domingo, 6 de agosto de 2017

Trechos de Oscar Wilde em "A alma do homem sob o socialismo" (1891)

Alguns trechos do texto de Oscar Wilde que está neste link


[CONTRA A CARIDADE]


"As emoções do homem são despertadas mais rapidamente que sua inteligência; e, como ressaltei há algum tempo em um ensaio sobre a função da crítica, é bem mais fácil sensibilizar-se com a dor do que com a idéia. Conseqüentemente, com intenções louváveis embora mal aplicadas, atiram-se, graves e compassivos, à tarefa de remediar os males que vêem. Mas seus remédios não curam a doença: só fazem prolongá-la. De fato, seus remédios são parte da doença.

Buscam solucionar o problema da pobreza, por exemplo, mantendo vivo o pobre; ou, segundo uma teoria mais avançada, entretendo o pobre.

Mas isto não é uma solução: é um agravamento da dificuldade. A meta adequada é esforçar-se por reconstruir a sociedade em bases tais que nela seja impossível a pobreza. E as virtudes altruístas têm na realidade impedido de alcançar essa meta. Os piores senhores eram os que se mostravam mais bondosos para com seus escravos, pois assim impediam que o horror do sistema fosse percebido pelos que o sofriam, e compreendido pelos que o contemplavam. Da mesma forma, nas atuais circunstâncias na Inglaterra, os que mais dano causam são os que mais procuram fazer o bem. Por fim presenciamos o espetáculo de homens que estudaram realmente o problema e conhecem a vida - homens cultos do East End - virem a público implorar à comunidade que refreie seus impulsos altruístas de caridade, benevolência e coisas desta sorte. Fazem-no com base em que essa caridade degrada e desmoraliza. No que estão perfeitamente certos. A caridade cria uma legião de pecados.

E há mais: é imoral o uso da propriedade privada com o fim de mitigar os males horríveis decorrentes da instituição da propriedade privada. É tão imoral quanto injusto.
[...]
Freqüentemente ouvimos dizer que os pobres são gratos pela caridade. Decerto alguns são gratos, mas nunca os melhores dentre eles. São ingratos, insatisfeitos, desobedientes e rebeldes.

Têm toda razão em o serem. Para eles, a caridade é uma forma ridícula e inadequada de restituição parcial, ou esmola piedosa, em geral acompanhada de alguma tentativa por parte da alma apiedada de tiranizar suas vidas. Por que deveriam ser gratos pelas migalhas que caem da mesa do homem rico? Deveriam é estar sentados a ela, e já começam a se dar conta disso.

Quanto à insatisfação, aquele que não se sentisse insatisfeito com essa condição inferior de vida seria um perfeito estúpido. A desobediência é, aos olhos de qualquer estudioso de História, a virtude original do homem. É através da desobediência que se faz o progresso, através da desobediência e da rebelião. Às vezes elogiam-se os pobres por serem parcimoniosos. Mas recomendar-lhes parcimônia é tão grotesco quanto insultuoso. É como aconselhar a um homem que esteja passando fome que coma menos. Que um trabalhador do campo ou da cidade usasse de parcimônia, seria absolutamente imoral. Um homem não deveria estar pronto a mostrar-se capaz de viver como um animal mal alimentado. Deveria recusar-se a viver assim, e deveria ou roubar ou viver às expensas do Estado, o que muitos consideram uma forma de roubo. Quanto a pedir esmolas, é mais seguro pedir do que tomar, mas é bem mais digno tomar do que pedir. Não: um homem pobre que seja ingrato, perdulário, insatisfeito e rebelde possui decerto uma personalidade plena e verdadeira. Constitui, de qualquer forma, um protesto sadio. Quanto aos pobres virtuosos, é natural que deles se tenha piedade, mas não admiração. Fizeram um acordo secreto com o inimigo e venderam seus direitos inatos em troca de um péssimo prato de comida. Devem também ser muito tolos. Posso compreender que um homem aceite as leis que protegem a propriedade privada e admita sua acumulação, desde que nessas circunstâncias ele próprio seja capaz de atingir alguma forma de existência harmoniosa e intelectual. Parece-me, porém, quase inacreditável que um homem cuja existência se perdeu e abrutalhou por força dessas mesmas leis possa vir a concordar com sua vigência."


[A PROPRIEDADE PRIVADA DESTRÓI O VERDADEIRO INDIVIDUALISMO]

"A admissão da propriedade privada, de fato, prejudicou o Individualismo e o obscureceu ao confundir um homem com o que ele possui. Desvirtuou por inteiro o Individualismo. Fez do lucro, e não do aperfeiçoamento, o seu objetivo. De modo que o homem passou a achar que o importante era ter, e não viu que o importante era ser. A verdadeira perfeição do homem reside não no que o homem tem, mas no que o homem é. A propriedade privada esmagou o verdadeiro Individualismo e criou um Individualismo falso. Impediu que uma parcela da comunidade social se individualizasse, fazendo-a passar fome. E também à outra, desviando-a do rumo certo e interpondo-lhe obstáculos no caminho. De fato, a personalidade do homem foi tão completamente absorvida por suas posses que a justiça inglesa sempre tratou com um rigor muito maior as transgressões contra a propriedade do que as transgressões contra a pessoa, e a propriedade ainda é a garantia da cidadania plena. Os meios indispensáveis à obtenção de dinheiro são também muito aviltantes. Numa sociedade como a nossa, em que a propriedade confere distinção, posição social, honra, respeito, títulos e outras coisas agradáveis da mesma ordem, o homem, por natureza ambicioso, fez do acúmulo dessa propriedade seu objetivo, e perseguirá sempre esse acúmulo, exaustivo e tedioso, ainda que venha a obter bem mais do que precise, possa usar ou desfrutar, ou mesmo que chegue até a ignorar quanto possui. O homem irá se matar por excesso de trabalho com o fim de garantir a propriedade, o que não é de surpreender, diante das enormes vantagens que ela oferece. É de lamentar que a sociedade, construída nessas bases, force o homem a uma rotina que o impede de desenvolver livremente o que nele há de maravilhoso, fascinante e agradável - rotina em que, de fato, perde o prazer verdadeiro e a alegria de viver. Nas atuais condições, o homem se sente também muito inseguro. É possível que um comerciante riquíssimo se encontre - e em geral se encontra - a todo instante da vida à mercê de coisas que lhe escapam ao controle. Quando o vento sopra um nó a mais, ou o tempo muda de repente, ou ocorre algum fato insignificante, poderá ver o navio ir a pique, enganar-se nas especulações e se descobrir em meio à pobreza - a posição social por água abaixo. Nada poderia prejudicar um homem a não ser ele próprio. Nada poderia lesá-lo. O que um homem realmente tem, é o que está nele. O que está fora dele deveria ser coisa sem importância.

Abolida a propriedade privada, haveremos de ter o Individualismo verdadeiro, harmonioso e forte. Ninguém desperdiçará a vida acumulando coisas ou à cata de símbolos para elas. Haverá vida. Viver é o que há de mais raro neste mundo. Muitos existem, e é só."

"O egotista é aquele que impõe exigências aos outros, e o Individualista não desejará tal coisa, pois não terá prazer nela. Quando o homem tiver compreendido o Individualismo, terá também compreendido a solidariedade e a praticará livre e espontaneamente. Até hoje dificilmente o homem tem cultivado a solidariedade. Ele é solidário apenas na dor, e a solidariedade na dor não é a forma mais elevada de solidariedade.

Toda solidariedade é pura, mas na dor tem sua forma menos pura. Está maculada pelo egotismo. Está inclinada a se tornar mórbida. Há nela um certo temor por nossa própria segurança. Temos medo de que nós próprios venhamos a ficar como o leproso ou o cego, e ninguém se importe conosco. Além do mais, tal solidariedade é muito limitada. Deveríamos ser solidários com a vida em sua totalidade, não apenas na dor e na doença, mas também na alegria, na beleza, na energia, na saúde e na liberdade. A solidariedade mais ampla é, naturalmente, a mais difícil: exige maior altruísmo. Qualquer um pode se sentir solidário na dor sofrida por um amigo, mas é preciso uma natureza muito superior - a natureza de um verdadeiro Individualista - para se sentir solidário no êxito alcançado por um amigo.

Nos dias de hoje, a pressão da concorrência e luta por oportunidades torna rara essa solidariedade, que é também sufocada pelo ideal moral de uniformização e conformação à norma, o qual prevalece em toda parte, mas que talvez seja mais condenável na Inglaterra.

Sempre haverá, é claro, a solidariedade na dor. É um dos instintos primários do homem.

Os animais que têm individualidade, os animais superiores, por assim dizer, compartilham-na conosco. Mas cumpre lembrar que, se a solidariedade na alegria causa mais alegria entre nós, a solidariedade na dor, por sua vez, não reduz o sofrimento no mundo. Pode tomar o homem mais capaz de suportar o mal, embora o mal permaneça. A solidariedade no definhamento que precede a morte em certas moléstias, não pode debelá-lo: isto cabe à ciência. E quando o Socialismo tiver resolvido o problema da miséria e a ciência o da enfermidade, diminuirá o campo de ação dos sentimentalistas, e a solidariedade humana será ampla, sadia e espontânea.

O homem terá alegria na contemplação da alegria de seu semelhante.

Será por meio da alegria que se desenvolverá o Individualismo do futuro."


[SOB A PROPRIEDADE PRIVADA, A TECNOLOGIA, CUJA FUNÇÃO É ACABAR COM O TRABALHO, IMPÕE QUE SE TRABALHE SEMPRE MAIS PARA SOBREVIVER]

"Como mencionei a palavra trabalho, não posso me furtar a dizer que há muito disparate no que se escreve e discute atualmente sobre a dignidade do trabalho braçal. Nada há de necessariamente digno nesse trabalho, em sua maior parte aviltante. É prejudicial ao homem, do ponto de vista mental e moral, realizar qualquer coisa em que não encontre prazer, e muitas das formas de trabalho são atividades completamente desprezíveis, e assim devem ser encaradas. Varrer durante oito horas uma esquina lamacenta, num dia açoitado pelo vento leste, é uma ocupação desagradável. Varrê-la com dignidade mental, moral ou física, parece-me impossível. Varrê-la com satisfação é de estarrecer. O homem foi feito para algo melhor que estar imerso na imundície. Todo trabalho desta sorte deveria ser feito por máquinas.

E não tenho dúvidas de que o será. Até hoje o homem vem sendo, em certa medida, escravo das máquinas, e há algo de trágico no fato de que, tão logo inventou a máquina para trabalhar por ele, o homem tenha começado a passar fome. Isto decorre, no entanto, de nosso sistema de propriedade e de nosso sistema competitivo. Um único homem possui a máquina que executa o trabalho de quinhentos homens. Logo, quinhentos homens são postos na rua; sem trabalho e vítimas da fome, passam a roubar. Aquele homem sozinho detém e estoca a produção da máquina. Possui quinhentas vezes mais do que deveria possuir e provavelmente, o que é ainda mais importante, possui bem mais do que realmente quer. Fosse a máquina propriedade de todos, e todos se beneficiariam dela. Proporcionaria uma vantagem imensa à sociedade. Todo trabalho não intelectual, todo trabalho monótono e desinteressante, todo trabalho que lide com coisas perigosas e implique condições desagradáveis, deve ser realizado por máquinas. Por nós devem as máquinas trabalhar nas minas de carvão e executar todos os serviços sanitários, e ser o foguista das embarcações a vapor, e limpar as ruas, e levar mensagens nos dias chuvosos, e fazer tudo que seja maçante ou penoso. Atualmente, as máquinas competem com o homem. Em condições adequadas, servirão ao homem. Não resta dúvida de que esse será o futuro das máquinas. Assim como as árvores crescem enquanto o senhor rural dorme, enquanto a Humanidade estiver se distraindo, ou desfrutando do lazer cultivado - pois que a ele o homem se destina e não ao trabalho -, ou criando obras belas, lendo belas páginas, ou simplesmente contemplando o mundo com admiração e prazer, as máquinas estarão fazendo todo trabalho necessário e desagradável. O fato é que a civilização exige escravos. Nisso os gregos estiveram muito certos. A menos que haja escravos para fazer o trabalho odioso, horrível e desinteressante, a cultura e a contemplação tornam-se quase impossíveis. A escravidão humana é injusta, arriscada e desmoralizante. Da escravidão mecânica, da escravidão da máquina, depende o futuro do mundo. Quando os cientistas não mais forem convocados a ir até o deprimente East End para distribuir à gente faminta chocolate de má qualidade e cobertores de qualidade ainda pior, terão tempo disponível para planejar coisas maravilhosas e estupendas para satisfação própria e dos demais. Haverá grandes acumuladores de energia em cada cidade, em cada residência se preciso, e essa energia o homem converterá em calor, luz ou movimento, conforme suas necessidades. Isto é Utópico? Um mapa-múndi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras a que a Humanidade está sempre aportando. E nelas aportando, sobe à gávea e, se divisa terras melhores, toma a içar velas. O progresso é a concretização de Utopias." 

Para ler o texto completo, ver este link.

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