assustado com essa linguagem, tentará murmurar ainda: ´mas o homem é
um ser fatalmente social´. Se vós assumis a fatalidade como princípio, ouçamos
novamente esses homens fortes e vigorosos que nós supomos que deixais à
vontade: ´a fatalidade quer que dominemos, pilhemos, queimemos, devoremos, e se
somos os mais fortes, a nossa própria força é uma prova de nosso direito. Se
fazemos, com isso, coisas que vos desagradam, não nos culpais, nós não somos
livres, mas instrumentos da fatalidade.´
Essas poucas linhas indicam algumas das tristes consequências do
sistema materialista, utilitário e fatal em que L'Humanitaire se
baseia.”
O que significam esse gigante e esse atleta? Os
atos que vós os fazeis cometer tem alguma relação com aqueles do homem
razoável? De um homem que tem o mínimo de bom senso? Eles têm todas as
características do selvagem esfomeado, ou de um louco delirante. Como vós vos
deixais acompanhar de seres tão singulares? E aonde pretendeis conduzi-los? Se
não para casinhas, é certamente para uma selva. Como não somos nada desejosos
de nos acompanhar com gente que entende tão pouco de brincadeiras, e nem de ir a
um país que, a julgar por seus habitantes, deve ser mais perigoso do que
recreativo, vos deixaremos partirdes sozinhos, e apenas pediremos de vós uma
descrição quando retornarem. Quanto a nós, nos transportaremos, por um momento,
para a sociedade futura, da qual nós desenvolvemos a teoria, e ali colocaremos
o gigante, o atleta, o anão e o doente, aos quais devolvemos a razão que
tínheis retirado deles tão impropriamente. Vejamos se nós não seremos mais
felizes do que vós na nossa observação, e se nós não obteremos melhores resultados.
Primeiramente, devemos notar que os quatro homens, cujas faculdades receberam
um desenvolvimento completo, são perfeitamente iguais, não iguais em altura e em força, mas iguais quanto à satisfação de suas necessidades e no
exercício de suas faculdades, pois cada
um consome segundo os seus apetites, e trabalha segundo as suas forças. Estando
igualmente satisfeitos os órgãos tanto dos fortes quanto dos fracos, segue-se a mais perfeita igualdade na satisfação
normal dos órgãos de cada um. Logo, nossos quatro personagens são
consequentemente iguais sem serem igualmente altos nem igualmente fortes entre
si. Portanto, eles são livres sem presumir
que a natureza teria criado uns senhores e outros escravos. Eles praticam a
fraternidade no sentido mais amplo da palavra. E ainda que eles saibam que
“assim como as árvores, o homem é uma agregação de moléculas materiais”, não
lhes ocorre a ideia de fratenizar com as
árvores e as pedras, e por mais tolos que se suponha que sejam, eles
reconhecem as funções, as relações, as propriedades específicas dos diferentes
modos de ser da natureza. Eles não confundem o reino mineral ou o reino vegetal
com o reino animal. Em cada um desses três reinos, eles descobrem também diferentes
maneiras de ser. Por exemplo, os mesmo órgãos, as mesmas propriedades, as
mesmas relações não são comuns no reino mineral: entre o ouro e o ferro; no
reino vegetal: entre a rosa e o carvalho; no reino animal: entre o homem e o
elefante. Eles não ignoram que entre esses seres de diferentes organizações, há
quem absorve outros; que no reino animal, por exemplo, certo peixe se nutre de
certo outro peixe, certo quadrúpede, de certo outro quadrúpede, certa ave de
certa outra ave. Mas jamais ouviram dizer que os animais de uma mesma espécie
se devoram, menos ainda que o homem come
o homem (*).
[(*){Nota de L'Humanitaire:} Aqui vão contrapor os antropófagos, os
náufragos, as vítimas da fome, etc., mas, nesse caso, o homem não está mais em
seu estado normal; ele não tem mais a satisfação de suas necessidades, condição
indispensável da bondade de seus atos.]
Esses quatro homens não vivem sem moral, como
se pode imaginar. Eles têm uma, notória por sua simplicidade: é a sabedoria ou a razão desenvolvida; e se
resume nessa máxima, segundo a qual a
sociedade deve ser útil ao indivíduo, assim como o indivíduo deve ser útil à
sociedade, daí: solidariedade.
Eles [os quatro personagens] assumem que o homem é um ser fatalmente social, que
ele é sempre o que deve ser numa dada circunstância, ou que ele é aquilo que o
meio onde se encontra faz. Eles não podem compreender como, em uma sociedade guiada pela razão, onde, por
consequência, todos os homens serão fatalmente razoáveis, seria possível dominar, pilhar, queimar e devorar. Isso os ultrapassa. A lógica material os torna faltos disso.
Porém, eles não puderam se conter ao ouvir
sobre tal erro que eles não mais compartilhavam após terem chegado à nova
sociedade. Eles decidiram se transportar de volta para a velha sociedade, para
desenganar seus irmãos sobre a importante questão do livre arbítrio. Ao chegarem, ocorreu entre o gigante e um homem da ordem, isto é, da desordem social atual, a seguinte conversa:
- “O que!” - disse o homem ao gigante - “Tu
negas que o homem seja livre?! Mas quando eu delibero, quando escolho entre
dois objetos, eu faço evidentemente um ato de liberdade.”
- “Nada disso”, responde o gigante, “pois não
há efeito sem causa, e o homem não é senão o instrumento da fatalidade.”
- “Mas”, replica imediatamente o outro, “se eu
quero dar um passo adiante, não sou livre para dar ou de não dar?”
- “Não, sem dúvida, tu não és livre, pois, vou
repetir, não há efeito sem causa, e se tu dás um passo adiante, tua vontade é
determinada pela necessidade de avançar, de se mover.”
- “Eu não tenho nenhuma necessidade de dar um
passo, nem de me mover. Eu avanço e me movo unicamente com a intenção de te
provar que eu sou livre.”
- “Nesse caso, é o desejo de me provar que tu
és livre que te determina a agir. Assim, tu não foste senão o escravo do teu
desejo, que é a causa de fazer a ação, que é o efeito. Logo, não há liberdade.
É a mesma coisa do primeiro até o último de nossos atos.”
- “Uma vez que o homem não é livre”, interviu
um interlocutor, “não há então culpado? Todos os maiores malfeitores que
pesaram e ainda pesam sobre a terra são então inocentes?”
- “Sem dúvida, eles são inocentes.”
- “E com um sistema assim, onde queres chegar?
É preciso então que eu fique imóvel diante do assassino que pressiona uma faca contra
minha garganta? Que eu espere tranquilamente a morte, considerando que quem me
mata não é culpado?”
- “De fato, o homem que te mata não é livre
para não te matar, assim como tu não és livre para não se defender e para não
conservar tua existência ameaçada. Trata-se de dois interesses em luta: o do
assassino, que o leva a te assassinar para roubar teu dinheiro, ou satisfazer
sobre ti sua vingança; o teu, que te obriga a te defender para conservar tua
vida e teu bem.”
- “Mas”, objeta ainda o outro, “se nós dois
somos inocentes, onde está o culpado? Não há necessariamente um, onde quer que
se encontre?”
- “O
culpado! É a sociedade, ou melhor, é a má
organização social: eis aí o único culpado, não busques em outro lugar. Apressa-te,
portanto! Trabalha para a construção de uma nova ordem social! Organiza-a de
maneira que o mal não possa se reproduzir, e, para isso, suprima radicalmente a
sua causa - pois, acabas de ver, a causa é sempre inevitavelmente seguida pelo
efeito: enfim, coloque o homem numa
situação em que ele não possa fazer senão o bem, e em que lhe seja impossível
fazer o mal.”
Assim falava o gigante, cujo pensamento era comum ao atleta, ao anão e ao doente. Todos os quatro estavam de
acordo, viviam livres, iguais e fraternos.
Veja o quanto a humanidade é aperfeiçoável! De brutos e insensatos que eram,
esses homens se tornaram muito razoáveis. Nós os devolvemos, agora, para vossas
mãos, com a certeza de que eles não se prestarão mais ao papel ignóbil que vós
os fizestes jogar com relação a nós.
Continuemos a citar:
“O
sistema materialista triunfa depois de dez anos, com gente como Guizot, Humann
e todos aqueles que promovem os interesses materiais e o fato consumado. Quais
foram os resultados? O egoísmo, o isolamento, a guerra, a concorrência, a
miséria e a fome. Cada um se ocupa de si mesmo, e por terem perdido a ideia de
um laço que o prenda a seus semelhantes, esmaga sem escrúpulo todos os que
estão em seu caminho. O dever está hoje na satisfação do interesse privado, e
quem se conduz bem, quem se conduz de modo a se enriquecer, deve conquistar sua
riqueza pela ruína de centenas de rivais!”
O que gente como Guizot e Humann têm em
comum conosco? Aqui, temos necessidade de crer que não quereis fazer uma
insinuação injuriosa. Poderíamos responder que se “o sistema materialista triunfa depois de dez anos, com gente como
Guizot, Humann e todos aqueles que promovem os interesses materiais e o fato
consumado”, o espiritualismo triunfa -
sim, ele - depois de séculos, com os papas, os jesuítas e todos esses
promotores do obscurantismo, da ignorância e dos fatos consumados por eles, que
são os massacres que ensanguentaram a terra em nome do espírito. Mas nós não comparamos vós a estes últimos, porque
sabemos que vossa doutrina não é a deles. E vós não podeis, de boa fé, nos
comparar aos primeiros, porque não ignorais que a doutrina deles não é a nossa.
No entanto, a fim de não restar qualquer dúvida em vós, assim como em todos os
comunistas que podem acreditar nessa acusação, nós vamos explicar a diferença
que há entre nós e uma seita de homens chamados utilitários, que confundis conosco.
Os utilitários são gente desnaturada que
considera seus semelhantes como instrumentos de seus prazeres. Eles querem
gozar às custas de tudo o que os circunda; e eles não valorizam os gozos senão
a medida em que são sua posse exclusiva e que outros não podem obtê-los: quanto
mais os outros sofrem, mais eles gozam. Sua felicidade é uma felicidade de comparação. Entre eles, a
ilusão toma o lugar da realidade. Por exemplo, o luxo, as modas e todas as futilidades inacessíveis à maioria,
são, para sua imaginação, alegrias infinitas. Quando um tipo de roupa, de
móvel, etc. vira moda, eles se trocam bem rápido para se distinguir da multidão,
e, nisso, eles não consideram nunca o conforto, a saúde, mas o amor pelas exclusões e distinções.
O marquês de Sade, o infame autor de Justine,
é o modelo do utilitário. Ninguém levou tão longe esse sistema interno. Ele
juntou a prática à teoria. Em seus excessos de devassidão, sua suprema
felicidade era forçar um instrumento cortante no corpo da infeliz vítima de sua
torpeza, ver correr seu sangue, ou vê-la sofrer de alguma outra maneira. Detido
por um feito semelhante, ele decorou sua prisão conservando ali vestimentas
bordadas, trançadas e diversos objetos que sabia serem uma posse rara e que,
por isso, satisfaziam a sua imaginação. Desse modo, como se vê, o sistema utilitário se baseia nessa
horrível máxima segundo a qual alguns
homens privilegiados são feitos para explorar seus semelhantes, gozar de suas
pessoas, assim como de suas produções, e se afundar em todos as devassidões de
uma organização depravada.
Agora, perguntamos ao jornal La Fraternité se há alguma relação entre
a nossa doutrina e as monstruosidades que acabamos de falar. Pedimos a ele que
não confunda, e que nos leia antes de nos julgar. Então ele não dirá mais que nossos
princípios tem como resultado o egoísmo,
o isolamento, a guerra, a concorrência, a miséria e a fome.
La fraternité nos pergunta “o que se torna a amizade, o patriotismo, o
desinteresse, a abnegação e todas as virtudes quando reduzidas à condição de
preconceito?” Nós não temos nada a adicionar ao que já dizemos sobre essas
palavras no nosso artigo em resposta ao jornal L´Atelier.
Após minar
nossa doutrina, La Fraternité nos
expõe a sua: são, sem dúvida, “os
verdadeiros princípios que ele quer reafirmar”.
“Ah!”, exclama
ele, “voltemos, agora, à sã moral! Não, o
homem não existe por si mesmo; não, o homem não é o resultado brutal e
desinteligente dos jogos do acaso, nem a combinação de algumas moléculas. O
corpo do homem não é senão uma vestimenta que encerra uma inteligência, filha
da inteligência superior e eterna, operária, criadora e conservadora do mundo.
O homem vê seus semelhantes como filhos de Deus iguais a ele, e, a
esse título, os ama como irmãos, e, a esse título, os considera como iguais. Do
mesmo modo que, para nós, penetrados do sentimento da igualdade, o rico,
coberto com um brilhante manto, e o pobre, esfarrapado, são iguais apesar da
diferença de suas vestimentas, assim também, o homem de corpo frágil é igual ao
homem com membros vigorosos; pois esse corpo palpável e visível não é senão o
envelope da inteligência imaterial, imponderável e imensurável.
O homem, sendo inteligência, é livre e, por consequência, soberano
para escolher entre o bem e o mal e, portanto, para se aperfeiçoar. Daí o
princípio da liberdade, do dever e da lei do progresso, princípios e leis que nos
explicam o mal, nos levam a evitá-lo, e nos levam a marchar de era em era nos caminhos
da perfectibilidade e do melhoramento.
Amor, liberdade, igualdade, dever, virtude, progresso,
civilização, todos os princípios vitais do homem e da sociedade estão no
espiritualismo. Deus, disse um filósofo cuja doutrina não conta totalmente com
nossa aprovação, mas com quem ficamos felizes em concordar nesta questão, não
se prova, mas ele prova tudo! Cremos então firmemente nele, e essa fé nos
fortalece nos verdadeiros princípios.”
Para nós, a
moral é a arte de viver em sociedade; e a sã moral, a que nós defendemos, é
a arte de viver feliz em sociedade.
Dizeis: “o
homem não existe por si mesmo, o homem não é o resultado brutal e
desinteligente dos jogos do acaso, nem a combinação de algumas moléculas, mas
seu corpo não é senão uma vestimenta que encerra uma inteligência, filha da
inteligência superior e eterna, operária, criadora e conservadora do mundo.” O
acaso não é senão uma palavra vazia de sentido. O homem é, independentemente do que dizeis, a combinação de algumas moléculas. Ele, evidentemente, é o
resultado da matéria que, então, se encontra disposta de modo a produzir um
organismo que nós chamamos humano. Não tendes a mesma opinião; segundo vós, o
homem seria o resultado de uma “inteligência
imaterial, imponderável e imensurável”, ou seja, de uma coisa que não é material, que não tem peso e nem extensão. E vós compreendeis isso! Ah! Como sois
felizes! Quanto a nós, não compreendemos quando escreveis com a tinta
imaterial, imponderável e imensurável. Dais a essa inteligência uma vestimenta,
um envelope, mas, em boa lógica, como envelopar uma coisa que não tem forma nem
extensão? Vós a fazeis criar e conservar o mundo. O que é criar? É fazer alguma
coisa do nada, vós respondeis. Mas aqui não temos nada a replicar. O que é conservar? É agir de tal ou qual jeito,
sobre tal ou qual objeto. Aqui também não encontramos réplica. Mas a graça vem em nosso auxílio, e começamos
a entender como uma inteligência imaterial pode agir sobre a matéria, e entender
como nada pode agir sobre alguma coisa. Antes de nos render totalmente,
temos ainda outra objeção a vos fazer.
Considerais os homens como animados pela mesma
inteligência imaterial pela qual eles já seriam todos iguais, independentemente
das diferentes condições materiais. E no entanto, vós reivindicais a igualdade.
Ela é reivindicada para o organismo,
para o envelope palpável e visível?
Mas deveria ser indiferente para a inteligência imaterial que a matéria, que
lhe serve de vestimenta, esteja em tal ou qual condição. Não se pode admitir o
contrário sem expor a inteligência à ação e à mercê de seu envelope, sem a materializar. O que quer que se faça,
ela permaneceria invariavelmente aquilo que ela é. Por que então se ocupar do
vil envelope que não faz nem calor nem frio, e que poderia desprezar?
Ocupemo-nos então da pesquisa de uma organização social baseada no espírito, onde
o “homem verá seus semelhantes como
filhos de Deus, e onde, a esse título, ele os considerará como iguais”, já que “amor, liberdade, igualdade, dever, virtude, progresso, civilização,
todos os princípios vitais do homem e da sociedade estão no espiritualismo”.
Há incrédulos capazes de tudo; eles poderão contestar qualquer um desses
princípios e nos dizer que dever,
progresso e civilização são
palavras vazias de sentido; mas
quando nós os fizermos compreender que
Deus não se prova, mas prova tudo, então
eles acreditarão firmemente nele, e essa fé lhes fortalecerá nos verdadeiros
princípios.
Mudemos de tom mudando de tema, e tratemos de
sair das mãos de La Fraternité, retornando
ao nosso ângulo. Ele não quer que desejemos “uma era em que o homem viajará continuamente para operar a mais
íntima mistura da raça humana”. Depois do que, ele acrescenta: “O que é essa pretensa mistura senão a
promiscuidade mais brutal, a mais luxuriante negação da família! O que é uma viagem perpétua que deve livrar o homem do
contato diário com os mesmos seres
senão a negação da fraternidade, que L'Humanitaire invoca, e a realização dessa lamentável balada do judeu errante, que nos representa a apavorante tristeza de um homem
condenado a correr eternamente pelo mundo, sem poder pousar sua cabeça sob um
teto amigo, apertar a mão de um irmão, nem descansar das fadigas da vida no
seio de uma família querida! Quem de nós, ao ouvir em sua infância essa estória
lúgubre, não choraria pelo isolamento desse viajante forçado, que atravessa as
eras como se atravessasse um vasto deserto?! Quem não se lamentaria de não ter
nenhuma companhia nem um amigo?! E é essa balada, a mais desoladora idealização
do isolamento no qual os homens tem passado até nossos dias, que L'Humanitaire quer nos fazer considerar como modelo de
felicidade e perfeição.”
Há nessa passagem muita poesia, alguns termos
cuja aplicação é pouco fraternal e, sobretudo, ignorância completa de nossa
doutrina. O que significam essas palavras: a
promiscuidade mais brutal, a mais luxuriante negação da família, senão que
o jornal La Fraternité inventa ele
próprio monstros para se dar o prazer de combater? Não buscaremos refutar tais
insinuações. Os fatos logo virão a reduzi-las a seu justo valor. Nós mantemos aquilo
que dissemos na resposta ao jornal L´Atelier.
A questão da família e do casamento exige, por sua importância, e para ser bem
compreendida, desenvolvimentos extensos. Esses desenvolvimentos serão colocados
no lugar que lhes convés nos artigos da doutrina. Enquanto isso, os comunistas
não se enganarão, e aqueles que conhecem nossa doutrina sabem o quanto ela é
antípoda da promiscuidade e da depravação.
O jornal a que estamos respondendo pretende que
as viagens contínuas, que tem por objetivo preservar o homem do contato
perpétuo dos mesmos seres, são a negação
da fraternidade. Se tivesse lido a frase completa de L'Humanitaire, teria visto que, longe de destruir a fraternidade,
as viagens a consagram em toda a sua plenitude, tornando impossível o apego individual que é positivamente a
negação da lei da atração uma e universal.
O jornal La
Fraternité diz, no mesmo número: “A
fraternidade une todos os homens em uma íntima comunidade de gozos e de penas
equitativa e fraternalmente compartilhadas, e confunde os interesses de cada um
no sentimento e interesse comum, de tal modo que, não tendo senão uma só
vontade, um só objetivo, um só desejo, todos se unem na aspiração comum e em
uma comunhão perfeita.” Essa definição da fraternidade também é a nossa, é
assim que nós entendemos esse princípio. Até aí, nós estamos de acordo, mas não
estamos mais quando examinamos as vossas condições de realizá-la. Não aceitando
as viagens contínuas, vós particionais o princípio e, sem se darem conta, vós
os dividis em muitas partes: fraternidade
doméstica, fraternidade da cidade, fraternidade de todos os homens, o que o
reduz a quase nada quando se passa por todas essas etapas. A fraternidade não
tem graus, não mais do que a unidade, ela não pode ser separada de si própria.
Assim, onde quer que se pratique esse princípio, não percebeis a possibilidade
de que o judeu errante repouse sua cabeça
sob um teto amigo, aperte a mão de um irmão? Perceba que fazeis o judeu
errante não se sair melhor do que o gigante e o atleta. Então, deixai em paz
esses seres singulares.
Enfim, L´Fraternité
termina seu artigo nos advertindo que, se perseverarmos no caminho que abre
nosso primeiro número, daremos “ganho de
causa a todos os detratores interessados em representar o comunismo como uma
doutrina brutal e anti-social”. Respondemos esse jornal dizendo que não há
nada de comum entre nossa doutrina e uma doutrina brutal e anti-social. Quanto
aos detratores interessados, o que podem
ao comunismo não é forte o suficiente para repelir a lama que lhes será lançada
à face.
Nossa tarefa está cumprida, e terminamos
declarando ao redator de La Fraternité
que nossa intenção, ao respondê-lo, não foi senão a de restabelecer os
princípios que ele tinha mal interpretado, equivocado de os ter entendido; mas
que, de resto, nós não quisemos nem um pouco fazer disso uma guerra pessoal. Se
as ideias dele não são as nossas, nossas simpatias fraternas por ele não
diminuíram, já que nós não combatemos senão erros. Que ele possa abjurar rápido
e reconhecer a verdade!”
Tradução do francês por humanaesfera, a partir da versão disponibilizada pela biblioteca digital Gallica,
da Biblioteca Nacional da França.
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