quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Revertério

Parece que há um padrão que sempre se repetiu na história do capital: quando há crise geral de lucratividade na produção, os capitalistas desinvestem ou liquidam a produção para investir no capital financeiro. Esperam que este último encontre algo novamente lucrativo para colocar seu dinheiro. Mas na medida em que a crise geral de lucratividade continua, surgem apenas bolhas e mais bolhas especulativas que estouram sucessivamente. Por fim, só resta ao capital financeiro investir nos Estados, o garantidor último do capital (o "porto seguro"). Cada Estado compete com os demais para atrair capitais, e, nesse momento, o principal sinal de ser um destino atrativo é ser um Estado mais forte (logo, mais "seguro") do que outros. A corrida armamentista se acelera assustadoramente, uma economia de guerra aos poucos vai se formando quase imperceptivelmente. Até que um evento insignificante (real ou provocado) dispara uma guerra de alcance mundial. Segundo alguns historiadores, esse padrão se repetiu desde Veneza e Gênova no século XIV (que foi a primeira vez na história que o capital, ainda comercial, se tornou poderoso) a cada mudança do centro hegemônico do capital no mundo (Gênova->Espanha->Holanda->Inglaterra->EUA).
Porém, a crise de lucratividade atual (que perdura desde a década de 1970) decorre de uma composição orgânica do capital imensamente mais alta do que já se viu no passado. É uma crise estrutural da produção de valor e da acumulação do capital, i.e não parece ter solução que repita padrões anteriores da história. E a medida que o proletariado, como classe autônoma (i.e. com o projeto de uma sociedade sem Estado, sem fronteiras, sem exploração, que suprima a dominação do homem pelo homem), está há 40 anos tão derrotado que desapareceu da cena histórica (a ponto de hoje quase todos imaginarem que ele não existe mais), estamos muito provavelmente rumando para um longo período de neo-feudalismo, neo-barbárie, sob domínio de neo-aristocracias de gangsteres, de máfias, grupos de extermínio, fundamentalismos religiosos, etnicismos... Tudo aponta para um certo tipo de guerra de todos contra todos que abra espaço permanente para uma redução drástica da composição orgânica do capital (restaurando a lucratividade), devido ao imenso trabalho humano (portanto valor) que uma situação de barbárie extra-econômica generalizada exige. Esse gigantesco novo "campo de trabalho" que lida não mais com a "natureza", mas com a "segunda natureza" técnico-social enlouquecida dejetada pela própria barbárie da passagem do capital, seria a nova base da exploração do trabalho e, consequentemente, da valorização do capital. Já hoje, esse espírito de salve-se quem puder, de maneira inconsciente, toma a sociedade como único futuro imaginável (e esta é exatamente a "utopia" abertamente defendida pela nova direita proto ou neo-fascista, os Bolsonaros da vida, e também a esquerda nacionalista, identitária etc, que se espalham pelo mundo). Assim, a antecipação desse único futuro imaginado, sua preparação, já coloca todos nós no meio do que se supõe que estaria por vir (mesmo que não venha, como desejamos).
Essa situação está tendo um efeito sobre nós. Os textos de nosso site, humanaesfera, são feitos a partir de contatos e conversas na vida cotidiana com muitas pessoas, inclusive desconhecidos aleatórios. O site é um projeto não-autoral de reunir ideias e argumentos ouvidos na vida cotidiana que vão na direção da atualização para o século XXI do programa radical do proletariado de transformação da sociedade, buscando reunir de modo coerente essas ideias em uma teoria que pode ser tomada livremente e desenvolvida por qualquer proletário, conforme suas necessidades e capacidades de pensar e de lutar. Desde cerca de 2016, essas conversas na vida cotidiana se tornaram cada vez mais difíceis. Depois da derrota de junho de 2013 e a consequente desmoralização cada vez maior da solidariedade entre os explorados que, confiando cada vez menos em si mesmos, competem entre si para ser "salvos" por sua "própria" classe dominante, tudo aquilo que escrevemos são palavras que cada vez mais não dizem nada para os explorados derrotados. Desse modo, a fonte de nosso site está secando. O que nos restou é reunir o que aprendemos ao longo desses vários anos sob a forma de perspectiva teórica para tentar analisar e compreender o que está acontecendo hoje e transmitir a chama acesa para as próximas gerações. Espero que ainda consigamos fazer isso.
Há também outra questão muitas vezes menosprezada: e nosso coração neste mundo que parece sem coração definitivamente? Como proletários, o coração é tudo que temos: nossas capacidades, desejos, necessidades, nossa vida, rodeada e confrontada a condições objetivadas como uma força hostil voltadas contra nós mesmos, isto é, propriedade privada, o capital. Apesar de tudo, com um pouco de arte, agente vai levando. No vídeo abaixo, Nelson Cavaquinho cantando a música Revertério (Nelson Cavaquinho/Guilherme de Brito) em um documentário de 1969.
Nina Simone - Ain't got no / I got life :

humanaesfera, agosto de 2019

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