sábado, 13 de outubro de 2012

Socialismo, comunismo e capitalismo - só palavras surradas? por Commie Rag (1983)


(tradução por Humanaesfera de “Have You Checked Your Labels Lately?”, publicado no zine Commie Rag, 1983)

Socialismo, comunismo e capitalismo estão entre as palavras mais usurpadas do mundo.  Todas elas se referem a sistemas sociais que, ao menos em teoria, se desdobrariam historicamente um do outro. Neste período de crise, com potencial para uma transformação social imensa, é necessário esclarecer esses termos se quisermos obter uma visão mais clara do futuro.

Socialismo é uma palavra cujo radical significa sociedade. Originalmente, se referia a um modo de vida no qual todos os meios de produzir nossas necessidades seriam controlados pela sociedade como um todo. Isso acarretaria a livre associação mundial dos seres humanos, cada associado sendo um co-proprietário do vasto leque de recursos do mundo, sejam eles naturais ou fabricados. A comunidade global iria coletivamente decidir como satisfazer suas necessidades com os recursos disponíveis. Isso acarretaria o desaparecimento do trabalho assalariado - isto é, a venda da capacidade de trabalhar em troca de um ganho de acesso à riqueza social -, o desaparecimento da separação em nações e empresas, o desaparecimento do dinheiro e de todas as formas de troca. Uma vez que as novas relações sociais amadurecessem, elas se tornariam um elemento inconsciente da atividade cotidiana, e este modo de vida seria conhecido como comunismo.

O capital é uma relação social, uma relação entre pessoas expressa através de coisas. Produtos eram trocados nos sistemas sociais anteriores, embora o campo da troca era muito mais limitado e sua ocorrência era muito menos frequente. Mas no capitalismo, a força de trabalho se torna uma mercadoria, algo que é comprado e vendido. Os trabalhadores vendem seu tempo disponível em troca do dinheiro necessário para reproduzir eles próprios como trabalhadores. Por outro lado, aqueles poucos que são donos ou controlam os meios de produção e/ou fundos de investimento, sejam eles proprietários corporativos ou burocratas estatais, obtém controle sobre o tempo e a energia dos trabalhadores, e assim podem forçá-los a produzir além de suas necessidades. O controle dos capitalistas sobre os produtos significa que, ao vendê-los, eles são capazes de extrair um lucro do excedente (além das despesas) que é produzido desse modo. Uma parte desse lucro é usado para seu próprio consumo e despesas improdutivas, tal como sustentar o governo e controlar o dinheiro. Mas os lucros servem primariamente para o reinvestimento na atividade fazedora de lucros. É assim que os investimentos crescem. E o crescimento é a razão do capital existir, sua prioridade suprema, mesmo se o crescimento requerir guerras.

A sobrevivência do capital, bem como sua potencial derrubada, depende da classe trabalhadora. Esta classe social inclui todos aqueles que tem pouco mais do que sua força de trabalho, sua capacidade de executar trabalho. Muitos deles são escravos assalariados. Outros, como as donas de casa, realizam tarefas necessárias para manter a força de trabalho sem serem pagos. Outros estão sendo treinados para se venderem - por exemplo, os estudantes. E outros, definhando nas margens da sociedade, não podem nem sequer ser usados.

A classe trabalhadora não apenas produz toda a riqueza que existe na forma útil, mas também enriquece e dá poder aos proprietários/controladores de capital. A atividade dos trabalhadores os esgota, enquanto fortalece as forças impessoais que dominam suas vidas. Suas próprias energias criativas são transformadas numa entidade aparentemente independente, o capital, que se torna cada vez mais forte e imponente, e confronta-o como uma fato “dado” da vida, semelhante às condições meteorológicas. Fora do trabalho, atividades tais como deslocamento e entretenimento passivo reforçam nosso papel como trabalhadores para o capital. Mesmo quando a sobrevivência não está em questão, a vida de um escravo assalariado é tão tediosa quanto uma esteira ergométrica em comparação com as vidas criativas apaixonadas que poderíamos viver dentro de uma estrutura social diferente. (...)


Esforçando-se para assegurar o crescimento contínuo de seu capital, a elite dominante em todo o mundo é dirigida pela dinâmica da competição global (e também pela cobiça) para extrair o máximo das forças de trabalho, substituí-las por máquinas onde for possível, e, onde isso não for viável, tentar fazer as pessoas agirem como máquinas. Isso levou a conflitos sociais desde o início sangrento do capital, já que os trabalhadores são forçados a tomar ações drásticas para proteger seus padrões de vida.

O socialismo e o comunismo foram de início propostos como objetivos por ativistas no movimento da classe trabalhadora do início do século XIX. Eles acreditavam que os conflitos de classe iriam escalar, e apresentariam à classe trabalhadora tanto uma oportunidade quanto uma necessidade de destruir a estrutura social e viver de modo diferente. Marx e a maioria de seus contemporâneos viam o socialismo e o comunismo como surgindo da continuidade do conflito social. Junto com outros, Marx insistia que a revolução deve ser obra dos próprios trabalhadores. Ele via sua obra teórica como suprindo o movimento com ferramentas analíticas para ajudar a alcançar o objetivo de “ abolição do sistema salarial”.

No fim do século XIX, o movimento degenerou, em parte devido ao aparente sucesso do capitalismo em resolver suas crises periódicas de superprodução (depressão). Os socialistas mais proeminentes vieram a redefinir socialismo como um processo evolucionário cujo objetivo seria a redistribuição do dinheiro. Na visão deles, um partido, composto de intelectuais e especialistas, ou seja, eles mesmos, conquistaria o governo, e gradualmente o Estado iria adquirir controle dos meios de produção em nome da sociedade.

Essa identificação da sociedade com o Estado, uma instituição cujo propósito é justamente a opressão de classe, foi e é uma posição que serve aos interesses de burocratas ávidos por poder, hoje conhecidos como social democratas. Eles ainda recrutam em partidos pelo mundo que são auto-intitulados socialistas (e até comunistas). Tal como os partidos abertamente pró-capitalistas, esses partidos no poder do Estado sempre significaram austeridade para a classe trabalhadora, centralização do poder, e salvaguarda do “interesse nacional” no combate militar e comercial com outros Estados. Afinal, a chegada deles ao poder simplesmente significa que eles se tornaram controladores do capital nacional. Um exemplo perfeito disso é o governo Mitterand na França.

Na década de 1910, a crise capitalista voltou pior do que nunca. Foi a primeira depressão global e fonte da subsequente guerra mundial. Muitos romperam com os social democratas, que geralmente apoiavam os vários esforços nacionais de guerra. Entre estes, estavam gente como Lenin e Trotsky, que concordavam com o conceito de socialismo como controle estatal, mas rejeitavam a idéia de evolução pacífica. Desse modo, eles favoreciam um partido de elite e relativamente secreto cujo objetivo seria dirigir os trabalhadores para o socialismo pela conquista do poder do Estado. Eles admiravam a produção em massa, a administração científica e a disciplina fabril, e consequentemente modelaram seu partido como uma hierarquia industrial.

Onde essas vanguardas conquistaram o poder, como na União Soviética, Cuba, Angola e nos assim chamados Estados socialistas, o capitalismo de Estado reina. A sobrevivência material da população é permitida em troca do controle draconiano sobre cada aspecto da vida cotidiana. O Estado exige trabalho árduo e baixos salários do mesmo modo que os patrões privados. E, dado que as entidades do Estado capitalista são dependentes o mercado mundial (do mesmo modo que a IBM e a Exxon), elas estão  se tornando incorporadas na estrutura global de dívida e fazendo negócios com multi-nacionais. Muitos executivos de multinacionais são atraídos pelo prospecto de uma força de trabalho controlada (livre de greves) e por contratos de investimento favoráveis em lugares como o Zimbabwe (Citicorp Bank), Bulgária (Pizza Hut – Pepsi) e China (Volkswagen).

Nos EUA, essas vanguardas são divididas em pequenas seitas em conflito. Elas organizam campanhas de apoio a todos os tipos de lutas exceto ao combate contra o trabalho assalariado. Elas usam o sentimento de culpa das pessoas e seu desejo por ação imediata para recrutar tropas para suas máquinas. É improvável que consigam influência substancial – e muito menos sobre o poder do Estado -, mas elas conseguem desviar a atenção e confundir (isso sem mencionar a péssima imagem que passam da palavra revolução).

Uma distorção atualizada do socialismo é a visão predominante dentro da esquerda americana, tal como a exemplicada pelo congressista de Berkeley Ron Dellims, o escritor “socialista” Michael Harrington, e o Citzens Party. Ele vêem o socialismo como a propriedade de cada empresa por uma cooperativa de trabalhadores , a divisão das grandes empresas e o apoio às pequenas, a nacionalização de alguns setores, e a coordenação de toda essa salada pelos planejadores estatais. Em outras palavras, eles propõem tratar tanto dos problemas do mercado “livre” (competição encarniçada) como da ineficiência do controle estatal combinando os aspectos desejados de ambos.

 Mas o controle e/ou propriedade de uma empresa pelos trabalhadores não reduz as pressões de mercado que todas as companhias encaram – vencer as rivais ou falir. Trabalhadores numa cooperativa com frequência recorrem a intensificação de seu próprio trabalho, ao corte de seus próprios salários, e até mesmo despedem a si mesmos, para que a empresa possa sobreviver. E forçar as empresas a se tornarem e/ou serem pequenas pouco ajuda na sua competitividade. Enquanto isso, os planejadores estatais teriam enormes dificuldades para reconciliar sua necessidade de centralizar a tomada de decisões com o padrão descentralizado de propriedade cooperativa. Além disso, qualquer esforço de economia planejada rapidamente descobriria que os EUA são uma mera parte do mecanismo do mercado mundial, e, fora de suas fronteiras, outros planos estão em andamento. Infelizmente, esta gororoba é o que os media apresenta como “socialismo”.

Não surpreende que o significado das palavras seja distorcido. O verdadeiro significado de socialismo foi articulado em palavra e prática ao longo do último século. O movimento anarquista, um elemento do movimento socialista original, está experimentando hoje uma reemergência global. Ele constestou de forma consistente a legitimidade do poder estatal e das estruturas sociais autoritárias. Socialistas tais como Rosa Luxemburgo, Anton Pannekoek, Sylvia Pankhurst, Paul Mattick e Guy Debord mantiveram vivo o conteito de socialismo como abolição da escravidão do salário e como estabelecimento de uma comunidade mundial.  Várias vezes na história, surgiram movimentos que desafiaram a própria essência das relações sociais existentes. Durante até um ano, trabalhadores estabeleceram o controle social dos recursos produtivos em lugares como Espanha, Rússia, Polônia, Itália, Alemanha, Brasil, China, Canadá e mesmo os EUA (a greve geral de Seattle de 1919). E em muitas outras vezes, a população contestou o controle social. E hoje, com uma nova depressão mundial, vemos uma nova onda de rebelião.

Como Rosa Luxemburgo mostrou, o próprio capitalismo é um “estágio transitório” entre todas as formas prévias de sociedade e o começo do que Marx chamou “história realmente humana” – a história dos indivíduos humanos livremente associados, infinitamente ricos em sua diversidade e suprimindo todas as divisões em classes e nações.

A maioria das pessoas que se consideram de esquerda desprezam a possibilidade de uma transformação anti-capitalista anti-autoritária. Isto se deve a uma mistura de falta de compreensão do capitalismo, cinismo sobre a natureza humana e um desejo por poder. Afinal, muitos “ativistas” são formandos de faculdade que apenas transferiram suas ambições de carreira para outros campos.

Uma insurreição social nunca será televisionada nem dirigida. Muito provavelmente, os líderes vão tentar correr para alcançar as “massas ignorantes”. Os líderes foram deixados para trás quando os trabalhadores russos estabeleceram conselhos operários em 1905 e comitês de fábrica em 1917; foram deixados para trás quando os estudantes franceses e os trabalhadores fizeram uma greve geral e a ocupação de campus universitários e fábricas em maio de 1968; e quando jovens proletários negros, brancos e asiáticos expulsaram a polícia de seus bairros e redistribuiram bens na Inglatera em 1981. Quando os vários movimentos autônomos pelo mundo começam a cooperar, eles começam a clarificar sua compreensão do passado e suas visões do futuro. Quando eles afirmarem seus desejos coletivos, este será o dia em que o capitalismo acabará e o socialismo se realizará.

(Commie Rag, janeiro de 1983, Nº 3)


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