quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Dissecando a metafísica da escassez


Anteriormente, criticamos a ideologia da escassez do ponto de vista da transformação da vida cotidiana [1], ou seja, na perspectiva concreta da práxis social-histórica; no entanto, alguns acreditam que, independentemente disso, a escassez continuaria válida como característica inerente ao tempo e ao espaço, como fundamento metafísico (geralmente usam o conceito termodinâmico de "entropia" para fundamentar essa ideia). Com isso, alguns supõem que, nesse universo entrópico, cada ser específico se pauta pela competição recíproca pela escasso, e, consequentemente, também os seres humanos e as sociedades, o que faria a forma social que a escassez toma, a propriedade privada (e, portanto, a sociedade de classes, o trabalho, o Estado e o capital), ter um fundamento eterno, cósmico e imutável. Neste texto, procuraremos criticar essa metafísica de um ponto de vista especificamente filosófico, físico e antropológico. 

ANAXIMANDRO E DEMÓCRITO


Anaximandro de Mileto
A primeira expressão filosófica da metafísica da escassez que conhecemos foi exposta por Anaximandro, que dizia que o nascimento dos seres é dívida, e que portanto a vida é paga com a morte: 

"Todas as coisas se dissipam onde tiveram a sua gênese, conforme a necessidade; pois pagam umas as outras o castigo e a expiação pela injustiça, conforme a determinação do tempo." (fragmento 1 de Anaximandro). 

[Obs.: É evidente que essa visão moralista da natureza é uma continuidade dos mitos gregos de Diké e Nêmesis, deusas que personificam a "justiça", a retribuição inelutável, a dívida inescapável, e que inexoravelmente "dá a cada um o que lhe é devido". Como veremos, a metafísica da escassez continua até os tempos atuais fundamentalmente religiosa, mítica ou mesmo animista.]

De Anaximandro até nós, a maioria das filosofias se baseou em alguma metafísica da dívida, da troca de equivalentes, das recompensas e punições. Nos tempos modernos, o representante talvez mais respeitado (por causa de suas pretensões científicas) dessa metafísica é o entropismo, ideologia que afirma que, sendo o aumento da entropia (portanto, a morte) a regra geral do universo, cada ser é explicado por estar energeticamente submetido a uma relação de austeridade e dívida energética a ser estritamente equilibrada, compensada, paga no futuro.

Porém, uma outra corrente, subterrânea na história da filosofia, também se expressou ao menos desde a Grécia antiga: Demócrito e os demais materialistas afirmavam, de modo geral, que, se existimos, é porque somos gratuitos, supérfluos, já que não haveria nenhum sentido anterior à própria existência: seríamos fruto do acaso (Diné de Demócrito, Clinamen de Lucrécio) - e a necessidade (e portanto, o tempo) é a consistência de cada existente pela qual ele dura, expressa e desdobra essa gratuidade de, em e além de cada ser singular, ou seja, é sua liberdade. [2] 


Demócrito de Abdera
Desse modo, reconhecendo que a "regra geral da natureza" é a decomposição, destruição, aumento da entropia (p. ex., o tempo -  verificado pela morte, a que tudo está mais cedo ou mais tarde submetido - e o espaço - os corpos não ocupam o mesmo lugar etc - esse primeiro esboço do conceito de entropia já era conhecido pelos materialistas antigos), os materialistas concluem, ao contrário do que pensava Anaximandro,  que isso significa que cada ser específico que surge e perdura nesse universo se fundamenta na gratuidade, desperdício, superfluidade, dissipação. 

Essa afirmação fica clara levando-se em conta o modo como os materialistas explicam o mundo: o tempo todo, no universo, incontáveis eventos ou composições (no caso, os atomistas pensavam nas combinações entre os átomos) acontecem simultaneamente, mas como a esmagadora maioria dessas composições não encontra consistência, elas não perduram, se decompõem e se dissipam rapidamente. Por esta razão, é improvável, raro, que algo singular exista além da decomposição praticamente instantânea. A improbabilidade de surgirem e existirem as exatas coisas singulares que percebemos perdurarem e se desenvolverem a nossa volta, assim como nós mesmos, é ainda maior, é praticamente infinita. É por isso que cada ser singular que surge e perdura no universo é gratuito, sem dívida, sem culpa, porque não possui nenhum sentido singular pré-escrito na "lei geral da natureza", que é destruição dissipativa. Ou seja, é pela gratuidade, é pela superfluidade que existimos, agimos e criamos. Não devendo nada a alguma lei transcendental de escassez geral, até porque, na verdade, o que é geral não é escassez, mas abundância destrutiva, superfluidade dissipativa, "lei geral" que é responsável pela destruição, ao fim inevitável, mas não pela geração nem pela duração e tampouco pelo desenvolvimento dos seres (como diziam Lucrécio e Epicuro, na prática, "a morte não é nada para nós"). [3] 

[Obs.: Não é difícil perceber que a ciência moderna, quando despida das intepretações que dão um viés escassista a ela, mostra que não é a austeridade contábil da troca de equivalentes, mas o desperdício e a dissipação é que é o fundamento de cada ser específico que surge e persiste. 
Um exemplo básico é o do fluxo termodinâmico sol-> planeta Terra->seres vivos [4]: o sol dissipa uma imensamente colossal quantidade de energia pra todo lado sob a forma de partículas e ondas eletromagnéticas (uma parte da qual é a luz). Quase tudo isso é desperdiçado em direção ao vazio espacial. Uma pequenina parte dessa energia desperdiçada do sol, mas ainda colossal, se dissipa por acaso na Terra. A Terra dissipa igualmente essa energia para todo lado, enquanto uma parte é desperdiçada nas bactérias e plantas que fazem fotossíntese. As bactérias e plantas também dissipam abundantemente "à toa", e parte dessa dissipação é desperdiçada nas outras bactérias, insetos e herbívoros que as devoram com superfluidade. Estes últimos são desperdiçados nos predadores, que também devoram uns aos outros avidamente, num gritantemente notório desperdício vão de energia. E parte da dissipação de todos esses seres, por sua vez, é desperdiçada nos humanos, que também desperdiçam essa energia "à toa", criando gratuitamente suas relações, a sociedade, a indústria, o conhecimento, a arte, a linguagem, cidades, imaginação, engenhosidade etc. 
Apesar de no modelo explicativo dos materialistas antigos não existir ainda essa visão termodinâmica, ela é em grande parte compatível. O sol, como tudo mais (inclusive nós), é considerado uma composição de átomos surgida fortuitamente em determinado momento, e que está se desintegrando continuamente, se dissipando para todo lado até morrer (sua luz é o resultado dessa desintegração). Porém, se quisermos deter o desperdício (acumulando,  "conservando"), o resultado é que o sol morreria mais rápido, ou até instantaneamente numa explosão, e não teria tempo para "sua natureza", suas ricas potencialidades qualitativas, se desenvolverem e se expressarem ao máximo.]

Contudo, essa visão global não é e nem pretende ser "reconfortante". Ela não fornece nenhum princípio ético e tampouco qualquer modelo para uma sociedade melhor. Dado que a "lei geral da natureza" é abundância destrutiva, desperdício dissipativo, a ideia de "ordem natural" (ou "equilíbrio natural"), ideia que pressupõe a crendice em alguma espécie de "mão invisível", é uma infeliz invenção da imaginação humana. Ela simplesmente não existe na natureza. 

O CREDO NA "MÃO INVISÍVEL"  (OU "ORDEM NATURAL", "EQUILÍBRIO NATURAL"): MORALISMO E TEODICEIA

O fato é que a natureza é incessante desequilíbrio cego e indiferente, um conjunto de forças completamente insensíveis ao sofrimento, assassinato, tortura, abundância, escassez, e à própria vida de todos os seres vivos. Além da história de catástrofes sem fim da geologia e atmosfera do planeta terra, assim como dos planetas, asteroides, sois e cometas, basta observar a notória superfluidade destrutiva da cadeia alimentar. Mais de 99,99% dos seres vivos vive de ferir e/ou devorar outros seres vivos, a tal ponto que nem sequer os seres mais inofensivos da cadeia alimentar, como as plantas, são "pacíficos", mas venenosos para outros (traduzindo: assassinos; aliás são dos venenos das plantas que vem todas as propriedades medicinais delas que usamos graças à nossa ciência, empiria e técnica), espinhentos (traduzindo: torturadores), monstros vorazes para muitos outros pequenos seres ingênuos que metem seus bedelhos neles (fungos e bactérias, por exemplo, atacados pelo sistema imunológico vegetal)  etc. Isso sem falar da interminável competição cega dos seres por nichos que extinguiu 99,99% de todas as espécies que já existiram na terra desde o surgimento da vida. Até mesmo uma das moléculas mais básicas necessária à nossa vida atual na terra, o oxigênio, um gás venenoso para os primeiros seres vivos, foi introduzida "artificialmente" na atmosfera (antes predominantemente de CO2) pelos primeiros seres a fazer fotossíntese (provavelmente cianobactérias), levando a uma extinção em massa colossal. 

Por outro lado, justamente porque o desperdício destrutivo é a regra geral da natureza, cada ser singular que existe e persiste necessariamente se pauta, ao contrário, pelo desperdício construtivo, criativo, afirmativo, pelo qual afirma sua existência [5]. Porém, a medida em que cada uma dessas abundâncias afirmativas singulares se expressa em um meio comum indiferente e cego, o resultado de suas expressões tende a se voltar contra elas mesmas, ou seja, nessas circunstâncias cegas ocorre o efeito colateral de a afirmação de cada uma tender a decompor e negar a afirmação das outras e, daí, cada uma nega a si mesma mediante as outras. Isso porque, se as expressões construtivas continuarem afirmando essas circunstâncias cegas e indiferentes para se expressarem, elas intensificam as condições que as obrigam a deter a expressão do dinamismo de sua riqueza, a conter a abundância de suas relações com os outros, a se embotar, acumular, competir, se privar e, por fim, a se engajar na destruição supérflua de si própria. 

A metafísica da escassez, no entanto, "naturaliza" essas circunstâncias, santifica esse estado de coisas cego, até o ponto de extrair dele todo um "moralismo da escassez" que busca justificar e exaltar o sofrimento, esgotamento, tortura e morte como "feedback negativo" (retroalimentação negativa) objetivamente necessário à conservação, preservação e regulação "holísticas" da natureza e da sociedade. É uma verdadeira teodiceia, uma autêntica religião, esse culto da "mão invisível".

Não é por nenhuma "regra geral da natureza", nenhum "holismo", mas apenas a partir das abundâncias afirmativas singulares que a espécie humana - cuja singularidade é que seus indivíduos são capazes de desejar, pensar, se comunicar e agir - pode desenvolver uma ética e, portanto, um projeto de transformação tanto das relações sociais quanto de suas condições naturais. Se somos supérfluos, então é completamente arbitrária qualquer ideia de dívida ou culpa, de justificativas, teodiceias, assim como qualquer remuneração por qualquer tipo de equivalência de "valor", pois não há qualquer ser transcendente que "retribua à cada um a sua parte". Pelo contrário, se os singulares são supérfluos é precisamente porque se justificam por si sós, pela sua simples existência, composição e expressão. 

Trata-se então, para os seres humanos, de transformar as circunstâncias de modo que, nelas, as capacidades e necessidades humanas possam se afirmar como válidas por si sós, e não mais como instrumentos, meios e objetos de julgamento e retribuição conforme uma maior ou menor obediência a um fim pré-determinado (valor, mercado, propriedade privada, Estado, religião, identidade, nacionalidade, gênero etc). A liberdade é a necessidade irretribuível de cada singular, porque eles e suas expressões valem por si mesmos, são fins em si. Portanto, liberdade é: "de cada um segundo suas capacidades, à cada um segundo suas necessidades". [6]

[Obs.: Isso contrasta com a ideia equivocada de que liberdade é livre-arbítrio. Livre-arbítrio nada mais é do que escolha de elementos em circunstâncias pré-estabelecidas, aceitando essas circunstâncias como imutáveis. Essa liberdade
é ilusória, já que a imposição do livre-arbítrio, da livre-escolha, é a base de
qualquer relação de dominação. Isso porque o único modo da classe dominante colocar-se como dominante é tendo o poder de retribuir, com prêmios ou reprimendas, a submissão maior ou menor dos dominados, o que só é possível se eles dão aos dominados a liberdade de escolher, entre duas ou mais coisas, caminhos ou ações predeterminadas, pré-fabricadas, pré-armadas pelos dominadores. Somente assim podem julgar quem é mais ou menos obediente (julgar o "livre arbítrio" ou "deliberação", "esforço", "mérito" deles), retribuindo a cada um em vistas a intensificar as circunstâncias de competição que levam os explorados a continuarem ou até aumentarem sua sujeição. Livre-arbítrio implica sempre em submissão às condições pré-estabelecidas de escolha. A verdadeira liberdade, pelo contrário, só começa pela transformação das circunstâncias, das condições de existência. Ou seja, liberdade pressupõe que essas condições deixem de ser propriedade privada (abolindo assim do poder dos dominadores) e se tornem as condições comuns da livre expressão prática dos indivíduos livremente associados sem fronteiras (comunismo).]

Como já expomos em outro texto uma ética imanente, materialista [7], trataremos agora das alegações pretensamente científicas dos adeptos da metafísica da escassez, em especial o entropismo.

FETICHISMO DA MERCADORIA, CIÊNCIA E CIENTIFICISMO NA IDEOLOGIA DA ESCASSEZ

Que os seres já surgidos comecem inevitavelmente a se desintegrar, a se dissipar até desaparecerem (entropia), não há dúvidas disso. Mas essa, como vimos, não é toda a história. Porque há também atividade, atuação: essa dissipação supérflua pode gerar (ou não) outros seres singulares (dentro e/ou fora de dele mesmo e/ou entre e/ou além) igualmente supérfluos, assim como aqueles seres que já tinham surgido também foram gerados pela dissipação supérflua de outros seres que confluíram nele e o compuseram. É nessa parte da história (e não na parte "status quo em perigo") que está tudo que conhecemos, fazemos, experimentamos e nós mesmos. A atual ideologia da escassez com pretensões científicas é míope, porque ela se ocupa exclusivamente da dimensão de dissipação estéril dos seres já surgidos, só enxergando formas pré-existentes, e generalizando isso na visão de um universo austero regulado pela troca de equivalentes, numa competição pela escassez que recompensa ou reprime conforme um padrão pré-estabelecido, transcendente. Com isso, essa ideologia é incapaz de se dar conta do surgimento, da atividade, do vir-a-ser, do devir, mas apenas do "status quo", do já existente.

Em que se baseia essa miopia? Ou melhor, epistemologicamente, em que situação material, a atividade, o devir, não podem aparecer, ficando ocultos? Isso só é imaginável numa circunstância material em que cada devir ou atividade singular é separado e isolado dos outros, de suas relações específicas, e unificados sob uma mesma forma geral pré-existente. 

É precisamente assim a sociedade capitalista: as múltiplas atividades singulares assumem a forma de "trabalho", em que cada devir é privado (propriedade privada) de suas relações para ser incessantemente remetido à comparação com outros (competição) conforme um mesmo padrão geral pré-estabelecido de equivalência quantitativa abstrata: o valor, a troca de mercadorias, o dinheiro, o Estado. Trata-se de uma sociedade em que, privada das condições materiais de atuação, a atividade produtiva humana só é permitida se for serviçal da reprodução ampliada do trabalho morto, do capital, do lucro; em que os produtos das atividades humanas simultâneas que abrangem o mundo inteiro, aparecem aos próprios seres humanos não como expressões de sua atividade associada em escala global, mas, pelo contrário, como se os produtos resultantes fossem dotados de uma existência independente, como propriedade privada, empresa, mercadoria, capital e Estado, em suma, como mercado mundial. Isso porque, privados de suas condições de existência, os seres humanos se tornam impotentes enquanto seres humanos, e, para sobreviver, são forçados a alienar (vender) suas capacidades de agir e de pensar à quem tem a propriedade privada dessas condições; consequentemente, as capacidades humanas são atribuídas às coisas, à propriedade privada, à classe proprietária (os capitalistas, i.e., o empresariado particular e estatal). Os seres humanos encontram suas próprias capacidades como atributos não deles mesmos, mas do dinheiro, da propriedade privada, da empresa e do Estado, personificados como um poder alheio, privado e hostil (o capital) na classe dominante. É uma determinada relação social entre os homens que assume, a seus olhos, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas (fetichismo da mercadoria). [8]

Então, em um ambiente onde todo devir é incessantemente remetido à reprodução ampliada do trabalho morto, os seres singulares não aparecem socialmente, publicamente, como atividades, mas como rastros, resultados, produtos, mercadorias, instrumentos, "serviços", "trabalhos".

E nesse ambiente também estão os que fazem ciência. Ninguém tem acesso "sobrenatural" à natureza (se alguém afirma isso, esse alguém é religioso, não cientista), porque inclusive os cientistas são seres naturais. Eles perscrutam a natureza tal como ela lhes aparece, e tal como eles a fazem aparecer mediante instrumentos, metodologias e experimentos. Alguns aspectos do que lhes aparece é realçado e destacado em detrimento de outros pela simples razão de que o que pode aparecer a eles passa inerentemente por suas relações sociais: um cientista pode ser um trabalhador assalariado (ao invés de fazer ciência em livre associação com outros no mundo inteiro que também desejam e fazem ciência como um fim em si, como atividade livre), seus instrumentos, componentes e insumos são comprados (ao invés de terem sido determinados livremente pela sua atividade em associação com outros que, no mundo, desejam produzi-los), e também a determinação e escolha de seus objetos de estudo exprimem necessidades e capacidades humanas formadas e desenvolvidas em específicas relações sociais.


Assim, por exemplo, os conceitos de "trabalho" e "energia" foram separados dos demais conceitos da física e cunhados com esses nomes próprios (tornando-se inclusive os conceitos centrais das ciências naturais) no preciso momento da revolução industrial (séculos XVIII-XIX), quando o capital (que então se tornou produtivo, industrial) colocava a questão de extrair o máximo de trabalho "útil" das forças naturais e humanas disponíveis, com o propósito de aumentar ao máximo a diferença entre os custos de produção e os preços de venda de seus produtos, ou seja, os lucros. Foi a partir do problema do "peso levantado até certa altura" no uso, por empresas mineradoras, dos primeiros motores à vapor para levantar baldes de água de minas alagadas, que, em 1826, Gaspard-Gustave Coriolis introduziu na física o conceito de "trabalho" e seu nome próprio. Já o de "energia", foi introduzido em 1807, por Thomas Young. Antes disso, os conceitos centrais da física eram os de "momento de inércia" e "força" (como em força da gravidade, força elétrica, força magnética etc) [9].


Isso não quer dizer, é claro, que, no século XIX, a ciência "tenha errado" e nem que esses novos conceitos sejam "falsos", mas sim que os cientistas perscrutam o mundo, com sua rigorosa metodologia, a partir das circunstâncias com que se deparam, a partir dos problemas e perspectivas que essas circunstâncias colocam. Desse modo, toda ciência que desde o século XIX se desenvolveu a partir dos conceitos de "energia" e "trabalho" (em especial o de "conservação de energia") realmente foi se tornando cada vez mais capaz de explicar de maneira inigualável e precisa as condições precedentes para qualquer evento. No entanto, é míope para os próprios eventos em questão, porque eles são tomados como formas já existentes, já conhecidas, e não enquanto devires, atividades. A razão disso é que, na sociedade capitalista, como vimos, os seres singulares, humanos e não-humanos, não aparecem socialmente, publicamente, como atividades, como atuações, como devires, mas como rastros, resultados, produtos, mercadorias, instrumentos, "serviços", "trabalhos"; então, qualquer análise científica objetiva dos seres nesse ambiente (sociedade capitalista) encontra-os apenas como seres privados de e subservientes às suas condições de existência precedentes que se acumulam como trabalho morto, propriedade privada, capital.

No entanto, ao contrário dos cientistas que permanecem rigorosamente objetivos, os adeptos da metafísica da escassez encontram esses conceitos científicos, que expressam objetivamente o que pode ser apreendido da natureza a partir das necessidades e capacidades humanas desenvolvidas na sociedade atual, e se apropriam deles para compor uma religião cientificista que naturaliza, justifica e exalta a (auto)repressão, a máxima coerção ao trabalho, a intensificação da competição, o ascetismo, o exclusivismo e o banimento. Tudo em nome da preservação de um "status quo" que teria sido fruto meritório de um árduo, esforçado, "complexo", "equilibrado" e sofrido passado cujo questionamento, na opinião deles, poria "tudo a perder".

IDEOLOGIA APLICADA DA ESCASSEZ: ECONOMIA E ECOLOGIA 

Por fim, vale a pena se deter nas peripécias da palavra e do conceito de "economia", que são muito curiosas. Ela chegou até nós, da Grécia antiga, através da teologia. 


Inicialmente, na Grécia, oikonomia era como se designava o comando, a administração (nomos, em grego), pelo pai/senhor (despotes, kyrios), dos escravos/servos de sua propriedade (oikos). Essa propriedade era ao mesmo tempo residencial, agrícola e escravista. Já fora da oikonomia, na polis, a relação entre os proprietários de escravos era chamada polítika, em que os senhores se consideravam iguais (isonomia, isegoria, isokratia). Em contraste, na propriedade escravocrata, no oikos, se constituia a família (oikogéneia), composta por aqueles sobre os quais o despotes tinha poder de vida e de morte: os escravos e servos, entre os quais se incluíam sua mulher e os filhos, além dos fâmulos adquiridos. Este foi o primeiro sentido da palavra. [10]


Pantocrator 
A seguir, quando o cristianismo se impôs (séculos III-XV) nas regiões em torno do mar Mediterrâneo e depois em toda Europa, o mundo e a humanidade passaram a ser considerados uma propriedade doméstica (oikos) comandada (nomos) por deus (providência). O governo de deus sobre o mundo, a execução pelos homens do comando de deus mediante o poder da igreja, dos reis e dos senhores feudais, a teodiceia (justificação dos sofrimentos e do mal), o gênesis, o plano de salvação e julgamento da humanidade no apocalipse, tudo isso tinha um nome: economia, economia da salvação, economia divina. E este foi o segundo sentido. [11]

Depois, na época do mercantilismo (séculos XV-XVIII), quando o capitalistas começaram a se impor e a transformar o mundo inteiro (colonização de quase todos os continentes etc) através dos Estados mercantilistas (que foram os primeiros Estados no sentido moderno do termo, o de ser uma entidade distinta das castas, da "sociedade civil") que eles financiaram para impor pela força das armas o comércio e o monopólio de rotas comerciais em todo planeta, as categorias do pensamento religioso, inclusive "economia", começaram a ser secularizadas. Nesse período, "economia" era como se chamava a administração governamental dos Estados mencantilistas, que eram monarquias absolutistas e que se acreditava serem fundadas por "direito divino" ou pelas bençãos do papa. Tal foi o terceiro sentido. [12]

Por fim, o quarto e último: na revolução industrial, no fim do século XVIII, quando o capital assumiu a produção (que antes era pré-capitalista, enquanto capitalista era apenas o comércio dos produtos), sugindo o capital industrial (graças à imposição do trabalho assalariado, só possível mediante a sistemática separação dos componeses e artesãos de seus antigos meios de vida, formando o proletariado), as categorias do pensamento religioso cristão foram plenamente transcritas para uma "religião secular objetivista", em que uma curiosa "mão invisível", por vias indiretas e misteriosas, governaria tanto mais para melhor quanto maiores os sofrimentos, sacrifícios e esgotamentos dos seres humanos privados de meios de produção (proletários) na concorrência desesperada por conseguir sobreviver vendendo a única coisa que ainda possuem, ou seja, a si mesmos, no mercado de trabalho, aos proprietários privados desses meios (capitalistas), em troca do salário. Essa entidade misteriosa (a economia) promoveria tanto maior prosperidade quando mais os proletários se engalfinhassem por obedecer e se sacrificar à classe proprietária. 

Então, a palavra "economia", do berço escravocrata passando por suas vestes teocráticas adultas, desembocou na designação de um tipo de entidade religiosa que não é mais identificada como religiosa, mas como a própria "verdade absoluta", "a realidade tal como ela é de fato e à qual é dever se curvar". É uma espécie de neo-animismo [13]. A economia, em suma, é o próprio fetichismo da mercadoria, que surgiu com o domínio do capital sobre a sociedade mundial. Esse domínio se caracteriza pela ditadura da produção pela produção que é o trabalho assalariado, em que, como vimos, os produtos das atividades humanas aparecem aos próprios homens não como resultados de sua atuação associada, mas como uma força independente, autônoma, como se se produzissem, se movessem e se distribuíssem mediante uma lógica própria e misteriosa: "sistema de preços", "oferta e procura", "mão invisível", "destruição criadora", "demanda agregada" etc. 

Por outro lado, se a economia é uma teodiceia, justificando os sofrimentos, sacrifícios e males em nome de algo imaginário que por vias misteriosas promoveria o bem geral, não menos pior é a ecologia.

O movimento ecológico moderno se baseia em conceitos da "cibernética", "holística" e "teoria de sistemas" (todos eles variantes da metafísica da escassez) visando reestabelecer politicamente o "equilíbrio natural", a "sustentabilidade", a "homeostase" do organismo holístico que seria a natureza como um todo. O processo homeostático em questão englobaria todos os seres, os quais, nas suas interações, estabelecem "feedbacks negativos" (mortes, escassez e catástrofes) responsáveis por manter a sustentabilidade do sistema ao longo do tempo ao contrabalançar os 
"feedbacks positivos" (por exemplo, reprodução sem freio de uma espécie) que de outro modo se acumulariam, levando ao colapso do sistema. O erro dos seres humanos, segundo eles, foi interferir no processo holístico da natureza, que seria tão complexo que seria impossível de ser compreendido pelos humanos (cuja atuação pressupõe sempre um conhecimento inerentemente "reducionista"), de tal modo que quando estes interferem, o resultado seria sempre catastrófico.

Mas já vimos que a natureza é, de fato, incessante desequilíbrio, um conjunto de forças cegas e indiferentes, e a ideia de uma "ordem natural" não passa de invenção da imaginação humana. Se a humanidade quiser por em prática a ficção ecológica de uma "ordem natural" independente dela, ela terá que se entregar a esses processos cegos, violentos e indiferentes, "naturalizá-los" e aceitar agir do mesmo modo. Quando se faz isso, a morte e o sofrimento de cada um passam a ser considerados uma prática aceitável (como "feedback negativo" necessário à "homeostase") para que o suposto todo, o sistema holístico, seja sustentável. Trata-se de uma teodiceia tão mitológica que é praticamente uma recriação dos ritos sacrificiais de "restauração da ordem cósmica" do antigo paganismo. Mas, como toda mitologia, teologia e religião, isso não existe na natureza, é uma invenção delirante especificamente humana. Nenhum outro ser vivo age mediante uma "percepção imaginária extraterrena" (holística) de si mesmo no mundo, indiferente ao seu próprio sofrimento e morte, em nome da uma imaginação demente em sua cabeça. 

[Obs.: Ainda mais perturbadora é a história da ecologia [14]. A palavra e o conceito de "ecologia" foram introduzidas por Ernst Haeckel (1834-1919), que pregava que a natureza é um organismo unificado e equilibrado (oikos), e que a sociedade humana deve ser reorganizada de acordo com a lógica da natureza (daí,com oikos e logos, cunhou a palavra ecologia). Anti-iluminista, nacionalista e eugenista, ele foi o primeiro a usar a teoria da evolução das espécies para propor uma classificação hierárquica das raças humanas. Segundo ele, "a política é biologia aplicada". Sua teoria ecológica, através da esotérica e espiritualista Sociedade Thule, na qual participava, se vinculou diretamente às origens da ideologia nazista. Esta última afirmava, baseando-se também nas teorias da competição do economista liberal Herbert Spencer (darwinismo social) e no misticismo racista de Madame Blavatsky (teosofia), que o equilíbrio orgânico da ordem natural primordial (ao mesmo tempo biológica, divina e mística) decorreria da competição sem tréguas de cada um (cada indivíduo, cada nação, cada raça) por ocupar nichos na "ordem natural". O primeiro governo que colocou a ecologia como meta principal foi o nazista, criando as primeiras reservas naturais, leis de proteção dos animais e inclusive tentando se basear na agricultura orgânica, além, é claro, dos campos de extermínio.]

Evidentemente, criticar a ecologia não significa que defendemos a destruição do meio ambiente. O que afirmamos é que, como não existe nenhum ponto referencial "superior" (como a fantasia mitológica/teológica de uma providência chamada "natureza", "gaia", "ordem natural") fora das necessidades e capacidades dos próprios seres humanos para eles mesmos decidirem suas vidas e suas ações, a questão de não destruir o ambiente natural em que vivemos e os demais seres vivos só pode ser levantada e assumida por nós mesmos, pelos seres humanos, a partir do que considerarmos (mediante conhecimento, ciência, ética, técnica, desejo etc) necessário fazer e capacitados para fazer. Simplesmente porque, para agirmos, só temos as nossas próprias capacidades e necessidades, com as ideias, ciência e práticas que criamos a partir delas, e com as quais pensamos e agimos com algum êxito ou não.

humanaesfera, fevereiro de 2017


POST SCRIPTUM: CURIOSIDADE: O EPITÁFIO DE SÍCILO




Este é o mais antigo exemplo encontrado de uma composição musical completa, o Epitáfio de SíciloA música, cuja melodia foi registrada junto com a letra, foi encontrada gravada em uma lápide, perto de Aidin, na Turquia (não muito longe de Éfeso). A descoberta foi datada de entre 200 aC e 100 dC.

Letra:

Enquanto viver, brilhe
Não te entristeças por nada
A vida dura um breve instante
E o tempo cobra seu tributo

A lápide continha o seguinte escrito: "Eu sou um túmulo, um ícone. Sícilo me pôs aqui como um símbolo eterno da lembrança imortal". 

A letra pode ser interpretada como expressando a ideia de vida como gratuidade, delicada, frágil e alegre, enquanto o tempo, que destruirá tudo cegamente (entropia),  confirma nela sua abundância supérflua e irretribuível.

ADENDO: A ILUSÃO DA "DÁDIVA" PRÉ-CAPITALISTA


Potlatch
Conhecer o passado ajuda a saber que nem a sociedade capitalista, nem a troca de mercadorias, nem a família nuclear e nem o Estado são eternos e que a humanidade viveu por muito mais tempo de outra maneira. Porém, alguns perscrutam o passado acreditando que antes da sociedade capitalista, vivíamos "naturalmente" (conforme uma suposta "ordem natural") enquanto que agora viveríamos "artificialmente". Um dos temas prediletos e mais exaltados por quem assim pensa é o da "dádiva", "dom" ou "troca de presentes" (cujo exemplo mais conhecido é o potlatch), um modo de distribuição dos produtos que contrasta com a troca de mercadorias generalizada que caracteriza a sociedade capitalista. Eles chegam ao ponto de considerar a "dádiva" pré-capitalista como o modelo "natural" para uma nova sociedade após a atual. Acreditam que a "dádiva" expressaria abundância em uma ordem social supostamente natural que querem restaurar, enquanto que, na verdade ela era um mero sistema de alianças por dívidas. Aqui queremos brevemente mostrar que as condições pré-capitalistas que faziam a "dádiva" fazer sentido não só são sem retorno, como também são absolutamente indesejáveis por qualquer um em sã consciência hoje.

Antes de tudo, como Mauss e Malinowski mostraram, a dádiva das sociedades tribais era um sistema de coerção endividada, inclusive, muitas vezes, um sistema de dominação brutal de alguns clãs sobre outros [15]. 

Em sociedades tribais em que os clãs não se hierarquizavam, o "dom" consistia  em laços coercitivos resultantes da desconfiança entre tribos sempre à beira da guerra entre si (segundo Pierre Clastres, era esse estado de guerra generalizada que impedia o surgimento do Estado, o surgimento das castas [16]). O "dom" era o rito de uma guerra invertida, em que cada lado, sempre extremamente desconfiado, tinha que provar sua confiança no outro clã através da concorrência de dar mais no futuro do que recebeu de presentes. O fato de não dar imediatamente quando se recebia era considerado uma prova de que não se desconfiava do outro clã, e que os laços entre eles seriam mantidos. Mas caso algum lado, por qualquer razão, fosse considerado apressado em retribuir ou se passasse a retribuir com menos (ou mesmo se achasse antecipadamente que o outro ai achar qualquer dessas coisas), isso era considerado prova definitiva de desconfiança, de quebra de laços. E então declarava-se guerra. A guerra era fundamental, porque se não fosse declarada guerra, formar-se-ia uma relação em que um clã se sobrepõe a outro (castas). Sem guerra nas sociedades tribais, o dom se torna dívida "infinita" de um clã (o que dá menos) para outro (o que dá mais), a ser paga como sujeição de castas, fazendo surgir o Estado (no sentido pré-capitalista de domínio de uma casta sobre outras). Na antropologia, esse é o caso mais clássico de todas as "dádivas", o potlatch, praticado por uma sociedade de castas da América do Norte [17].  

O que é evidente é que a dádiva tribal não parece de nenhuma maneira servir como modelo para nós hoje. A própria possibilidade do "dom" pressupõe a propriedade coletiva tribal sobre objetos produzidos por ela privadamente diante de outra propriedade coletiva tribal de outros objetos produzidos privadamente frente àquela e vice-versa. Pressupõe portanto, a troca entre propriedades privadas (propriedades que eram pré-capitalistas, mas ainda assim, de fato, coletivamente privadas reciprocamente), que é "dom" (laços de dívida) enquanto não é guerra e que se torna mercado (por exemplo, escambo) durante a guerra declarada, quando cada lado exigia uma retribuição imediata, rápida, de bens, "com valor equivalente", "justo", porque então já não confiavam absolutamente um no outro. 

Hoje, os meios de produção são materialmente comuns em escala mundial (nada, nem em termos físicos nem intelectuais, é produzido privadamente), e, consequentemente, na perspectiva atual de um mundo libertário (ou seja, comunista), o desfrute das forças produtivas não pode ser nem "dom" nem troca de mercadorias, mas uma auto-realização autônoma e gratuita propiciada pelo livre acesso por todos às forças produtivas comuns, que são as condições de existência (meios de produção) mundialmente interconectadas.

Mas voltemos às sociedade pré-capitalistas para ter uma noção melhor das condições concretas nas quais se encontravam e reproduziam suas relações sociais. Para cada tribo, todos os outros humanos eram  bestas, não-humanos ou falsos humanos (e eram assim denominados), contra os quais, como vimos, se estava em estado de guerra constante ou latente. Para marcar o pertencimento à essa suposta única tribo dos "verdadeiros humanos" (cada uma se considerava assim), que seriam os mais fortes e superiores, cada nova geração era submetida a ritos de passagem como provação do "merecimento" de pertencer à seu clã em exclusão de toda humanidade. Esses ritos escreviam literalmente na carne e na alma as marcas de pertencimento: mutilações, humilhações, várias provas de resistência à dor, provas de que não se é "frouxo" ao assassinar inimigos sem hesitação, adquirindo cicatrizes de guerra etc. Evidentemente, as novas gerações eram forçadas a se submeter porque não havia meio de satisfazerem suas necessidades fora da tribo, exceto se desejassem a solidão da natureza inclemente, vulneráveis às tribos e feras inimigas. E se se juntassem para criar uma outra tribo independente, eles seriam obrigados a recriar as mesmas provações dos ritos de passagem e as mesmas violências para com as outras tribos. Porque isso não depende só da vontade, mas das condições de existência materiais, ou seja, da capacidade humana de, com as forças produtivas existentes, transformar a natureza, a circunstâncias, as condições concretas das relações humanas. Eram as condições com que se deparavam que materialmente os obrigava a adotar todas essas coerções, se agrupando na forma social de tribos.

Assim como explicamos antes sobre o meio ambiente quando criticamos a ecologia, criticar as condições de existência das sociedades pré-capitalistas não quer dizer que defendamos que as tribos que ainda hoje existem não devam existir e nem que os que sentem atração pelo modo de vida delas devam "se reprimir". Na verdade, essas tribos, queiram ou não, há muito tempo não estão mais naquelas condições antigas (exceto, talvez, algumas, raríssimas, isoladas, na América do Sul e na Papua Nova Guiné). E seus mitos e ritos são recriados e modificados a cada geração conforme as condições em que elas se encontram e se reproduzem, que são hoje as da sociedade capitalista. É compreensível que, nesta sociedade (capitalista) onde a condição para sobreviver é se submeter à competição infernal da propriedade privada com a propriedade privada, os seres humanos dessas tribos remanescentes também busquem uma propriedade privada que garanta sua sobrevivência em exclusão de todos os demais humanos que competem igualmente pela sobrevivência. Então, para isso, o que geralmente tentam é fazer de seu passado um signo de propriedade a ser protegido pelo Estado (ou, como ocorre em alguns lugares do México, por suas próprias milícias). Porém, isso certamente nada tem de realmente libertário, nada tem a ver com superar a sociedade capitalista, porque é uma mera adição de uma propriedade privada a mais na competição generalizada que a condiciona. 

Apenas se transformarmos nossas condições de existência (o que pressupõe abolir a privação dessas condições, a propriedade privada, em escala mundial) de modo a superar as condições de existência da sociedade capitalista, os seres humanos podem se emancipar e transformar livremente a si mesmos, indo além da coação de ter que assumir papeis, funções e identidades pré-estabelecidas (etnia, raça, gênero, nação, emprego, família, cultura, classe etc), se associando conforme seus desejos para satisfazer livremente suas necessidades e capacidades.

humanaesfera, fevereiro de 2017



NOTAS:

[1] Trata-se do texto Contra a metafísica da escassez, copiosidade prática.

[2] Sobre tudo isso, ver os livros Os Filósofos Pré-socráticos, de Gerd Bornheim, Da Natureza das Coisas, de Lucrécio, e O nascimento da física no texto de Lucrécio, de Michel Serres. E sobre uma interessante análise do fragmento de Anaximandro citado, ver A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, de F. Nietzche, segundo o qual teria sido Heráclito de Éfeso o primeiro a romper com essa visão endividada da existência.

[3] Cf. O nascimento da física no texto de Lucrécio, de Michel Serres.

[4] Esse exemplo é exposto no texto A noção de dispêndio de Georges Bataille. Ver também Post-scriptum: contra a ecologia. 5) Georgescu-Roegen e o decrescimento económico, de João Bernardo

[5] Cf. Ética, de Baruch Espinosa e os dois volumes de Capitalismo e Esquizofrenia, de Deleuze e Guattari.

[6] Cf. os textos Propriedade privada, escassez e democracia,  assim como
Contra as recompensas e punições (contra a meritocracia, contra a coerção), também Abolição do trabalho e a questão do circuito produtivo global no comunismo, e, numa perspectiva prática, Contra a estratégia e Greve e produção livre.

[7] O texto Autonomia e cotidiano - Espinosa e o imperativo de Kant: ´Tratar os outros e a si mesmo como fins, jamais como meios.

[8] Sobre tudo isso, ver o texto Marx comunista individualista! (trechos sobre o indivíduo em Marx)

[9] Anteriormente, de uma forma descompromissada, provisória e muito rudimentar, tentamos desenvolver de um ponto de vista prático-cotidiano uma física que poderia ajudar a compreender a atuação, a atividade, o vir-a-ser, o surgimento. Nessa física, os conceitos de "inércia" e "força" são compreendidos imanentemente, na ideia de "engatilhamento de inércias qualitativamente heterogêneas" pelo qual os eventos, os surgimentos, os devires se dão. Em resumo, inércias desproporcionais (qualitativamente heterogêneas) interagem tangencialmente (engatilhamento) exibindo forças e, assim, eventos, novos seres, enquanto os conceitos de "energia", "troca de energia", "conservação de energia" e "trabalho" são secundários, por serem estimativas intelectuais sobre o já surgido, o já atuado. Quem tiver curiosidade, veja os textos Uma arkhé Acidental?Conceito qualitativo de energia, força e inércia e O engatilhamento das inércias está na raiz da força? 

[10] Cf. o livro O Reino e a Glória - Uma Genealogia Teológica da Economia e do Governo, de Giorgio Agamben.

[11] idem. Note que Carolus Linnaeus (Carlos Lineu, conhecido como o "pai da taxonomia moderna") ainda usava palavra "economia" nesse sentido teológico cristão. O seu livro  Oeconomia naturae [economia da natureza], publicado em 1749,  defende que a natureza é a execução do comando de deus, sendo que as catástrofes, a competição e os sofrimentos entre os seres vivos realiza os desígnios da providência (a ideia de que "Deus escreve certo por linhas tortas") ao compensar e equilibrar os nascimentos com as mortes, efetuando a ordem natural divino.

[12] Ver o  verbete "Economia" da Enciclopédia de 1772. 

[13] Ver o livro O capitalismo como religião, de Walter Benjamin.

[14] Sobre isso, ver a primeira e a segunda partes do texto A História que os ecologistas não querem contar, de Marilene Nunes. Também o livro Natureza e nazismo, de João Bernardo e a série de textos Post-scriptum: contra a ecologia, o lugar comum dos nossos dias, também de João Bernardo. 

[15] Ver os livros Ensaio sobre a dádiva, de Marcel Mauss, Os Argonautas do Pacífico Ocidental e Crime e Costume na Sociedade Selvagem, de Bronisław Malinowski, além de A Grande Transformação - as Origens da Nossa Época, de Karl Polanyi‎.

[16] Ver o livro A sociedade contra o Estado, de Pierre Clastres.

[17] Uma curiosidade sobre o "dom" pré-capitalista é a estória que originou a expressão "elefante branco". No Sião, os elefantes brancos eram raríssimos, e os cuidados requeridos eram tão custosos que só um rei poderoso poderia arcar com eles. Por isso eles eram considerados os maiores sinais de riqueza e poder, que nesse tempo significavam opulência dispendiosa, dádiva, beneficiência. Um rei que quisesse derrubar um aliado menos poderoso, ao invés de declarar guerra a ele, presenteava-o com um elefante branco. Se o aliado, para cuidar do elefante, perdesse suas riquezas, ele se arruinaria e perderia o poder. Mas se ele, para não perder suas riquezas, não cuidasse do elefante branco, isso seria considerado uma grave "desfeita" diante do presente dado, e então o rei, alegando estar "com a razão ao seu lado", poderia declarar guerra e destruir o antigo aliado. Outra ilustração da importância do "dom" nas sociedades pré-capitalista é o cavalo de Tróia.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

É impossível emancipação sem luta de classes


O caos provocado pela polícia no Espírito Santo (conforme relatado neste link) apenas mostra que, na ausência do proletariado como classe autônoma, o "povo" só pode (re)afirmar a competição pela escassez, pela propriedade privada, cada átomo se aliando com as propriedades privadas com mais poder de fogo para defender-se e impor-se contra os demais átomos concorrentes - e quem tem mais poder de fogo são os grupos de extermínio, as gangues, as empresas de segurança,  facções, traficantes, milicianos, o exército, as máfias e a própria polícia. 


São  ingênuos os que pregam a mera prática negativa de suprimir o Estado e o poder, como se eles fossem a causa de si mesmos.  Imaginam e pregam uma práxis sem proletariado, sem perceber que, sem este, sem luta de classes, o resultado é necessariamente o fascismo, o identitarismo, a barbárie, o nacionalismo, o etnicismo, o bairrismo, o militarismo (e, por fim, é claro, a ditadura "legítima, democrática e republicana" do capital):  o massacre mútuo dos oprimidos em nome da união com "suas" classes dominantes contra outras. 

Pelo contrário, como classe, o proletariado não é uma identidade, mas a solidariedade prática entre os explorados que atravessa e dissolve as separações da sociedade capitalista,  por toda parte contra "sua própria" classe dominante, numa luta que atravessa e suprassume as fronteiras, as empresas, bairros, escola, família, etnia, cultura, gênero etc. É unicamente a partir disso, da autonomia do proletariado, como classe mundial, que o Estado, o poder, a propriedade privada e a barbárie podem ser de fato superados, pela auto-superação do proletariado numa sociedade sem classes, uma livre associação dos indivíduos em escala mundial (comunismo) na qual expressam suas  necessidades, capacidades, desejos, habilidades, paixões e conhecimentos como fins válidos por si sós, livres, nunca mais submetidos à servidão da arbitrariedade que é a fantasia da troca de equivalentes, seja ela mercantil ou hierárquica.

humanaesfera, fevereiro de 2016


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Dois textos contra o trabalho



Reproduzimos abaixo dois textos interessantíssimos, Contra o trabalho (1979) e Atividade humana contra o trabalho (1982), que também podem ser encontrados, respectivamente, neste link e neste link.

Contra o trabalho - GCI
[Texto ogininalmente publicado em 1979 pelo Grupo Comunista Internacionalista. Foi publicado em português em KAOS #0, 06/1997 (boletim aperiódico e experimental do Grupo Autonomia), onde apresentava o seguinte cabeçalho:
Por que trabalhamos? A resposta não é tão fácil quanto parece. Sem um longo processo de sujeição física e psíquica, de opressão cotidianizada, de educastração ou internalização de valores morais sexualmente repressivos e enunciados racionalizadores (do sacrifício, da culpa, do dever, da renúncia...), dificilmente alguém trabalharia.
O significado da palavra trabalho remonta à sua origem latina: tripalium (três paus) - instrumento utilizado para subjugar os animais e forçar os escravos a aumentar a produção. O tripalium era, pois, um instrumento de tortura, algo semelhante à cruz que o rebanho cristão adotou como objeto-símbolo de um culto masoquista.
Antes de adquirir o significado moderno – isto é: urbano, industrial e capitalista – a palavra trabalho designava atividades estafantes, insalubres e penosas. Hoje, seu significado é mais extenso e difuso. O que caracteriza o trabalho é justamente o fato de se tornar cada vez mais abstrato, pois já não se refere a essa ou aquela atividade, mas à atividade e ao esforço em si mesmos. Já não plantamos, tecemos ou pastoreamos, tampouco operamos um equipamento; simplesmente, trabalhamos. Iniciando uma discussão que consideramos das mais fecundas e relevantes, transcrevemos abaixo um trecho das Tesis de Orientación Programática, do Grupo Comunista Internacionalista, da Bélgica.]
TESE 40:
"O trabalho é a negação da vida, da alegria e do prazer humano. O trabalho faz do homem um estranho para si mesmo, alienado da humanidade como um todo. O trabalho é a atividade humana subjugada às necessidades da classe dominante, que se apropria do sobreproduto obtido mediante a exploração das outras classes.
O capitalismo, ao separar os explorados de seus meios de vida e de produção, impôs a escravidão assalariada por toda a parte, reduzindo o homem à condição de trabalhador.
No trabalho, o proletário se vê completamente despojado de seu produto, alienado, negado em sua essência, em sua vida, em seus desejos... Além de desperdiçar seu suor, seu sangue e sua vida, numa atividade cujo absurdo só é menor do que o embrutecimento que acarreta, o trabalhador é separado dos demais homens, separado da espécie humana.
Somente na luta contra o trabalho, contra a atividade que estão forçados a executar e contra aqueles que os forçam, os proletários se reapropriam de sua condição humana. Com a generalização desta luta e a conseqüente negação da sociedade atual, avançam no sentido de uma sociedade comunista, na qual toda atividade humana estará voltada para a satisfação das necessidades humanas."
TESE 40A:
"Todas as ideologias do capital fazem a apologia do trabalho, como a atividade mais importante, à qual tudo se subordina, a atividade essencial do homem. O homem é considerado não como tal, mas ´pelo que faz na vida`, o que, na sociedade capitalista, quer dizer ´profissão`, ´trabalho`. Tais ideologias se baseiam no sacrifício, na renúncia, na interiorização das emoções e dos sentimentos...
Ao trabalho corresponde o sacrifício e a este, a religião (incluída a religião capitalista de estado, do marxismo-leninismo), como tentativa de justificar a repressão dos desejos e prazeres humanos, para a maior glória da burguesia.
Os sacerdotes e mandarins de todas as ideologias - entre os quais a esquerda do capital, que enaltece as mãos calosas do proletariado e se vangloria da miséria alheia - oferecem dogmas e ilusões para todos os gostos, propondo ´uma sociedade futura`, onde - após a morte, certamente - os proletários terão a recompensa pelos sacrifícios e renúncias que fizeram, a partir do momento em que aceitaram a mais desigual das trocas: a troca da vida pela sobrevivência ."

Atividade humana contra o trabalho - GCI
[Texto originalmente publicado em 1982 na revista Le Communiste número 14 (do Grupo Comunista Internacionalista). Foi publicado em português em KAOS #2, 04/1998 (boletim aperiódico e experimental do Grupo Autonomia), onde apresentava o seguinte cabeçalho:
O texto abaixo, de autoria dos companheiros do GCI - Grupo Comunista Internacionalista (*), foi-nos enviado já traduzido, com a solicitação de que o divulgássemos, após os necessários procedimentos de revisão e resumo/adaptação. O tema é da maior relevância, na atual situação de ofensiva do capital contra as condições de vida dos operários e demais trabalhadores. Aliás, cabe lembrar que a palavra "trabalho" tem origem no vocábulo latino trepalium (literalmente, três paus), que designava um instrumento de tortura utilizado para subjugar os animais rebeldes à domesticação. Sugestivamente, o termo "labor" significava sofrimento, antes de se tornar sinônimo de trabalho... (*) Por motivos óbvios, recomendamos não escrever GCI no envelope.
BP 54 St. Gilles, 3
1060 BRUXELES – BELGIQUE]
"Não se trata de libertar o trabalho, mas de suprimi-lo". (Karl Marx)
I. A palavra "trabalho" é a denominação burguesa para "atividade humana".
Na sociedade capitalista, a linguagem, como qualquer esfera da vida, é determinada pelo capital. É, fundamentalmente, a linguagem da classe dominante, a linguagem burguesa, que pode ser definida como o domínio da ideologia burguesa exercendo-se na comunicação. Assim, o modo de comunicação vigente impõe-nos seus limites. Como não se trata de inventar uma linguagem que só poderia basear-se numa nova compreensão das relações humanas, vemo-nos continuamente obrigados a desmascarar e redefinir as palavras.
A palavra "trabalho" é o exemplo mais cabal e quase perfeito da falsificação das consciências humanas. O homem sempre se expressou através de sua atividade vital (o que é a vida, senão atividade?), visando à satisfação de suas necessidades. Contudo, o sistema mercantil vai reduzir e aviltar essa atividade, subjugando-a sob a forma denominada "trabalho". O capital universalizará essa forma de exploração, vinculando-a ao salário. Atualmente, essa é a única possibilidade de sobrevivência para a maioria das pessoas, a única maneira de existir do proletariado. Assim, o trabalho tornou-se a atividade central do homem.
A ideologia burguesa confunde propositalmente a essência do homem com a sua alienação, o trabalho. A palavra "trabalho", que designa uma forma muito particular de atividade humana, soa hoje aos ouvidos como um sinônimo de "atividade", visto que, para a maioria dos homens, o trabalho chegou a ser a totalidade de suas atividades. Logo, atuar significa "trabalhar" e ser ativo entende-se como ser "trabalhador". A hipocrisia e o cinismo da linguagem burguesa culminam em expressões tais como "fazer trabalhar o dinheiro", imagem de uma riqueza hermafrodita, reproduzindo-se por si própria, como se por trás do dinheiro não se encontrassem os braços, o suor e o sangue daqueles de quem é extorquida a mais-valia, fonte de enriquecimento dos capitalistas.
Portanto, a palavra trabalho denomina uma forma determinada de atividade humana, intrinsecamente ligada ao sistema mercantil. É preciso entender o trabalho como atividade humana estranha ao homem, à manifestação de sua vida e à consciência que ele tem dela. O trabalho é a escravidão assalariada, a redução do homem à lamentável condição de trabalhador.
II. "O trabalho é o ato de alienação da atividade humana prática." - (Marx - Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844)
O trabalho é a expressão alienada da atividade humana; a manifestação da vida como estranhamento e perda da vida. O caráter alienado do trabalho aparece de diferentes maneiras. Em primeiro lugar, através do objeto produzido. Este, de fato, não pertence ao proletário. Obrigado a vender a única mercadoria que lhe pertence, sua força de trabalho, e a alienar sua atividade na mercadoria que produz, o proletário constata que sua vida não lhe pertence mais. O estranhamento de si no e através do trabalho decorre, pois, da necessidade, para o proletário, de vender sua força de trabalho para produzir uma mercadoria que lhe é totalmente estranha.
O trabalhador não encontra qualquer satisfação no resultado do seu trabalho. Mesmo quando o objeto criado é de seu interesse imediato, o trabalhador não pode utilizá-lo. O absurdo de tal situação aparece, em toda a sua cruel dimensão, no seguinte exemplo. Um grupo de operários trabalha numa fábrica, cuja temperatura ambiente é superior a 35 graus. Esses operários sufocam de calor, enquanto produzem aparelhos de ar condicionado e ventiladores...
O proletário não se aliena somente no produto de sua atividade, mas em sua própria atividade. Sua atividade produtiva já não lhe pertence. De fato, o trabalho é exterior ao trabalhador, mas sendo a única atividade que lhe permite obter seus meios de sobrevivência no sistema capitalista, ele se vê obrigado a exercê-la. O trabalho é, pois, a atividade não-livre no mais alto grau. Escravidão assalariada, o trabalho só pode ser constrangido e forçado. "O caráter alienado do trabalho aparece claramente no fato de que, desde que não exista um constrangimento físico ou qualquer outro, fugimos dele como se fosse a peste." (Marx - Manuscritos)
No trabalho, o indivíduo não se afirma, se nega. Da mesma maneira que investe a sua vida no objeto, o proletário abandona sua existência à atividade de produção desse objeto. "Se o produto do trabalho é a alienação, o próprio trabalho deve ser alienação em ato... A alienação do objeto do trabalho não é mais que o resumo da alienação, o estranhamento de si, dentro da própria atividade do trabalho." (Marx - Idem)
O trabalho, atividade produtiva submetida ao capital, torna-se, para o proletário, atividade passiva, força impotente. Perda de si e do objeto, o trabalho acarreta ainda a perda do outro. O trabalho torna o homem estranho ao próprio homem, separa a vida individual da vida da espécie humana.
O que distingue o homem do animal é que o animal se identifica totalmente com a sua atividade vital. Ele "é" essa atividade. O homem faz de sua atividade o objeto de sua vontade e de sua consciência. Quando a atividade vital do homem se aliena, no sistema mercantil, o produtor é reduzido à condição de trabalhador. Ou seja, é obrigado a fazer de sua atividade consciente um simples meio de subsistência, um meio de existir, um trabalho.
A atividade vital deveria ser a livre expressão do homem; a produção pelo homem de um mundo objetivo, no qual ele poderia contemplar-se e se reconhecer. Mas essa produção de sua vida genérica ativa, uma vez subjugada ao capital e reduzida a trabalho, aliena a atividade vital do homem na produção de mercadorias. A atividade vital do homem se degrada a meio de sobrevivência. "O que é verdade, a respeito da relação do homem com o seu trabalho, o produto de seu trabalho e a si próprio, é verdade também a respeito da relação do homem com o outro homem, assim como ao trabalho e ao objeto do trabalho do outro homem." (Marx - Idem)
Sob o domínio do capital, a consciência do gênero humano, a consciência da espécie, isto é, de si e do outro, é aniquilada. Quando ocorrem, as manifestações de solidariedade proletária nada mais são do que um vestígio da consciência genérica do homem que compreende que os seus próprios interesses coincidem com os interesses da comunidade humana; consciência de um ser humano genérico, que somente pode entender a livre satisfação de suas necessidades e desejos como desfrute coletivo.
III. A abolição do trabalho encontra sua forma política na emancipação do proletariado.
Acabamos de ver que o ser humano, alienado pelo trabalho, não se pertence mais. Mas se não se pertence mais, deve pertencer a outro. Se a atividade humana tornou-se um tormento para o operário, é necessariamente em proveito de outro. Através do trabalho, o proletário não só (re)produz uma relação estranha com o seu produto, mas também a dominação dos que não produzem, dominação que se exerce sobre o produto, sobre a atividade produtiva e sobre o produtor. Nada justifica que a atividade humana seja alienada que se transforme em trabalho, a não ser o interesse da classe dominante. O proveito que tira a burguesia de sua dominação impede-lhe de ver mais além de seus próprios interesses de classe. A classe social que libertará a humanidade do trabalho só pode ser aquela que mais sofre com os seus maléficos efeitos. A emancipação universal do homem depende da emancipação do proletariado, porque esta classe concentra, na sua relação com o trabalho, toda a opressão do homem.
Ao proletariado, auto-organizado em classe e portanto em partido, cabe a tarefa histórica de libertar a humanidade do trabalho. E de solucionar, de uma vez por todas, os antagonismos entre o homem e a natureza, entre a sua atividade e o seu desfrute, entre sujeito e objeto, entre o indivíduo e a espécie humana.
IV. Abaixo o trabalho !
Agora talvez se possa ver mais claramente em porque as exigências sindicalistas e esquerdistas de "direito ao trabalho" e "garantia do emprego" são eminentemente reacionárias. Os proletários sabem que, no capitalismo, o trabalho é a sua única maneira de subsistir e que, neste sentido, não trabalhar é estar condenado à mendicância, à delinqüência ou à morte pela fome. Portanto, a exigência de emprego, feita pelo operário, é a exigência de alimentação, vestuário e outros bens necessários para ele e sua família. Mas reivindicar trabalho para todos dentro do sistema burguês é fazer crer que isto é possível; é negar o caráter catastrófico do capitalismo, sua incapacidade de abolir o desemprego que ele próprio cria.
Nós, comunistas internacionalistas, afirmamos que a reivindicação de trabalho para todos é utópica, baseados no fato de que, se o capital não criou emprego para todos e a nível mundial em tempos de prosperidade, seria tolice imaginar que possa fazê-lo em plena crise. A reivindicação é reacionária, porque corresponde a uma visão idealizada do sistema capitalista e ignora a natureza contraditória do capital, cuja ditadura é a da riqueza que cria miséria. Ideólogos do capital, os economistas e outros defensores do trabalho alheio tentam explicar que o trabalho é necessário porque "confundem" produção de mercadorias e riqueza social. É, pois, hipocrisia das mais sórdidas apresentar o trabalho como a única fonte de riqueza. O trabalho, no sentido de atividade alienada, é a perda do homem. "Eu digo que o trabalho, não só nas condições presentes, mas em geral, na medida em que seu objetivo é o simples aumento da riqueza, é prejudicial e funesto." (Marx - Manuscritos de 1844)
Em vez da exigência reacionária: "um salário justo para um dia de trabalho justo", Marx nos propõe a consigna revolucionária: "Abolição do sistema salarial". Da mesma maneira, desmascarando o oportunismo das reivindicações de "trabalho para todos", contrapomos a palavra de ordem do programa comunista: "Abaixo o trabalho!"
V. Trabalho, lazer e comunismo.
"Em todas as revoluções anteriores, o modo de produção não se alterava. Tratava-se, apenas, de uma nova divisão do trabalho. A revolução comunista, pelo contrário, é dirigida contra o modo de produção anterior, ela suprime o trabalho e a dominação de classes, suprimindo as próprias classes." (Marx - Manuscritos de 1844)
O comunismo destrói o modo de atividade específico ao sistema capitalista: o trabalho, essência da propriedade privada. Ao mesmo tempo que suprime o trabalho, suprime a organização do lazer como complemento indispensável ao trabalho alienado.
O lazer nada mais é do que o tempo que o capitalista concede ao proletário para que este reconstitua sua força de trabalho, além de ter como função aliviar a frustração acumulada durante a jornada de trabalho. O lazer não corresponde a tempo livre, uma vez que só se trata, para o capital, de que o proletário retorne ao posto de trabalho, em boas condições de saúde. O capital opõe tempo de trabalho e tempo de lazer; separa as duas atividades e, no entanto, torna-as complementares. A escola já inculca essa separação na mente do futuro trabalhador: "Vocês estão aqui para trabalhar e para brincar, mas nunca façam as duas coisas ao mesmo tempo!".
Mas a atividade humana é uma totalidade. Neste sentido, a sociedade comunista não tem nada a ver com uma sociedade de lazeres, mera idealização do pólo "positivo" do sistema capitalista. À separação trabalho/lazer, o comunismo contrapõe a atividade vital que é o desfrute, o desfrute que é a atividade vital. "A atividade e o desfrute, tanto pelo seu conteúdo quanto pela sua origem, são sociais: atividade social e desfrute social." (Marx - Manuscritos de 1844)
O comunismo suprime a oposição entre tempo de trabalho e tempo de lazer, entre produção e aprendizagem, entre o que é vivido e experimentado. Isto não é de modo algum uma antecipação idílica, uma visão rósea do futuro, mas a expressão do próprio movimento da história mundial. Longe de ser casual, este movimento é o resultado do desenvolvimento das forças produtivas, que torna mais atuais do que nunca a possibilidade e a necessidade do comunismo.
A abolição do trabalho como atividade humana alienada é um ponto essencial do programa comunista, que o proletariado cumprirá ao abolir-se com a supressão de todas classes. Às quarenta (ou mais) horas semanais de trabalho, à tortura de acordar cedo, à angustiante busca de emprego, à sorridente hipocrisia dos gestores do capital que demitem sem contemplações, às cotidianas idas e vindas (do trabalho para casa, e vice-versa) de pé e comprimido nos meios de transporte de massas, ao embrutecimento das horas "livres", aos ritmos de trabalho infernais, aos "acidentes" de trabalho, à propriedade privada, à exploração do homem pelo homem; enfim, ao capital, contraporemos a nossa força e o nosso saber na construção de uma sociedade sem trabalho, uma sociedade comunista que garanta a livre disposição do tempo enquanto desenvolvimento da atividade humana.
"Se a atividade produtiva livre é o maior prazer que conhecemos, o trabalho é a tortura a mais cruel, a mais degradante. Nada é mais terrível do que fazer, o dia todo, uma coisa que nos repugna. Quanto mais sentimentos humanos tem um proletário, tanto mais detestará o seu trabalho, porque sofre com a opressão e a inutilidade que o trabalho representa para ele."
Engels, Friedrich - A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, 1845.




Veja também:
A recusa do trabalho (Comitato Operaio di Porto Marghera, 1970)
Abolição do trabalho e a questão do circuito produtivo global no comunismo (Joseph Kay / Libcom, 2008)


.