quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Contra o patriotismo - contra o nacionalismo - abaixo as fronteiras nacionais!


Pertencer a uma pátria ou nação parece algo natural, dado. As pátrias ou nações supostamente surgiram como reconhecimento do fato  "óbvio"  de que o mundo é naturalmente dividido em diferentes povos que compartilham, cada um, uma mesma história, tradição, língua, cultura ou religião desde tempos imemoriais.

No entanto, isto é puro mito. A história nos mostra amplamente e sem sombra de dúvidas que todas as características nacionais ( história, tradição, língua, cultura ou religião) estão longe de serem algo "natural". Elas nada mais foram do que o resultado da concorrência (militar e comercial) encarniçada e sangrenta entre as diversas classes dominantes  por demarcar territórios e instaurar seus Estados, submetendo a população por toda parte para usá-la como bucha de canhão nas guerras empresariais e bélicas que as próprias classes dominantes travam entre si. A língua, a cultura, a tradição e a história que parecem hoje "dados da natureza" que demarcam  os povos em diferentes nações, na realidade foram impostos pela força bruta. São puras artificialidades.

Acumulação do capital é acumulação da força bruta: assim surgiram as nações

Antes dos Estados-nações, os Estados se limitavam ao tamanho de cidades, isto é, eram cidades-Estados, sempre vizinhas de outras com uma miríade de línguas e culturas. Os impérios (como o império romano, chinês e egípcio) em geral nada mais eram do que um reino de uma cidade-Estado que cobrava tributos dos reinos de outras cidades-Estados por eles submetidas pela força bruta. As vezes, uma cidade-Estado imperial conseguia impor uma única língua e cultura sobre outras cidades-Estados. Por exemplo, o latim dos romanos foi imposto a quase todas as cidades do sul da Europa  (latim que, de tanto ser falado "errado" após a queda do império, deu origem ao português, francês, italiano...). Porém, não havia ainda nações propriamente falando.

A necessidade de instituir Estados tão poderosos que eram como que entidades abstratas capazes de impor um poder armado sobre territórios que abrangiam não só mais de uma cidade, como também tendiam a se expandir indefinidamente para regiões cada vez mais amplas do mundo decorreu do surgimento de um novo tipo de classe dominante que não identifica mais seu poder com uma cidade ou reino específico. Essa nova classe se identifica pela necessidade de expansão  sem restrição da acumulação do capital pelo planeta inteiro - o que implicava a necessidade de uma correspondente ampliação e monopolização do poder armado (Estado) como nunca antes visto, sobre territórios cada vez maiores e independentemente de cidades específicas. O Estado-nação foi criado pelas necessidades de acumulação da classe capitalista.

O primeiro e mais primitivo ensaio de Estado-nação, os reinos-impérios multicontinentais de Espanha e Portugal (século XVI), foi impulsionado e financiado pela necessidade dos capitalistas comerciais das cidades-Estados italianas (Gênova, por exemplo) por proteção e poder armado para impor negociações em mercados  cada vez mais lucrativos e mais amplos (abrangendo potencialmente o mundo inteiro), com o fito de vencer a concorrência com seus pares de classe, de modo a garantir para si lucros cada vez maiores.

Mas como o motor da acumulação do capital é a competição,  logo a seguir  (século XVII)  surgiu outra nação concorrente, as Províncias Unidas (Holanda), que reunindo um monopólio de poder armado marítimo nunca antes visto na história, conseguiu vencer a guerra contra a Espanha e conquistar  o controle de rotas comerciais muito mais lucrativas (Ásia) do que seu concorrente.

Desde o primitivo sucesso  lucrativo de ensaio de Estado-nação, o capital financiou o surgimento de nações, isto é, acumulações abstratas de poder armado, inicialmente por toda a Europa, e depois no mundo inteiro,  sempre na expectativa, a cada momento, de fazer surgir melhores possibilidades  de maximilizar a acumulação do seu capital de modo a vencer a concorrência com  outros capitais já estabelecidos. Assim, enchendo o mundo de fronteiras, foi estabelecido o mercado mundial.

A guerra generalizada passou a ser rotina periódica, plasmando a cada convulsão bélica as fronteiras entre nações até chegar às fronteiras que existem atualmente no mundo inteiro e até chegar a uma mesma e  homogênea  língua ou cultura imposta sobre a população dos respectivos territórios nacionais.

"Se a corja vil cheia de galas nos quer à força canibais, logo verão que as nossas balas são para os nossos generais" (trecho de A Internacional)

Em suma, não há absolutamente nenhum argumento honesto que justifique que defendamos qualquer nação ou pátria. Muito pelo contrário: defender a pátria, qualquer que seja, sempre e em qualquer caso, é sacrificarmo-nos para defender nossos próprios opressores (é ser bucha de canhão deles, que nunca vão eles mesmos à carnificina dos campos de batalha), e pior ainda, é trair e assassinar nossos irmãos de classe do outro lado das fronteiras estabelecidas pelos mesmos opressores.

A solidariedade é nossa única arma. Sem ela somos sempre perdedores diante da classe dominante, que nos divide dentro de empresas e nações em concorrência, fazendo-nos sujeitar a seus ditames.  Todo proletário em luta contra seus opressores, em qualquer lugar, é um aliado.  O proletariado não tem pátria. Isso se chama "internacionalismo proletário". 

Só é possível parar de sermos perdedores quando, em todos os lugares, nos solidarizamos e estabelecemos relações sociais que ultrapassam e minam toda divisão em empresas e todas as fronteiras nacionais. Ou seja, nem mais nem menos do que estabelecer a livre associação dos indivíduos em escala mundial, isto é, o comunismo, a sociedade sem classes, sem hierarquia, sem Estado. Trata-se de instaurar a comunidade mundial que, suprimindo a propriedade privada e as fronteiras, liberta os meios de produção e de vida e disponibiliza-os gratuitamente para a população em livre associação usá-los na expressão e desenvolvimento universal de seus sentidos, desejos e aptidões: artísticas, culinárias, arquitetônicas, urbanistas, amorosas, racionais, nômades, técnicas, numa conflituosidade lúdica generalizada que supera e torna impossível a velha e  suicida concorrência bélica e capitalista.

O nacionalismo continua a enganar os despossuídos porque qualquer outra perspectiva que não a defesa de sua própria exploração (a união com seus próprios patrões contra outros despossuídos) ainda lhes parece irrealista (utópica) e vazia. Concorrendo entre si para serem explorados por seus patrões (na esperança de um dia eles mesmos ascenderem como patrões), eles identificam outros explorados concorrentes como se fossem a causa de sua própria exploração e desemprego, e se tornam presa fácil de ideologias de ódios étnico e xenofobia que faz deles um rebanho facilmente manipulável pelos proprietários (que, bastando quererem, lançá-los-ão ao matadouro da guerra na primeira oportunidade). Enquanto não romperem com isso, enquanto não identificarem o verdadeiro inimigo (a classe dominante de seu próprio país tanto como a de todos os países), e enquanto não se solidarizarem e se associarem contra e além das empresas e fronteiras para lutar, sua exploração e condições de vida não apenas vão sempre inevitavelmente se agravar a cada dia, como também permanecerão um rebanho "prontinho" para os patrões jogarem no açougue da guerra a qualquer instante.

Humanaesfera, 15/11/2012

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sábado, 13 de outubro de 2012

Socialismo, comunismo e capitalismo - só palavras surradas? por Commie Rag (1983)


(tradução por Humanaesfera de “Have You Checked Your Labels Lately?”, publicado no zine Commie Rag, 1983)

Socialismo, comunismo e capitalismo estão entre as palavras mais usurpadas do mundo.  Todas elas se referem a sistemas sociais que, ao menos em teoria, se desdobrariam historicamente um do outro. Neste período de crise, com potencial para uma transformação social imensa, é necessário esclarecer esses termos se quisermos obter uma visão mais clara do futuro.

Socialismo é uma palavra cujo radical significa sociedade. Originalmente, se referia a um modo de vida no qual todos os meios de produzir nossas necessidades seriam controlados pela sociedade como um todo. Isso acarretaria a livre associação mundial dos seres humanos, cada associado sendo um co-proprietário do vasto leque de recursos do mundo, sejam eles naturais ou fabricados. A comunidade global iria coletivamente decidir como satisfazer suas necessidades com os recursos disponíveis. Isso acarretaria o desaparecimento do trabalho assalariado - isto é, a venda da capacidade de trabalhar em troca de um ganho de acesso à riqueza social -, o desaparecimento da separação em nações e empresas, o desaparecimento do dinheiro e de todas as formas de troca. Uma vez que as novas relações sociais amadurecessem, elas se tornariam um elemento inconsciente da atividade cotidiana, e este modo de vida seria conhecido como comunismo.

O capital é uma relação social, uma relação entre pessoas expressa através de coisas. Produtos eram trocados nos sistemas sociais anteriores, embora o campo da troca era muito mais limitado e sua ocorrência era muito menos frequente. Mas no capitalismo, a força de trabalho se torna uma mercadoria, algo que é comprado e vendido. Os trabalhadores vendem seu tempo disponível em troca do dinheiro necessário para reproduzir eles próprios como trabalhadores. Por outro lado, aqueles poucos que são donos ou controlam os meios de produção e/ou fundos de investimento, sejam eles proprietários corporativos ou burocratas estatais, obtém controle sobre o tempo e a energia dos trabalhadores, e assim podem forçá-los a produzir além de suas necessidades. O controle dos capitalistas sobre os produtos significa que, ao vendê-los, eles são capazes de extrair um lucro do excedente (além das despesas) que é produzido desse modo. Uma parte desse lucro é usado para seu próprio consumo e despesas improdutivas, tal como sustentar o governo e controlar o dinheiro. Mas os lucros servem primariamente para o reinvestimento na atividade fazedora de lucros. É assim que os investimentos crescem. E o crescimento é a razão do capital existir, sua prioridade suprema, mesmo se o crescimento requerir guerras.

A sobrevivência do capital, bem como sua potencial derrubada, depende da classe trabalhadora. Esta classe social inclui todos aqueles que tem pouco mais do que sua força de trabalho, sua capacidade de executar trabalho. Muitos deles são escravos assalariados. Outros, como as donas de casa, realizam tarefas necessárias para manter a força de trabalho sem serem pagos. Outros estão sendo treinados para se venderem - por exemplo, os estudantes. E outros, definhando nas margens da sociedade, não podem nem sequer ser usados.

A classe trabalhadora não apenas produz toda a riqueza que existe na forma útil, mas também enriquece e dá poder aos proprietários/controladores de capital. A atividade dos trabalhadores os esgota, enquanto fortalece as forças impessoais que dominam suas vidas. Suas próprias energias criativas são transformadas numa entidade aparentemente independente, o capital, que se torna cada vez mais forte e imponente, e confronta-o como uma fato “dado” da vida, semelhante às condições meteorológicas. Fora do trabalho, atividades tais como deslocamento e entretenimento passivo reforçam nosso papel como trabalhadores para o capital. Mesmo quando a sobrevivência não está em questão, a vida de um escravo assalariado é tão tediosa quanto uma esteira ergométrica em comparação com as vidas criativas apaixonadas que poderíamos viver dentro de uma estrutura social diferente. (...)


Esforçando-se para assegurar o crescimento contínuo de seu capital, a elite dominante em todo o mundo é dirigida pela dinâmica da competição global (e também pela cobiça) para extrair o máximo das forças de trabalho, substituí-las por máquinas onde for possível, e, onde isso não for viável, tentar fazer as pessoas agirem como máquinas. Isso levou a conflitos sociais desde o início sangrento do capital, já que os trabalhadores são forçados a tomar ações drásticas para proteger seus padrões de vida.

O socialismo e o comunismo foram de início propostos como objetivos por ativistas no movimento da classe trabalhadora do início do século XIX. Eles acreditavam que os conflitos de classe iriam escalar, e apresentariam à classe trabalhadora tanto uma oportunidade quanto uma necessidade de destruir a estrutura social e viver de modo diferente. Marx e a maioria de seus contemporâneos viam o socialismo e o comunismo como surgindo da continuidade do conflito social. Junto com outros, Marx insistia que a revolução deve ser obra dos próprios trabalhadores. Ele via sua obra teórica como suprindo o movimento com ferramentas analíticas para ajudar a alcançar o objetivo de “ abolição do sistema salarial”.

No fim do século XIX, o movimento degenerou, em parte devido ao aparente sucesso do capitalismo em resolver suas crises periódicas de superprodução (depressão). Os socialistas mais proeminentes vieram a redefinir socialismo como um processo evolucionário cujo objetivo seria a redistribuição do dinheiro. Na visão deles, um partido, composto de intelectuais e especialistas, ou seja, eles mesmos, conquistaria o governo, e gradualmente o Estado iria adquirir controle dos meios de produção em nome da sociedade.

Essa identificação da sociedade com o Estado, uma instituição cujo propósito é justamente a opressão de classe, foi e é uma posição que serve aos interesses de burocratas ávidos por poder, hoje conhecidos como social democratas. Eles ainda recrutam em partidos pelo mundo que são auto-intitulados socialistas (e até comunistas). Tal como os partidos abertamente pró-capitalistas, esses partidos no poder do Estado sempre significaram austeridade para a classe trabalhadora, centralização do poder, e salvaguarda do “interesse nacional” no combate militar e comercial com outros Estados. Afinal, a chegada deles ao poder simplesmente significa que eles se tornaram controladores do capital nacional. Um exemplo perfeito disso é o governo Mitterand na França.

Na década de 1910, a crise capitalista voltou pior do que nunca. Foi a primeira depressão global e fonte da subsequente guerra mundial. Muitos romperam com os social democratas, que geralmente apoiavam os vários esforços nacionais de guerra. Entre estes, estavam gente como Lenin e Trotsky, que concordavam com o conceito de socialismo como controle estatal, mas rejeitavam a idéia de evolução pacífica. Desse modo, eles favoreciam um partido de elite e relativamente secreto cujo objetivo seria dirigir os trabalhadores para o socialismo pela conquista do poder do Estado. Eles admiravam a produção em massa, a administração científica e a disciplina fabril, e consequentemente modelaram seu partido como uma hierarquia industrial.

Onde essas vanguardas conquistaram o poder, como na União Soviética, Cuba, Angola e nos assim chamados Estados socialistas, o capitalismo de Estado reina. A sobrevivência material da população é permitida em troca do controle draconiano sobre cada aspecto da vida cotidiana. O Estado exige trabalho árduo e baixos salários do mesmo modo que os patrões privados. E, dado que as entidades do Estado capitalista são dependentes o mercado mundial (do mesmo modo que a IBM e a Exxon), elas estão  se tornando incorporadas na estrutura global de dívida e fazendo negócios com multi-nacionais. Muitos executivos de multinacionais são atraídos pelo prospecto de uma força de trabalho controlada (livre de greves) e por contratos de investimento favoráveis em lugares como o Zimbabwe (Citicorp Bank), Bulgária (Pizza Hut – Pepsi) e China (Volkswagen).

Nos EUA, essas vanguardas são divididas em pequenas seitas em conflito. Elas organizam campanhas de apoio a todos os tipos de lutas exceto ao combate contra o trabalho assalariado. Elas usam o sentimento de culpa das pessoas e seu desejo por ação imediata para recrutar tropas para suas máquinas. É improvável que consigam influência substancial – e muito menos sobre o poder do Estado -, mas elas conseguem desviar a atenção e confundir (isso sem mencionar a péssima imagem que passam da palavra revolução).

Uma distorção atualizada do socialismo é a visão predominante dentro da esquerda americana, tal como a exemplicada pelo congressista de Berkeley Ron Dellims, o escritor “socialista” Michael Harrington, e o Citzens Party. Ele vêem o socialismo como a propriedade de cada empresa por uma cooperativa de trabalhadores , a divisão das grandes empresas e o apoio às pequenas, a nacionalização de alguns setores, e a coordenação de toda essa salada pelos planejadores estatais. Em outras palavras, eles propõem tratar tanto dos problemas do mercado “livre” (competição encarniçada) como da ineficiência do controle estatal combinando os aspectos desejados de ambos.

 Mas o controle e/ou propriedade de uma empresa pelos trabalhadores não reduz as pressões de mercado que todas as companhias encaram – vencer as rivais ou falir. Trabalhadores numa cooperativa com frequência recorrem a intensificação de seu próprio trabalho, ao corte de seus próprios salários, e até mesmo despedem a si mesmos, para que a empresa possa sobreviver. E forçar as empresas a se tornarem e/ou serem pequenas pouco ajuda na sua competitividade. Enquanto isso, os planejadores estatais teriam enormes dificuldades para reconciliar sua necessidade de centralizar a tomada de decisões com o padrão descentralizado de propriedade cooperativa. Além disso, qualquer esforço de economia planejada rapidamente descobriria que os EUA são uma mera parte do mecanismo do mercado mundial, e, fora de suas fronteiras, outros planos estão em andamento. Infelizmente, esta gororoba é o que os media apresenta como “socialismo”.

Não surpreende que o significado das palavras seja distorcido. O verdadeiro significado de socialismo foi articulado em palavra e prática ao longo do último século. O movimento anarquista, um elemento do movimento socialista original, está experimentando hoje uma reemergência global. Ele constestou de forma consistente a legitimidade do poder estatal e das estruturas sociais autoritárias. Socialistas tais como Rosa Luxemburgo, Anton Pannekoek, Sylvia Pankhurst, Paul Mattick e Guy Debord mantiveram vivo o conteito de socialismo como abolição da escravidão do salário e como estabelecimento de uma comunidade mundial.  Várias vezes na história, surgiram movimentos que desafiaram a própria essência das relações sociais existentes. Durante até um ano, trabalhadores estabeleceram o controle social dos recursos produtivos em lugares como Espanha, Rússia, Polônia, Itália, Alemanha, Brasil, China, Canadá e mesmo os EUA (a greve geral de Seattle de 1919). E em muitas outras vezes, a população contestou o controle social. E hoje, com uma nova depressão mundial, vemos uma nova onda de rebelião.

Como Rosa Luxemburgo mostrou, o próprio capitalismo é um “estágio transitório” entre todas as formas prévias de sociedade e o começo do que Marx chamou “história realmente humana” – a história dos indivíduos humanos livremente associados, infinitamente ricos em sua diversidade e suprimindo todas as divisões em classes e nações.

A maioria das pessoas que se consideram de esquerda desprezam a possibilidade de uma transformação anti-capitalista anti-autoritária. Isto se deve a uma mistura de falta de compreensão do capitalismo, cinismo sobre a natureza humana e um desejo por poder. Afinal, muitos “ativistas” são formandos de faculdade que apenas transferiram suas ambições de carreira para outros campos.

Uma insurreição social nunca será televisionada nem dirigida. Muito provavelmente, os líderes vão tentar correr para alcançar as “massas ignorantes”. Os líderes foram deixados para trás quando os trabalhadores russos estabeleceram conselhos operários em 1905 e comitês de fábrica em 1917; foram deixados para trás quando os estudantes franceses e os trabalhadores fizeram uma greve geral e a ocupação de campus universitários e fábricas em maio de 1968; e quando jovens proletários negros, brancos e asiáticos expulsaram a polícia de seus bairros e redistribuiram bens na Inglatera em 1981. Quando os vários movimentos autônomos pelo mundo começam a cooperar, eles começam a clarificar sua compreensão do passado e suas visões do futuro. Quando eles afirmarem seus desejos coletivos, este será o dia em que o capitalismo acabará e o socialismo se realizará.

(Commie Rag, janeiro de 1983, Nº 3)


terça-feira, 10 de julho de 2012

A "sociedade de consumo" - fantasia, salário e lucro - Zé Dostiago

A "sociedade de consumo" e o "Estado de bem estar social" são popularmente imaginados como coisas que emanam naturalmente do desenvolvimento do capital. Imagina-se que quando se promove o aumento do consumo da população (pelo aumento dos salários), aumenta-se o lucro das empresas e, por isso, aumenta-se mais ainda os salários, tornando o lucro ainda maior, daí formando um círculo virtuoso em que o aumento do consumo aumenta o lucro das empresas que aumenta os empregos e salários e assim por diante. Mas isto é uma fantasia. Vejamos por que.

SALÁRIOS MAIORES, LUCROS MAIORES?

Imagine que há somente uma única empresa no universo. Os únicos compradores das mercadorias da empresa portanto seriam os seus próprios empregados. Consequentemente, tudo o que a empresa adquire em dinheiro na venda é o que ela mesma pagou aos seus próprios empregados como salário. Então, de fato, ela não teve nenhum lucro, pois a empresa não ganhou mais do que gastou. Só haveria lucro se o que a empresa gasta de dinheiro (não só ao pagar salários, mas também máquinas e matérias primas) fosse menor do que o que ela ganha vendendo os seus produtos.

Diante disso, qual a condição fundamental para que haja lucro? Muito simples: que ela venda para outra(s) empresa(s) e não para seus próprios empregados.  Só assim é possível às empresas gastar menos na produção do que ganha na venda de seus produtos.

Tudo isso implica então que todas as empresas lucram tanto mais quanto menor  for o salário que todas elas pagam aos seus empregados. Monetariamente, o lucro das empresa só equivale ao lucro de outra(s) empresa(s) e não pode ser equivalente aos salários pagos. O lucro circula entre empresas e não entre empresas e empregados  e muito menos  entre empregados.

Poder-se-ia pensar que os fatos contradizem isso, que por exemplo uma padaria (ou empresas que vendem bens de consumo) consegue lucrar vendendo pão (ou qualquer mercadoria) para assalariados e não para outras empresas. Sim, isto é verdade, como toda regra, tem sua exceção. Mas então qual a explicação do lucro que vemos nas empresas de bens de consumo? A explicação é que todas essas empresas de bens de consumo só conseguem lucrar unicamente se elas vendem bens de consumo não para seus próprios empregados, mas sim para a clientela mais ampla composta por empregados de empresas que vendem para outras empresas.

A exceção confirma a regra, pois se só houvesse empresas que vendem bens de consumo no universo, todas essas empresas deveriam pagar em salário o dinheiro que elas mesmas adquirirão quando venderem bens de consumo aos seus empregados - isto é, o lucro seria impossível. O aparente lucro das empresas de bens de consumo é apenas possível graças a uma clientela mais ampla de empregados cujos salários não são pagos por elas, quer dizer, seu lucro é um lucro de "segunda mão", que é apenas possível  graças aos salários de empregados de outro tipo de empresa: as empresas que vendem mercadorias para outras empresas. Ou seja, globalmente, os lucros se originam unicamente das empresas que vendem para outras empresas.

Se o lucro circula entre empresas, isto significa que é na compra e venda de mercadorias entre empresas que é realizado o lucro. E as mercadorias compradas e vendidas entre empresas são bens de produção, não bens de consumo. (exemplo de bens de produção: máquinas, softwares produtivos,  instrumentos de trabalho, automação, matérias primas, petróleo e energia usados pelas empresas, mas não  petróleo e energia usados para o consumo não-empresarial).

No mercado mundial como um todo, a única expansão do consumo que favorece os lucros é a expansão do consumo produtivo de lucros, expansão do consumo pelas empresas de meios de produção para vender meios de produção com lucro. Assim, de um ponto de vista global, as empresas produzem e vendem com lucro desde que outras empresas comprem delas bens de produção, que, por sua vez, só são comprados porque essas outras empresas também produziram e venderam bens de produção para outras empresas e assim por diante, num circuito tautológico que consiste em produzir apenas por produzir por produzir interminavelmente.

Mas há aqui um problema: se, em toda a sociedade, as mercadorias são continuamente produzidas para valer mais do que custaram (isto é, ter lucro), isso significa que  é continuamente necessário que apareça dinheiro "a mais" na sociedade para comprar (realizar) as mercadorias produzidas que valem mais do que custaram. De onde vêm o dinheiro "a mais" necessário à transações com lucro? É o crédito bancário (principalmente dinheiro criado pelos bancos mediante a multiplicação monetária) emprestado às empresas que garante a expansão contínua dos meios de pagamento (o dinheiro "a mais")  que realizam (pagam) o valor "a mais" (o lucro) das mercadorias  vendidas  entre empresas.  Isto é, as empresas compram  umas das outras as mercadorias (produzidas para ter valor "a mais") graças ao dinheiro "a mais" que cada uma pega emprestado (que tinha sido "criado do nada" pelos bancos) e usa para pagar as outras empresas. Desse modo, as empresas que venderam para elas e lucraram, tornam "real" o dinheiro "a mais"  fictício que antes foi criado pelos bancos e emprestado às empresas que compraram delas. E como cada empresa  ao mesmo tempo compra, produz com mais-valor e vende, elas  tornam reciprocamente real  o valor  fictício criado pelos bancos. (e é claro que as empresas que não conseguiram vender com lucro tendem a falir, não conseguem tornar "real" o dinheiro fictício, "perdendo crédito"). O crédito é a expansão "interminável" da contraparte monetária necessária para a expansão material "interminável" da acumulação do capital.

Em suma, o lucro de todas as empresas é tanto maior quanto mais elas impõem aos trabalhadores como um todo o menor salário possível e a maior quantidade de trabalho  (maior intensidade de trabalho e/ou maior jornada)  possível. Globalmente, os lucros só se realizam mediante transação de bens de produção (bens de capital) entre empresas e não pela compra de bens de consumo (pelos trabalhadores).

Frente a tudo que dissemos até aqui, como explicar que no cotidiano, na superfície social, parece que o capital existe apenas para fornecer serviços e satisfazer o apetite por consumo da população? Como explicar que até mesmo o lucro veio a parecer na superfície um mero efeito contingente, um efeito colateral dos maravilhosos serviços prestados pelas empresas?

EMPRESAS SEM LUCRO? O EXEMPLO DO COOPERATISMO DEMOCRÁTICO E AUTOGERIDO

Antes de responder a essas indagações, devemos responder aqueles que imaginam que as empresas poderiam se manter sem lucro, ou que acham que a busca de lucro é apenas uma questão de ganância dos empresários malvados e que o capitalismo poderia passar muito bem sem lucro. Para isso, vamos ver o exemplo máximo de capitalismo supostamente "sem fins lucrativos", o cooperativismo.

Idealmente, numa cooperativa, ninguém é explorado, e o seu objetivo não é o lucro, mas a satisfação dos cooperativados. Como os cooperativados de um empresa não produzem tudo o que necessitam para viver, eles precisam de coisas feitas por outras empresas (que podem até ser outras cooperativas), e só poderão obtê-las se tiverem dinheiro para comprá-las. Como conseguirão este dinheiro? Vendendo, vendendo as coisas que produzirem na cooperativa. Mas há outras empresas (que podem até ser cooperativas também) que vendem a mesma mercadoria que eles produzem. Eles terão que concorrer com elas para vender, e só encontrarão compradores se a mercadoria que venderem tiver pelo menos o mesmo preço e a mesma qualidade. Portanto, a cooperativa terá de se submeter à coerção da concorrência e impô-la internamente aos seus empregados, fazendo-os trabalhar sob um regime estritamente determinado pela necessidade de vencer a concorrência e não falir. As empresas concorrentes estão sempre aprimorando sua produção, para vender (inicialmente para cortar custos sem baixar o valor, obtendo assim um superlucro) mais mercadorias que serão mais baratas ou de maior qualidade, e elas só podem fazer isso se adquiriram um excedente de dinheiro, que é o lucro, para reinvestir na produção (comprar essas novas máquinas, por exemplo, para produzir mais com menos custos). A cooperativa, por sua vez, terá sempre de se precaver, reinvestindo também um excedente de dinheiro (lucro) na produção para, ao menos, se equiparar à concorrência. E quanto mais lucro tiver, melhor poderá se sair na concorrência e não falir. Logo, quanto menor for o salário dos cooperativados, mais ela poderá se equiparar à concorrência e não falir porque maior será o lucro para ser reinvestido na produção.

A chamada "mão invisível" do mercado exige um clima de medo constante na empresa. Caso contrário, a empresa perde a concorrência e entra em falência, porque, sem medo, as pessoas jamais se entregariam a um trabalho cujo fim é abstrato (lucro a ser reinvestido para dar mais lucro para ser reinvestido e dar mais lucro e assim por diante). Para manter o medo, é criada uma hierarquia/burocracia.  A hierarquia/burocracia organiza a instauração e manutenção do medo. Ela é inerentemente policialesca e ditatorial.

O que chamamos de  capital é precisamente essa estrutura impessoal que força todos a se submeter interminavelmente aos imperativos do lucro, uma estrutura impessoal que se mantém  reproduzindo incessantemente uma classe capitalista (os que cuidam de impor essa estrutura) e uma classe de proletários (os que sofrem essa imposição e tendem a resistir a ela), não importa o que as próprias pessoas pensem,  desejam ou falem, e nem como as pessoas identificam a si mesmas (por exemplo, como "classe média").

Isto explica porque toda e qualquer empresa, mesmo uma cooperativa "democrática autogerida", só pode funcionar de modo ditatorial e opressivo. E também explica o motivo de não ser por acaso que empresas do tamanho de um país (como os países ditos "socialistas", URSS, Cuba, Coréia do Norte, por exemplo) "naturalmente" sejam ditaduras políticas.


É por esta mesma razão que uma sociedade cujo objetivo é a satisfação e liberdade dos indivíduos  só poderá ser possível numa escala mundial, abolindo as empresas,  a propriedade privada, as fronteiras e os Estados, mediante a instauração de uma comunidade mundial de indivíduos livremente associados, onde todos se relacionam não mais como mercadores, mas como indivíduos que buscam realizar seus desejos e necessidades e se associam livremente para isso usando a rede  planetária de  produção livre e comum.

Alguns dirão que não é preciso toda essa transformação (abolição do mercado, abolição da empresa, do Estado etc.), que basta instaurar uma única empresa-Estado mundial para acabar com a pressão da concorrência e tornar desnecesário o lucro, e todos ganharem salários "justos", de forma preferencialmente democrática. Mas isso não funcionaria e nem mudaria nada de um ponto de vista humano.De um ponto de vista econômico, o problema é que sem a pressão da concorrência, ninguém saberia quanto custa nada, o valor das mercadorias se torna arbitrário e louco, levando à inflação ou deflação. É preciso a coerção da concorrência para que cada mercadoria seja vendida com um preço estritamente determinado, pois apenas a concorrência faz com que, se uma mercadoria estiver acima de certo valor, ninguém compre, e a empresa tenha prejuízo, e se estiver abaixo, será comprada, mas também com prejuízo à empresa. Sem concorrência, a empresa perde as referências e nada pode funcionar direito, por melhor que seja o planejamento. E o mercado negro inevitavelmente aparece oferecendo mercadorias "mais em conta", concorrendo com ela e forçando a empresa-Estado a buscar o lucro e impor a ditadura mercantil. Já de um ponto de vista humano, o problema é a opressão e a alienação - a satisfação dos desejos e necessidades humanas permaneceria submetida à produção como algo alheio (mesmo se "democraticamente"), isto é, como capital, já que eles trabalham para poder ganhar o tal salário "justo" e depois consumir, ao invés da produção ser a expressão prática das necessidades e desejos humanos  livres.


Por isso, o único modo de instaurar uma sociedade livre é abolir a empresa, isto é, abolir o Estado (o corpo armado separado da população), suprimindo a propriedade privada dos meios de produção juntamente com as fronteiras nacionais. Só assim a produção poderá se tornar a expressão das necessidades e desejos humanos e ninguém será constangido a comprar coisas (mesmo que oferecidas num mercado paralelo), já que ninguém será mais sujeito à coerção de ter de vender para existir, uma vez que a satisfação dos desejos se torna gratuita justamente por ser expressa diretamente pelos seres humanos na produção daquilo que desejam e necessitam, através da livre associação que se estabelece na comunidade da rede produtiva mundial.

A HISTÓRIA  DA "SOCIEDADE DE CONSUMO" E DO "ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL"

Voltemos então à questão que levantamos antes: como explicar que no cotidiano, na superfície social, parece que o capital existe apenas para fornecer serviços e satisfazer o apetite por consumo da população? Como explicar que até mesmo o lucro veio a parecer na superfície um mero efeito contingente, um efeito colateral dos maravilhosos serviços prestados pelas empresas?

Na realidade, essa aparência começou a surgir há apenas 67 anos, em 1945, após 40 anos de convulsão social e duas guerras mundiais. O Estado de bem estar social e a sociedade de consumo são uma anomalia na história do capitalismo.

Como vimos, o objetivo do capital é necessariamente o lucro e, para isso, ele impõe o máximo de trabalho e o mínimo de salário aos trabalhadores.  Até 1945, isto era claro para todos. Os países mais "desenvolvidos" e "ricos" eram exatamente aqueles que conseguiam sujeitar a população à pior condição de vida (por exemplo, foi precisamente devido à sua própria mão de obra barata que a Inglaterra impôs suas mercadorias baratas no mundo todo, forçando  inclusive as regiões do globo ainda pré-capitalistas a proletarizar a população para se tornarem "competitivas" no mercado mundial). Ao longo do século XIX e início do XX, os trabalhadores eram reduzidos a "nada", não tinham nenhum direito, exceto o direito de tentar vender sua força de trabalho aos empresários pelo menor preço possível. As lutas dos trabalhadores (greve) eram todas ilegais, consideradas completamente incompatíveis com a "paz e a ordem".

Os proletários foram aos poucos aprimorando sua luta e seus objetivos, e na medida que seus  objetivos mais reformistas (diminuição da jornada, aumento dos salários, auxílio desemprego etc) eram considerados absurdos pelo capital e o Estado,  parecia cada vez mais evidente que uma nova sociedade, sem exploração e sem capital, deveria ser o objetivo. E por volta dos anos 1920 (principalmente entre 1917 e 1922), os proletários começaram a colocar seriamente em cheque o capital e o Estado por toda parte  (de Tóquio ao Rio de Janeiro).

Em muitos lugares, soldados  se juntavam à luta dos proletários e distribuiam armas para a população. Na Alemanha, na Rússia e na Itália, os proletários constituíram conselhos de operários e soldados (sovietes), que funcionavam sob democracia direta (delegados eleitos e com mandados revogáveis a qualquer momento pelos mandatários, isto é, os próprios proletários) e tinham o objetivo de tomar as fábricas das mãos dos patrões e coordenar a produção em cada cidade. Depois, na Alemanha, a situação ficou relativamente contida quando os capitalistas cederam e permitiram um governo social-democrata, que, em troca de concessões reprimiu e desarmou a luta. Na Rússia, isolada, os proletários tiveram que se contentar em dar continuidade ao Estado czarista agora sob o poder dos bolcheviques, para fazer frente à concorrência militar e comercial com os outros países. Os bolcheviques estabeleram um capitalismo estatizado,  que reprimiu e desarmou os trabalhadores.

Nesse ínterim, capitalistas de todo  o mundo (por exemplo, Henry Ford, dos EUA) financiaram e incentivaram por toda parte movimentos fanáticos, como o fascismo na Itália e no Japão, o nazismo na Alemanha e o integralismo no Brasil, com o objetivo de reprimir a luta proletária através de gangues para-militares. O financiamento capitalista da propaganda desses movimentos foi esmagador, e seu objetivo era também suprimir a luta até da cabeça da população, repetindo sem fim que o verdadeiro inimigo a ser combatido não são os proprietários mas os "estrangeiros": judeus, ciganos, migrantes, etc. Eles queriam substituir a luta de classes por lutas contra inimigos fictícios. Quando houve o crash de 1929, o desemprego generalizado caiu como uma luva para a propaganda do fascismo: os estrangeiros pareciam roubar "mesmo" o emprego dos "nativos", e os financistas, identificados na figura fictícia do estrangeiro "judeu", pareciam ser os grandes responsáveis pela crise econômica. Com tudo isso, na Alemanha e na Itália, o nazi-fascismo teve um crescimento tão grande que assumiu o governo desses países.

Mas o fanatismo e delírio dos nazi-fascistas fugiu ao controle dos próprios capitalistas que os financiaram de todo o mundo. Hitler, em seu delírio de dominar o mundo, fez a Alemanha invadir a Polônia, o que fez a França declarar guerra à Alemanha, começando a segunda guerra mundial - a maior carnificina da história. Os capitalistas foram obrigados a usar o lucro não para reinvestir na produção e ter mais lucros, mas para financiar o ataque e defesa militar (o que levou a um déficit público generalizado). Neste momento, os proletários já estavam completamente derrotados , porque sua luta foi esmagada e substituída pela guerra, não mais fictícia, mas tornada real, entre burgueses/Estados nazi-fascistas e burgueses/Estados democráticos.

Terminada a segunda guerra mundial, no ano de 1945, após 40 anos de convulsão social e guerras, os capitalistas com seus representantes dos governos dos principais países capitalistas, temendo novas guerras e convulsões, fizeram acordos internacionais (acordos de Bretton Woods, de onde saiu, por exemplo, a ONU e a FAO). Primeiramente, queriam evitar que as  lutas proletárias pudessem novamente colocar em cheque o capitalismo - a idéia era que o Estado passasse a compensar a desigualdade na sociedade, dando por exemplo, auxílio aos desempregados, saúde pública, direito à aposentadoria, também incentivaram que os capitalistas fizessem concessões à lutas dos trabalhadores, incentivando os sindicatos como negociadores, e protegendo o mercado interno da concorrência internacional (barreiras comerciais). A idéia era tentar fazer "todos" ficarem "satisfeitos" e não causarem problemas, pois a irredutibilidade dos capitalistas frente aos trabalhadores anteriormente tinha tido consequências muito mais destruidoras para os lucros do que se esperava, como a ascenção do nazi-fascismo e a II guerra.

Foi então que vicejou a "sociedade de consumo", que afinal era algo mais "humano" do que a exploração nua e crua típicas do capitalismo até então. A escravidão assalariada passou a ser justificada pelo salário que daria a chave para um mundo maravilhoso de liberdade passiva nos shoppings e supermercados, a "liberdade" de consumir o que foi produzido precisamente sob a mesma escravidão assalariada. No entanto, as lutas proletárias renasceram e culminaram em 1968-1975. Na Itália, os trabalhadores, em meio a greves por toda parte, queriam "a abolição do trabalho", na França, houve a maior greve geral selvagem (isto é, greve sem sindicatos) da história, tudo isso com todo um movimento de contra-cultura que queria uma transformação libertária da sociedade.

Depois dessas "ousadias" dos proletários, e após os capitalistas verem os trabalhadores conseguindo tirar migalhas cada vez mais "enormes" do capital, já que o "Estado de bem estar social" parecia não os reprimir suficientemente, por não querer criar "problemas insolúveis", depois disso tudo os capitalistas e seus representantes governamentais quebraram os acordos de Bretton Woods (graças à proliferação incontrolável dos chamados petrodólares e eurodólares), inaugurando a era do neoliberalismo. As barreiras comerciais foram reduzidas  (e o mercado financeiro foi totalmente "liberado") para que o capital pudesse vagar pelo mundo em busca de onde houvesse maior lucratividade, que obviamente era encontrada onde os salários eram menores, ou seja, onde o o aparato repressivo era mais "livre" ( mais "sem ter vergonha" ) para matar, torturar e massacrar os proletários (trabalhadores e desempregados) que pudessem opor resistência.

Daí em diante, desde os anos 1980, as lutas dos trabalhadores dos países ricos acumularam derrotas sobre derrotas, pois mesmo quando conseguiam salários maiores, as empresas simplesmente fechavam e se transferiam para onde eram menores, principalmente países como a China.

No entanto, apesar do desmantelamento cada vez maior do "Estado de bem estar social", parece que a "sociedade de consumo" continua se expandindo. Até mesmo o camponês miserável do interior da África hoje tem telefone celular. Mas isso ocorre não por que os salários aumentaram desde então (muito pelo contrário), mas porque o preço das mercadorias cada vez diminui mais devido à concorrência intensa entre empresas, onde só vence quem vender mais barato cada produto mas numa quantidade maior, isto é, em massa.

Além disso, o capital financeiro, isto é, o capital que vaga pelo mundo em busca de lucro, é míope, e só vê lucros imediatos, e assim investe uma grande proporção do capital mundial, por exemplo, nas empresas de "bens de consumo" (setor de serviços, "sociedade de consumo", habitação). Mas obviamente, a longo prazo, esse investimento é fadado ao fracasso, porque, como vimos desde o início deste texto, são empresas que vendem para assalariados e não para outras empresas, isto é, os lucros da venda teriam que equivaler aos salários daqueles que compram, ou seja, não há lucro nenhum a medida em que as empresas de bens de consumo se tornaram a quase totalidade das empresas. E é aqui que  estamos: a crise econômica que desde 2008 assola o capitalismo (que começou justamente com a bolha da habitação, subprimes,  isto é, o capital financeiro tinha investido imensas somas em empréstimos a consumidores, principalmente assalariados). A saída da crise será (e já é, na verdade - vide a China) um tipo de volta ao século XIX: o capital terá de reinvestir em indústrias de bens de produção que vendem para indústrias de bens de produção para produzirem bens de produção para outras indústrias de bens de produção e assim indefinidamente, e o ser humano voltará a aparecer "sem enfeites" tal como ele é sob o capital - um mero apêndice das máquinas que produzem por produzir por produzir por produzir, sem o menor sentido para os seres humanos. A crise mundial só será resolvida submetendo a população de todos os países às mesmas condições degradantes de salário e jornada (só assim os países atualmente em crise recuperarão sua "competitividade"). A luta proletária terá de recomeçar liberta das ilusões do século XX e terá de ser mais internacionalista do que nunca. Que façamos a coisa certa desta vez!

Zé Dostiago, julho de 2012.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Joseph Déjacque: A Humanisfera - Utopia Anárquica (1857). Trechos da introdução


Trechos de "A Humanisfera":
Introdução
Sobre o comunismo futuro
Sobre a transição revolucionária
Sobre as suas influências


Alguns trechos da introdução de "L'HUMANISPHERE. UTOPIE ANARCHIQUE" (A Humanisfera - Utopia Anarquista) , 1857:

"O QUE É ESTE LIVRO?


Este livro não é uma obra literária, é uma obra infernal, o grito de um escravo rebelde.
(...)


Este livro não é feito de tinta; suas páginas não são folhas de papel.


Este livro é aço dobrado in octavo e carregado com fulminato de idéias. É um projétil autoricida que lanço em milhares de exemplares sobre o pavimento dos civilizados. É capaz de fazer voar seus fragmentos ao longe e romper mortalmente as fileiras dos preconceituosos. Capaz de quebrar a velha sociedade em seus fundamentos.


Privilegiados! – para quem semeou a escravidão chegou a hora de colher a rebelião. Não há trabalhador que, sob os lambris de seu cérebro, não tenha confeccionado clandestinamente alguns pensamentos de destruição. Vocês têm, vocês, a baioneta e o código penal, o catecismo e a guilhotina; nós temos, nós, a barricada e a utopia, o sarcasmo e a bomba. Vocês, vocês são a compressão; nós, nós somos o explosivo: uma única fagulha basta para vos fazer saltar!
(...)


Este livro não é um escrito, é um ato. Ele não foi traçado pela mão enluvada de um fantasista;  é composto de coração e  lógica, de sangue e febre. É um grito de insurreição, é um alarme soado com o martelo da idéia ao ouvido das paixões populares. Além disso, é um canto de vitória, uma salva triunfal, a proclamação da soberania individual, o advento da liberdade universal; é a anistia plena e total das penas autoritárias do passado pelo decreto anárquico do porvir humanitário.


Este é um livro de raiva e é um livro de amor!” LE LIBERTAIRE n°1: 9 junho de 1858



segunda-feira, 2 de julho de 2012

Joseph Déjacque: "A Humanisfera - Utopia Anárquica" (1857). Trechos sobre o comunismo futuro

Trechos de "A Humanisfera":
Introdução
Sobre o comunismo futuro
Sobre a transição revolucionária
Sobre as suas influências







Trechos de "L'HUMANISPHERE. UTOPIE ANARCHIQUE" (A Humanisfera - Utopia Anarquista), 1857,  sobre o comunismo libertário futuro:  



MOTIVO DA UTOPIA


"A ausência de ordens, eis a verdadeira ordem." LE LIBERTAIRE n°12: 7 de abril de 1859

"A ordem com a adaga ou o canhão, com a forca ou a guilhotina; (...) a ordem personificada na trindade homicida: ferro, ouro e água benta; a ordem à golpes de fuzil, à golpes de bíblias, à golpes de  notas bancárias (...) não é senão lei de bandidos, o código do roubo e do assassinato que preside a partilha do butim e o massacre das vítimas. É sobre esse pivô sangrento que gira o mundo civilizado.” LE LIBERTAIRE n°12: 7 de abril de 1859

“Invalidar a autoridade e criticar seus atos não basta. Uma negação, para ser absoluta, necessita de se completar com uma afirmação. É por isso que eu afirmo a liberdade, é por isso que deduzo as suas consequências. “ LE LIBERTAIRE n°1: 9 junho de 1858

“Para mim, a questão não é fazer discípulos, mas fazer homens, e alguém é homem apenas com a condição de ser ele mesmo. Incorporemos as idéias dos outros e encarnemos nossas idéias nos outros; nada melhor do que misturar nossos pensamentos; mas façamos desta mistura uma concepção nossa. Sejamos uma obra original e não uma cópia. O escravo se modela no seu mestre, ele imita. O homem livre não produz senão seu tipo, ele cria.


Meu plano é fazer um retrato da sociedade do modo como ela me parece no futuro: a liberdade individual fluindo anarquicamente na comunidade social e produzindo a harmonia.” LE LIBERTAIRE n°1: 9 junho de 1858


“Os pesquisadores da felicidade ideal, assim como os pesquisadores da pedra filosofal, não poderão talvez nunca realizar sua utopia de uma maneira absoluta, mas sua utopia será a causa do progresso humano.” LE LIBERTAIRE n°6: 21 de setembro de 1858


"Tenho apenas uma face, mas esta face é móvel como a fisionomia da onda; ao menor sopro, ela passa de uma expressão à outra, da calma à tempestade e da cólera à ternura.  É por isso que, como passionalidade múltipla, espero tratar da sociedade humana com alguma chance de sucesso, visto que, para tratá-la adequadamente, é preciso tanto conhecer as próprias paixões quando as dos outros."  LE LIBERTAIRE n°1 9 de junho de 1958




PAIXÕES,  ATRAÇÕES E INCLINAÇÕES: HOMEM, COSMO, ANARQUIA



“O homem é um ser essencialmente revolucionário. Ele não sabe se imobilizar num lugar. Ele não vive a vida dos limites, mas a vida dos astros.” LE LIBERTAIRE n°6: 21 de setembro de 1858


" [Os] globos circulam livremente no éter, ora atraídos gentilmente por um, ora repelidos com doçura por outro, todos obedecendo somente a sua paixão, e encontrando na sua paixão a lei de sua harmonia móvel e perpétua, (...)  e demonstram por uma argumentação sem réplica que (...) a ordem anárquica é a ordem universal.  (...) Do mesmo modo que as esferas circulam anarquicamente na universalidade, também os homens devem circular anarquicamente na humanidade, sob a única impulsão das simpatias e das antipatias, das atrações e das repulsões recíprocas. A harmonia não pode existir senão pela anarquia.”   LE LIBERTAIRE n°4: 2 de agosto de 1858


E NO ANO DE 2858...


“Dez séculos se passaram diante da Humanidade. Estamos no ano de 2858.” LE LIBERTAIRE n°6: 21 de setembro de 1858


"A utopia anarquista é para a civilização o que a civilização é para a selvageria." LE LIBERTAIRE n°6: 21 de setembro de 1858

“O ar, o fogo, a água, todos os elementos com instintos destruidores foram dominados. (...) O homem trona sobre as máquinas de trabalho, ele já não fertiliza mais o campo com o suor de seu corpo, mas com o suor da locomotiva. (...) As estradas de ferro, as pontes lançadas sobre os estreitos e os túneis submarinos, as construções subaquáticas e os aerostatos, movidos pela eletricidade, fizeram de todo o globo uma única cidade que se pode atravessar em menos de um dia. Os continentes são os bairros ou distritos da cidade universal.” LE LIBERTAIRE n°7: 25 de outubro de 1858


“A ciência destruiu o que é mais repugnante na produção, e são as máquinas a vapor ou elétricas que se encarregam de todas as tarefas grosseiras.” LE LIBERTAIRE n°10: 5 de fevereiro de 1859


“De agora em diante eu chamarei esse lugar ou falanstério de Humanisfera, por causa da analogia dessa constelação humana com o agrupamento e o movimento das estrelas, organização gravitacional, anarquia passional e harmônica. (...) Cem humanisferas simples (...) formam o primeiro elo da corrente serial e toma o nome de “Humanisfera Comunal”. Todas as humanisferas comunais de um mesmo continente formam a (...) “Humanisfera continental”. A reunião de todas as humanisferas continentais forma o complemento da corrente serial e tem o nome de “Humanisfera universal.” LE LIBERTAIRE n°9: 10 de janeiro de 1859


“[Ali, todos] sabem que a harmonia só pode existir pelo concurso das vontades individuais, que a lei natural das atrações é a lei tanto do infinitamente pequeno quanto do infinitamente grande, que nada que é social pode se mover sem ela, que ela é o pensamento universal, a unidade das unidades, a esfera das esferas, que ela é imanente e permanentemente em eterno movimento;” LE LIBERTAIRE n°7: 25 de outubro de 1858


NADA DE GOVERNO


“Na Humanisfera, nada de governo. Uma organização atrativa toma o lugar da legislação. A liberdade soberanamente individual preside a todas as decisões coletivas. A autoridade da anarquia, a ausência de toda ditadura do número ou da força substitui o arbítrio da autoridade,  o despotismo da espada e o despotismo da lei. A fé em si mesmo é toda a religião dos humanisferianos. Os deuses e os padres, as superstições religiosas levantam entre eles uma reprovação universal. Eles não conhecem nem teocracia nem aristocracia de nenhum tipo, mas apenas autonomia individual. Cada um se governa por suas próprias leis e é por esse governo de cada um por si mesmo que é formada a ordem social.” LE LIBERTAIRE n°12: 7 de abril de 1859



“Hoje em dia, uma multidão – mesmo aqueles que são partidários de grandes reformas – pensa que nada pode ser alcançado exceto por autoridade, enquanto que apenas o contrário é verdade. É a autoridade que faz obstáculo a tudo. O progresso nas idéias não é imposto por decretos, ele resulta do ensino livre e espontâneo dos homens e das coisas. O ensino obrigatório é um contrassenso. (...) os anarquistas querem a liberdade de ensino para ter o ensino da liberdade. A ignorância é o que há de mais antitético à natureza humana. O homem, em todos os momentos de sua vida, e sobretudo a criança, não quer nada mais do que aprender; isto é solicitado por todas as suas aspirações. Mas a sociedade civilizada, assim como a sociedade bárbara e a sociedade selvagem, longe de facilitar o desenvolvimento de suas aptidões só sabe cuidar de lhe reprimir. A manifestação de suas faculdades lhe é imputada como crime: para a criança, pela autoridade paterna; para o homem, pela autoridade governamental.”  LE LIBERTAIRE n°9: 10 de janeiro de 1859


"A coerção é a mãe de todos os vícios. Por isso, é banida pela razão do território da humanisfera. O egoísmo, naturalmente, o egoísmo inteligente é muito desenvolvido para que alguém pense em forçar seu próximo. É por egoísmo que eles trocam bons atos.” LE LIBERTAIRE n°11: 6 de março de 1859


COMUNISMO - PRODUÇÃO E CONSUMO LIVRES

“Ali, nessa sociedade anárquica, a família e a propriedade legais são instituições mortas, hieróglifos cujo sentido se perdeu. LE LIBERTAIRE n°8: 20 de novembro de 1858


"Tudo que é obra da mão e da inteligência, tudo que é objeto de produção e de consumo, capital comum, propriedade coletiva, PERTENCE A TODOS E A CADA UM. Tudo que é obra do coração, tudo que é da essência íntima, sensação e sentimento individuais, capital particular, propriedade corporal, tudo aquilo que é homem enfim, na sua acepção própria, seja qual for a sua idade ou sexo, PERTENCE A SI MESMO. Produtores e consumidores produzem e consomem como lhes apraz, quando lhes apraz e onde lhes apraz. “A liberdade é livre.” Ninguém pergunta: por que isto? Por que aquilo?” LE LIBERTAIRE n°8: 20 de novembro de 1858

“Na anarquia, o consumo alimenta a si mesmo pela produção. Um humanisferiano não compreenderia que se possa forçar um homem para trabalhar como não compreende que se possa forçar um homem a se alimentar.(...)
Os humanisferianos satisfazem naturalmente a necessidade de exercício do braço tanto como a necessidade do exercício do ventre. Não é mais possível racionar o apetite da produção, assim como também não é mais possível racionar o apetite do consumo. Cada um consome e produz conforme as suas capacidades, conforme as suas necessidades. Se todos os homens se curvassem sob uma retribuição uniforme, isso faria uns esfomearem e outros morrerem de indigestão. Somente o indivíduo é capaz de saber a dose de trabalho que sua barriga, seu cérebro e suas mãos podem digerir. Quando é dado ração a um cavalo num estábulo, o mestre dá ao animal doméstico esta ou aquela nutrição. Mas em liberdade, o animal raciona a si mesmo, e o instinto lhe diz melhor do que o mestre o que convém ao seu temperamento. Os animais indomados quase não conhecem doença. Tendo tudo em profusão, eles não brigam mais entre si para arrancar um broto de erva. Eles sabem que a pradaria selvagem produz mais pasto do que podem comer, e eles comem em paz uns ao lado dos outros. Por que os homens brigariam para consumir quando a produção, pelas forças mecânicas, fornece além de suas necessidades?”LE LIBERTAIRE n°12: 7 de abril de 1859


“O maior gozo do homem, o trabalho, se tornou uma série de atrações pela  liberdade e diversidade deles, e repercutem um no outro numa imensa e incessante harmonia.” LE LIBERTAIRE n°10: 5 de fevereiro de 1859


 “A variedade de gozos exclui a saciedade. Para eles, a felicidade está em todos os instantes.” LE LIBERTAIRE n°11: 6 de março de 1859


“O homem propõe e o homem dispõe. Da diversidade dos desejos resulta a harmonia.” LE LIBERTAIRE n°11: 6 de março de 1859


“Falta num canto da Europa os produtos de outro continente? Os jornais da Humanisfera o mencionam, é inserido no boletim de publicidade, esse monitor da universalidade anárquica; e as Humanisferas da Ásia, da África, da América ou da Oceania expedem o produto solicitado. É, pelo contrário, um produto europeu que está faltando na Ásia, na África, na América ou na Oceania? As Humanisferas da Europa o expedem. A troca ocorre naturalmente e não arbitrariamente. Assim, se tal Humanisfera doa mais um dia e recebe menos, qual o problema? Amanhã é ela sem dúvida que receberá mais e doará menos. Tudo pertence à todos, e como cada um pode se mudar de Humanisfera como muda de apartamento, se na circulação universal uma coisa estiver aqui ou ali, para que mesquinharia? Cada um não é livre para fazê-la transportar para onde lhe parecer melhor do mesmo modo que cada um é livre para transportar a si mesmo para onde lhe parecer melhor? “ LE LIBERTAIRE n°12: 7 de abril de 1859


“Um humanisferiano não somente pensa e age simultaneamente, mas também exerce  diferentes atividades num mesmo dia.(...)
Quando ele é um operário inferior nisto, ele é operário superior naquilo. Ele tem uma especialidade em que ele é excelente. É justamente esta inferioridade e esta superioridade de uns para os outros e vice versa que produz harmonia. Não custa nada se submeter à uma tal superioridade, que não é oficial, mas reconhecida num ofício, quando num outro momento e num outro instante da produção, esta superioridade se torna a tua inferioridade. Isso cria uma emulação salutar, uma reciprocidade benevolente, que destrói rivalidades invejosas. Então, por esses trabalhos diversos, o homem adquire a posse de, mais do que objetos de comparação, de sua inteligência, que se multiplica assim como as suas aptidões; trata-se de um estudo perpétuo e diversificado que desenvolve neles todas as faculdades físicas e intelectuais, e do qual se beneficiam ao se aperfeiçoar na sua atividade predileta.” LE LIBERTAIRE n°13: 12 de maio de 1859



MATERIALISMO  ESPINOSISTA 


"[...] o corpo social, assim como o corpo humano, não é um escravo inerte do pensamento, muito pelo contrário, é uma espécie de alambique animado cuja livre função dos órgãos produz o pensamento; o pensamento nada mais é do que a quintessência dessa anarquia da evolução cuja unidade é causada somente por suas forças atrativas."  LE LIBERTAIRE n°4: 2 de agosto de 1858

"Para eles, toda matéria é animada; eles não crêem na dualidade da alma e do corpo, eles não reconhecem senão a unidade da substância; simplesmente, esta substância adquire mil e uma formas; ela pode ser mais ou menos grosseira, mais ou menos apurada, mais ou menos sólida ou mais ou menos volátil. Mesmo que se admita, dizem eles, que a alma seja algo distinto do corpo – o que tudo nega -, seria ainda absurdo crer na sua imortalidade individual, na sua personalidade eternamente compacta, na sua imobilização indestrutível. A lei de composição e decomposição que rege os corpos, e que é a lei universal, também é a lei das almas."   LE LIBERTAIRE n°15: 27 de julho de 1859

“Ao contrário de Gall e de Lavater, que tomaram o efeito pela causa, eles [os humanisferianos] não crêem que o homem nasça com as aptidões absolutamente marcadas.(...)

Nós todos nascemos com o germe de todas as faculdades (salvo raras exceções: há os doentes mentais e físicos, mas as monstruosidades são fadadas a desaparecer na Harmonia), as circunstâncias exteriores agem diretamente sobre nós. Conforme nossas faculdades são ou foram expostas a sua influência, elas adquirem um desenvolvimento maior ou menor e se formam de uma ou de outra maneira. O aspecto do homem reflete suas inclinações, mas esse aspecto é geralmente muito diferente daquele que ele tinha quando criança."  LE LIBERTAIRE n°13: 12 de maio de 1859


"O meio onde nós vivemos e a diversidade de pontos de vista onde se colocam os homens e que faz com que ninguém possa ver as coisas sob o mesmo aspecto, explicam (...) a diversidade de suas paixões e aptidões.” LE LIBERTAIRE n°13: 12 de maio de 1859


Não existe ser que não seja joguete das circunstâncias, e o homem é como os outros seres. Ele é dependente de sua natureza e da natureza dos objetos ao seu redor, ou melhor, dos seres ao seu redor, pois todos esses objetos tem vozes que falam e modificam constantemente sua educação. Toda a liberdade do homem consiste em satisfazer a sua natureza, em ceder à suas atrações [inclinações].” LE LIBERTAIRE n°3: 16 julho de 1858


"A criança  é um diamante bruto. É polida pela fricção com seus semelhantes, que a talha e a forma como uma jóia social. É, em todas as idades, uma gema cuja pedra de polir é a sociedade e cujo egoísmo é o lapidário. Quanto mais ela está em contato com os outros, mais recebe impressões que multiplicam em seu rosto e em seu coração as facetas da paixão, das quais jorram as  centelhas de sentimento e da inteligência."  LE LIBERTAIRE nº9 10 de janeiro de 1859

MAS COMO SE ASSOCIAM E SE ORGANIZAM?


“Enfim há o lugar onde se encontram para tratar da organização social. É o pequeno cyclideon, clube ou fórum peculiar à Humanisfera. Neste parlamento da anarquia, cada um é o representante de si mesmo e o par dos outros. Ó! É muito diferente do que é entre os civilizados; ali, ninguém perora, ninguém disputa, ninguém vota, ninguém legisla, mas todos, jovens ou velhos, homens ou mulheres, conferem em comum as necessidades da humanisfera. A iniciativa individual concorda ou recusa sua própria palavra, conforme se considere útil ou não falar.  Neste lugar, há um escritório, naturalmente. Com a diferença de que neste escritório não há nenhuma autoridade exceto o livro de estatísticas. Os humanisferianos acham que este é um presidente eminentemente imparcial e de um laconismo extremamente eloquente. É por isso que não querem nenhum outro.” LE LIBERTAIRE n°9: 10 de janeiro de 1859


“O homem propõe e o homem dispõe. Da diversidade dos desejos resulta a harmonia.” LE LIBERTAIRE n°11: 6 de março de 1859


“Mais ou menos a cada semana, se for necessário, há uma reunião na sala de conferências, isto é, no pequeno cyclideon interno. Em razão das grandes obras a executar. Aqueles mais versados nos conhecimentos especificamente em questão tomam a iniciativa da palavra. As estatísticas, os projetos, os planos já tinham aparecido em folhas impressas, nos jornais; e já foram comentados em pequenos grupos; a urgência foi geralmente reconhecida ou recusada por cada um individualmente. Frequentemente há somente uma voz,  voz unânime, de aclamação ou rejeição. Ninguém vota; nunca  a maioria  e nem a minoria fazem a lei. Se esta ou aquela proposta reúne um número suficiente de trabalhadores para executá-la, quer sejam esses trabalhadores a maioria ou a minoria, então a proposta será executada, se for esta a vontade daqueles que aderem a ela. E com frequência acontece que a maioria se une à minoria, ou a minoria à maioria. Como num passeio no campo, alguns propõem ir a Saint-Germain, outros à Meudon, outros ainda à Sceaux, e ainda outros, à Fontainebleau;  as jornadas se dividem; mas no fim das contas cada um cede à atração de se reunir com outros. E todos juntos tomam de comum acordo a mesma rota, sem que nenhuma autoridade exceto o prazer os governe. A atração é toda a lei de sua harmonia. Mas, tanto na partida quanto na jornada, cada um é livre para se abandonar à seu capricho e  deixar o grupo se isso lhe convém,  parar no caminho, se está fatigado, ou retornar, se está com tédio. A coerção é a mãe de todos os vícios. Por isso, é banida pela razão do território da humanisfera. O egoísmo, naturalmente, o egoísmo inteligente é muito desenvolvido para que alguém pense em forçar seu próximo. É por egoísmo que eles trocam bons atos.” LE LIBERTAIRE n°11: 6 de março de 1859


VIVA O EGOÍSMO!


“O homem é o egoísmo; sem egoísmo, o homem não existiria. O egoísmo é o móbil de todas as suas ações, o motor de todos os seus pensamentos.(...)
É para crescer, para aumentar o círculo de sua influência que o homem leva alto a sua face e atira ao longe o seu olhar; é em vista de satisfações pessoais que ele caminha para a conquista de satisfações coletivas. É para si mesmo, como indivíduo, que ele quer participar da efervescência viva da felicidade geral; é para si mesmo que ele fica aflito pelo sofrimento dos outros. Seu egoísmo, sem cessar exigido pelo instinto de sua conservação progressiva e pelo sentimento de solidariedade que o liga a seus semelhantes – seu egoísmo solicita as perpétuas emanações de sua existência na existência dos outros. É isto que a velha sociedade chama impropriamente de devotamento e que não é senão espelhamento [spéculation], espelhamento que é tanto mais humanitário quanto é mais inteligente, que é tanto mais humanicida quanto mais é imbecil.(...)
Humanamente, não é possível fazer um movimento, um gesto da mão, do coração ou do cérebro, sem que a sensação se repercuta de uma pessoa para outra como um choque elétrico. E isso tem lugar no estado de comunidade anárquica, no estado de natureza livre e inteligente.“ LE LIBERTAIRE n°12: 7 de abril de 1859


E OS TRABALHOS MAIS DESAGRADÁVEIS?


“Embora na Humanisfera as máquinas façam todos os trabalhos mais grosseiros, eu penso que ainda há trabalhos mais desagradáveis do que outros, me parece inclusive que há alguns que não são do gosto de ninguém. Porém, estes trabalhos são executados sem nenhuma lei nem regulamento que constranja quem o faz. Como assim?, pergunto eu, que ainda não vê as coisas senão com meus olhos de civilizado. No entanto é bem simples. O que é que torna o trabalho atraente? Nem sempre é a natureza do trabalho mas a condição na qual ele é exercido e a condição do resultado a obter.” LE LIBERTAIRE n°14: 15 de junho de 1859



"Na Humanisfera, alguns trabalhos que por sua natureza me parecem repugnantes encontram porém operários para executá-los com prazer. E a causa disso é a condição na qual são executados. As diferentes séries de trabalhadores são convocadas voluntariamente, como são convocados os homens de uma barricada, e são totalmente livres para permanecer o tempo que quiserem ou para passar a uma outra série ou para outra barricada. Não há chefe apontado nem intitulado. Aqueles que tem mais conhecimento ou aptidão nesse trabalho dirigem naturalmente os outros. Cada um toma a iniciativa mutuamente, conforme se reconheça suas capacidades. Por outro lado, cada um dá sua opinião e recebe a do outro. Há entendimento amigável, não autoridade. Ademais, é raro que não haja mistura de homens e mulheres entre os trabalhadores de uma série.  E o trabalho se dá em condições muito atraentes para que, mesmo que fosse repugnante por si mesmo, não se encontre um certo encanto em cumpri-lo. Em seguida, há a natureza do resultado a obter. Se um trabalho é com efeito indispensável, aqueles à quem ele mais repugna e que se abstém ficarão encantados que outros se encarreguem dele, e  retornarão em afabilidade a esses últimos, com grandes consideração, que é a compensação do serviço que os outros lhe retornaram. Não se pense que os trabalhos mais grosseiros pertençam, entre os humanisferianos, às inteligências inferiores, muito pelo contrário, são as sumidades nas ciências e nas artes que geralmente  se aprazem em fazer esse trabalho penoso. Quanto mais a delicadeza é refinada entre os homens, mais ela torna-os aptos, em certos momentos, aos trabalhos rudes e difíceis, sobretudo quando eles são um sacrifício oferecido em amor à humanidade.(...) O egoísmo é a fonte de todas as virtudes.” LE LIBERTAIRE n°14: 15 de junho de 1859


UMA ÚNICA HUMANIDADE


“Atravessei todos os continente, Europa, Ásia, África, Oceania. Vi muitas fisionomias diferentes, mas vi por toda parte somente uma raça. O cruzamento universal das populações asiáticas, européias, africanas e americanas (os pele-vermelhas); a multiplicação de todos por todos nivelou todas as asperezas de cor e de linguagem. A humanidade é una. No olhar de todo humanisferiano há uma mistura de gentileza e orgulho que tem um estranho encanto. Algo como uma nuvem de fluído magnético envolve toda sua pessoa e ilumina sua face com uma auréola fosforescente.  Sente-se uma inclinação para eles graças a uma atração irresistível. A graça de seus movimentos se soma ainda à beleza de suas formas. A palavra que sai de seus lábios, cada marca de seus suaves pensamentos, é como um perfume que emana. A estatuária não saberia modelar os contornos animados de seus corpos e de seu rosto, e que dão encantos sempre novos a essa vivacidade.” LIBERTAIRE n°15: 27 de julho de 1859


A COMPETIÇÃO COMUNISTA ANÁRQUICA


“(...) havia uma exibição universal dos produtos do gênio humano.(...)

Nesse círculo de obras poéticas da mão e da inteligência foi exposto todo um museu de maravilhas. A agricultura para ali levou suas colheitas, a horticultura, seus frutos, a indústria, seus tecidos, seus móveis, seus adereços, e a ciência levou todas as suas engrenagens, seus mecanismos, suas estatísticas, suas teorias. A arquitetura para ali levou suas plantas, a pintura, os seus quadros, a escultura e a estatuária seus ornamentos e estátuas, a música e a poesia, os mais puros de seus cantos.  Tanto as artes como as ciências puseram ali suas jóias mais ricas.

 Não era um concurso como os nossos concursos. Não tinha nem júri de admissão e nem júri para recompensar com base na voz da sorte ou do voto, nem prêmio [grand prix] garantido por juízes oficiais, nem coroas, nem patentes, nem laureados, nem medalhas. A livre e grande voz pública é o único juiz soberano.  É por prazer a esse poder da opinião que cada um expõe a ela suas obras, e é ela que, passando diante dos produtos de uns e de outros, lhes premia segundo suas aptidões especiais, não com palmas de distinção, mas com admirações mais ou menos vivas, exames mais ou menos atentos, mais ou menos desdenhosos. Assim, seus julgamentos são sempre justos, sempre condenando os menos bravos, sempre louvando os mais valentes, sempre estimulando a emulação, tanto para os frágeis quanto para os fortes. É o grande retificador dos tortos; ela evidencia a todos individualmente se eles seguiram mais ou menos o caminho de sua vocação, se elas são mais ou menos postas de lado; e o futuro se encarrega de confirmar suas observações maternais.  E todas os suas linhas crescem para se superar nessa educação mútua, porque todos têm a orgulhosa ambição de se distinguir igualmente nas suas diversas obras. “ LE LIBERTAIRE n°7: 25 de outubro de 1858


“(...) [N]a Humanisfera, (...) há somente oficinas de prazer e exposições de trabalho, armazéns de ciência e de artes e museus de todas as produções: após ter admirado essas máquinas de ferro cujo móbil é o vapor ou a eletricidade, multidões de engrenagens laboriosas que são para os humanisferianos aquilo que as multidões de proletários ou de escravos são para os civilizados; após ter assistido o movimento não menos admirável daquela engrenagem humana, dessa multidão de trabalhadores livres, mecanismo serial  cujo único móbil é a atração; após ter constatado as maravilhas dessa organização igualitária cuja evolução anárquica produz a harmonia; (...) [depois de tudo isso] como se poderia, diga-me, retornar aos civilizados, como se poderia voltar a viver sob a Lei, esse chicote da autoridade, quando a anarquia, essa lei da liberdade, tem costumes tão puros e doces? Como se poderia considerar como uma coisa tão incomum aquela fraternidade inteligente, e  considerar como normal essa imbecilidade fratricida?” LE LIBERTAIRE n°14: 15 de junho de 1859




Tradução por Humana Esfera, a partir de http://joseph.dejacque.free.fr/libertaire/n01/n01.htm e https://we.riseup.net/jessecohn/experimental-translation-wiki-2. Julho de 2012.

Veja trechos de  Le Humanisphère sobre a transição revolucionária
Veja os trechos de Le Humanisphère onde Déjacque relata suas influências



Outros clássicos que traduzimos:

Sobre a troca (1858) - Joseph Déjacque


Abaixo, "memes" publicados na página Joseph Déjacque, o libertário:














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