quinta-feira, 26 de junho de 2014

Materialismo

"[...] não existe  [algo] que não seja visto por meio de alguma forma [eideos]. Creio que os próprios nomes tenham sido atribuídos por meio das formas. É absurdo e impossível acreditar que as for­mas brotem dos nomes. Os nomes são estabelecidos pela convenção, enquanto a forma brota da natureza." Hipócrates de Cós,  Acerca da Arte (Peri Tékhne). 

Matéria e forma
Demócrito, o filósofo que ri.

A afirmação de que a substância gera suas formas é o que nos leva a nos considerar materialistas.

Ao contrário, os imaterialistas afirmam que as formas são impostas do alto e de fora (ou do passado, ou futuro) sobre uma substância inerte e informe. Assim, eles são dualistas, ou seja, dividem o universo em dois princípios distintos: ativo e passivo, comandante e comandado, espírito e matéria, alma e corpo, sujeito e substância, vontade e paixão...

O modelo imaterialista é antropomórfico: a escultura  é uma matéria que recebeu suas formas do escultor, assim como, analogamente, o universo "perfeito como um relógio" provaria que existe um ser exterior que impõe formas "perfeitas" sobre a matéria bruta.

Em contraste, no modelo materialista, todas as formas surgem pela própria matéria, imanentemente.  Por exemplo, a forma redonda, esférica, do planeta terra, é causada simplesmente por sua matéria e nela. Do mesmo modo, univocamente, é a matéria que causa, conforme o modo de sua disposição, todas as formas: corporais, espirituais, humanas, minerais, animais, ideais, técnicas, culturais..., isto é, tudo o que conhecemos. Mais precisamente: tudo surge, se mantém e age pela confluência de determinações simultâneas (sem finalidade e sem pré-determinação, que são apenas práticas humanas) e morre quando essa confluência se desfaz.

Não faz sentido acusar o materialismo de tentar "reduzir tudo" à  matéria, porque, segundo ele, a matéria é irredutível à mente, à representação - já que a matéria é infinitamente mais rica e complexa do que qualquer de suas formas. Nessa perspectiva, o espírito, por exemplo,  é uma forma da matéria e, enquanto matéria, irredutível e atuante. Ele tem certa autonomia (potência), embora  temporária e nunca absoluta, pois nenhuma forma é indiferente, incondicional, exceto se deixar de existir.


Forma indiferente e hierarquia

Supor a existência de uma ou várias formas indiferentes é supor a existência de um inacessível, de uma realidade oculta, incondicional, uma verdade escondida pelas aparências. A hierarquia se legitima na submissão àqueles que afirmam ter o privilégio de acessar o inacessível, secreto, sagrado (hierós, ἱερός). O imaterialismo legitima necessariamente a hierarquia, o poder, ou seja, a violência.

É certo que as pessoas devem acreditar no que acharem melhor, pois isto é um problema delas e que só diz respeito à elas. Mas quando um exército de seguidores erige uma hierarquia, uma relação social autoritária que se acredita representar uma forma incondicional (não só deus, universo oculto, mundo espiritual... mas igualmente o mito da pátria, da nação, do povo especial, da terra sagrada e da família, como também o da "mão invisível", econômica ou ecológica, e o das formas holísticas e vitalísticas), essas pessoas necessariamente tratam as demais como inferiores, indivíduos meramente relativos que devem se curvar ao "absoluto" ao qual o líder teria acesso. É sobretudo por esse motivo que vemos a necessidade premente de sair à público em defesa do materialismo, que é o antídoto cirurgicamente específico contra todas as tendências obscurantistas.

Forma e matéria das idéias
O Jovem Rembrandt como Demócrito

A tradição materialista (desde a antiguidade, por ex., Epicuro e sua aisthēsis) se caracteriza por afirmar que as aparências são sempre verdadeiras (detalhes aqui), mesmo que descubramos, depois, graças a novas aparências, que estávamos enganados. Somente as aparências dão os conteúdos,  os materiais,  que  confluindo com os dispostos pela imaginação e pela memória formam imanentemente idéias,  pensamentos, conceitos. As aparências cujo acesso não é individualmente exclusivo são chamadas evidências. Estas são verificáveis e comunicáveis entre os seres humanos, que, de diversos pontos de vista, compartilham suas diferentes impressões e podem assim fazer uma idéia mais ampla e potente daquilo que vêem, do que poderão fazer e de seus fins. 

Uma cultura materialista, baseada em evidências, é o único antídoto contra os boatos, notícias falsas, conspiranóias, desconfianças paranóicas, medos, fobia de bodes expiatórios ("estrangeiros", "judeus", "favelados criminosos", "financistas maléficos"...), que só são úteis para uma classe dominante legitimar seu poder enquanto os proletários (submetidos à condição de "classe média", isto é, vendedores-compradores "livres e iguais", como se, por livre e espontânea pressão, não se arrastassem para vender a si próprios no mercado de trabalho e reduzir suas capacidades de pensar e agir a meros objetos de consumo, para as empresas, particulares e estatais), desconfiando de si mesmos, são imbecilizados a ponto de atenderem instantaneamente ao comando de massacrarem a si mesmos.


Não é preciso recorrer a qualquer autoridade que reivindique um acesso privilegiado a uma verdade oculta.  As experiências comuns cotidianas (chamadas triviais, "banais") são suficientes. E esta é a base da própria filosofia. O campo da filosofia são as coisas que de tão comuns, rotineiras, óbvias e ululantes,  perdemos a consciência delas, e elas ficaram de fora do pensamento e se tornaram repetição mecânica, estereótipo. Filosofar é considerar o que todos achamos saber mas que nunca tínhamos parado para pensar.

É meramente por experiências triviais, comuns, que afirmamos que qualquer algo só surge entre outros algos, nunca num absoluto, que nada é indiferente e tudo se forma através de uma confluência  de determinações simultâneas, ou seja, que tudo é matéria. Se um dia encontrarmos uma evidência de uma forma indiferente, imaterial, poderemos dar o braço a torcer para os imaterialistas, mas só encontramos evidências de que uma diferença indiferente, incondicional, não passa de pura indiferença, ou seja, nada.

Essas evidências da experiência comum bastam para conceituarmos "matéria" de um ponto de vista filosófico e prático. Quanto à afirmação de que tudo são partículas subatômicas, ondas, unicórnios quânticos ou campos, esta não é uma questão filosófica, pois a verdade dessas afirmações não pode ser suficientemente confirmada por evidências de nossas experiências comuns e corriqueiras, mas apenas por experimentos caros e complexos acessíveis somente às autoridades científicas (comunidade científica). Não se trata de desprezar a ciência, que é valiosíssima, mas de saber reconhecer corretamente o seu campo de aplicação e validez.

La Mettrie

Contra o cientificismo e a tecnocracia

O cientificismo deixa de lado a experiência comum cotidiana considerando-a sem valor e pretende confiar apenas nas autoridades científicas (no veredito da comunidade científica). Criam assim uma outra forma de credo propenso a se conformar acriticamente a uma hierarquia tecnocrática. Além disso, o cientificismo faz a experiência cotidiana comum ficar de fora do pensamento, deixando um vazio que será ocupado por pseudo-explicações místicas, mágicas e religiosas. Assim, não causa surpresa ver o quão frequentemente o cientificismo se revela o outro lado da moeda místico-religiosa.

Mas o principal é que, por definição,  a ciência se ocupa de descrições da realidade e do aprimoramento de meios técnicos, não dos fins. Logo, a idéia de governo científico,  gestão eficiente, ou tecnocracia , é uma fraude, porque oculta as finalidades, confundindo-as com meros meios. O tecnocrata é portanto o alter ego do teocrata, cujos fins são ocultos, "mistérios".

Para as finalidades, ou temos a religião ("mandamentos", inclusive a superstição da "mão invisível" da economia e ecologia), o instinto (incluindo o hábito, inculcado pavlovianamente), ou o pensamento (ou seja, a filosofia). Defendemos que os melhores fins são os feitos com o pensamento, em especial o materialista, paixão-pensante-praxis que busca criar e submeter os fins à expansão da potência de agir e de pensar dos indivíduos e, portanto, da humanidade.


Humanaesfera, junho de 2014


Bibliografia 

  • Lucrécio - Da Natureza das Coisas (De Rerum Natura)
  • Baruch Espinoza - Ética
  •  Jean Meslier - Ateísmo e Revolta, os manuscritos do padre Jean Meslier (Paulo Jonas de Lima Piva)
  • La Mettrie - O Homem-máquina
  • Holbach - Sistema da Natureza
  • Hegel - Fenomenologia do Espírito
  • Marx - Manuscritos econômicos e filosóficosA Ideologia Alemã, Grundrisse
  • Joseph Déjacque - A humanisfera 
  • Bakunin - Deus e o Estado
  • Michel Serres - O Nascimento da Física no Texto de Lucrécio
  • Deleuze & Guattari - Capitalismo e esquizofrenia, volume I (O Anti Édipo) e II ( Mil Platôs)  

.