Dizer que as diferenças diferem significa dizer que algo só existe em relação com outros algos, nunca num absoluto. Então, vejamos o que são "relações". A primeira aparência, a mais superficial, das relações é o limite (algo só é algo porque se limita com outros algos, quer dizer, é separado deles), mas esta é sua aparência imediata. O essencial é saber como algo vem a ser, isto é, saber como e por quê algo existe ao invés de nada, como algo se separa transitoriamente de todo o resto e se torna algo. Em outras palavras, a relação essencial que importa investigar é a determinação.
Além disso, nem toda relação entre algo e outro algo é de limite. O pão não se limita com o trigo que o compõe, o cérebro não se limita com as células nervosas, como também a mente não se limita com o cérebro, e nem as idéias se limitam com a mente, por exemplo. E no entanto, têm relações e unicamente mediante essas relações eles são diferentes.
Por que algo existe ao invés de nada?
A condição para que algo exista ao invés do nada é não apenas que esse algo seja causado por outro algo, mas que o efeito (algo) influencie a causação (o outro algo) e se torne causa de sua própria sua manutenção, de sua permanência. É o que Baruch Espinosa chamava de conatus.
Exemplo: Uma pedra é um efeito dos minerais que a compõe, mas ela só existe porque o efeito (a própria pedra em sua relação a outras coisas, inclusive outras pedras) afeta suas causas de modo que os minerais continuam mantendo uma certa disposição entre si que impede o esfarelamento da pedra durante o tempo em que existe. A pedra enquanto pedra (efeito) torna-se causa da permanência de suas próprias causas (aglutinação dos minerais) devido à relação dessa pedra com outras pedras e materiais a sua volta, que estão dispostos no lugar de modo a não esfarelá-la.
Assim, em última instância, a determinação de algo é puro acaso. Acaso não significa sem causa e nem indiferença, mas sim que a determinação não é predeterminada, mas, pelo contrário, que ela surge da confluência de diversas determinações simultâneas puramente contingentes e heterogêneas.
Uma "supermente" (o "demônio de Laplace"), dizem, poderia saber todos os encadeamentos causais e prever todos os resultados. Para essa supermente, o acaso não existiria. Mas essa concepção de uma super-alma, ao negar o acaso, não é determinista, mas predeterminista. E também não é materialista, mas dualista, já que supõe a existência de uma super-alma fora e acima do universo causal, isto é, uma diferença indiferente absoluta. Ou seja, é fantasia.
Tudo o que podemos saber só sabemos unicamente através de nossa determinação singular no universo material e nunca por uma mente flutuando indiferentemente acima da matéria que saberia tudo do universo. Desse modo, acaso e determinação engendram-se mutuamente no materialismo.
O novo e sua permanência (surgimento e continuidade / gênese e reprodução)
Quando o acaso gera algo, surge a necessidade, que é a duração desse algo.
Muitas vezes, as causações originais de algo (as causas de sua gênese, de seu surgimento) diferem das causações de sua manutenção (as causas de sua continuidade, de sua reprodução, de sua permanência).
O mundo pulula de causações simultâneas acontecendo a todo instante, mas algo novo só surge quando, por simples coincidência, algumas causações confluem e se sustentam mutuamente nessa confluência, gerando algo diferente. É essa sustentação mútua das determinações que as separa das demais determinações e as limita com outros algos, dando surgimento a algo novo.
Esse algo novo pode ser tão fortemente mantido separado dos demais algos através dessas determinações mútuas que ele pode continuar se sustentando por causações diferentes das originais (diferentes das causações originais dessas determinações mútuas desse algo).
Exemplos: O surgimento dos seres vivos é um caso paradigmático deste caso (surgimento da separação do meio interno do externo através da vesícula celular e reprodução mediante genes). Também é o caso da acumulação primitiva do capital (a barbárie da separação sangrenta da população dos meios de produção confluiu com o comércio, causando o capital industrial) com relação à reprodução do capital (igualdade e liberdade entre mercadores "civilizados" causa a sujeição do trabalho vivo ao trabalho morto, isto é, o capital). Do mesmo modo, uma nova idéia (um conhecimento, uma percepção ou um desejo) na mente pode se sustentar por razões diferentes das razões que lhe deram origem.
Crescimento e morte
As coisas, se desdobram, e enquanto permanecem, vão se tornando determinação entre outras de um conjunto de determinações mútuas internas de outros algos e assim por diante, através do mundo.
Inevitavelmente, a separação de algo com relação a todo o resto não permanece para sempre. Se permacesse eternamente, seria o caso mais próximo da diferença indiferente defendida pelo imaterialismo. Mas não é o caso.
Algo morre quando suas determinações mútuas internas tornam-se insuficientes para manter a unidade desse algo Há dois modos de algo morrer: por crescimento exagerado e por determinações externas agressivas. O crescimento exagerado faz com que o peso da unidade desmorone sobre suas próprias determinações mútuas internas que se tornaram insuficientes. Já no outro modo de morte, as determinações externas agressivas entram em relação com as determinações mútuas internas desagregando-as, fazendo a unidade desmoronar devido aos seus pilares serem puxados por todos os lados.
As determinações externas destrutivas, além disso, podem ser o próprio resultado da ação das determinações mútuas internas, que assim destroem suas próprias condições de existência. Por exemplo, a destruição pelo homem do ecossistema que é a condição de sua prória vida.
Pode ocorrer que um dos produtos das determinações mútuas internas de algo cause o desmoronamento da unidade, sobreviva e lance as bases para que novas determinações mútuas sejam reunidas e formem uma nova unidade diferente da anterior. Exemplos: A morte do comunismo tribal dando lugar à sociedade de castas, assim como a morte desta última dando lugar à sociedade de classes (capitalismo). Também é o caso dos seres vivos (genes, sementes, reprodução), e também dos programas de computadores (que pode ser transferidos para vários computadores). Mas certamente até esse tipo de continuidade também não dura para sempre.
Conclusão
Não há necessidade da imaterialidade para explicar o acaso e, daí, a liberdade. Como vimos, o acaso é a própria determinação. Logo, pode ser explicado de modo plenamente materialista, isto é, sem precisar recorrer a nenhuma diferença indiferente imaginária.
E também:
Algumas implicações epistemológicas e éticas do materialismo
- Lucrécio - Da Natureza das Coisas (De Rerum Natura)
- Baruch Espinoza - Ética
- Jean Meslier - Ateísmo e Revolta, os manuscritos do padre Jean Meslier (Paulo Jonas de Lima Piva)
- La Mettrie - O Homem-máquina
- Holbach - Sistema da Natureza
- Hegel - Fenomenologia do Espírito
- Marx - Manuscritos econômicos e filosóficos, A Ideologia Alemã, Grundrisse
- Joseph Déjacque - A humanisfera
- Bakunin - Deus e o Estado
- Michel Serres - O Nascimento da Física no Texto de Lucrécio
- Deleuze & Guattari - Capitalismo e esquizofrenia, volume I (O Anti Édipo) e II ( Mil Platôs)
Quanto ao demônio de Laplace, não é preciso que ele seja uma divindade ou extrínseco ao Universo. Na verdade, poderia hipoteticamente ser mesmo uma espécie de supercomputador. Mas considero implausível mesmo assim.
ResponderExcluirNão consegui postar meu comentário pela limitação de caracteres do HTML. Então postei ele neste meu blog: http://mcarsten.blogspot.com.br/2015/08/sobre-o-determinismo.html
É um texto-resposta que escrevi a este seu texto. Achei seus argumentos muito interessantes, diferentes dos que costumo encontrar, apesar de eu discordar do determinismo. Gostaria de saber sua opinião a respeito. Abraços.
Muito bom, rico em informações e esclarecedor o teu texto. Parabéns. Você tinha me apresentado o link para este teu texto como se ele fosse uma refutação do texto sobre determinismo em humanaesfera. No entanto, ele não é uma refutação, porque o determinismo afirmado ali tem um sentido filosófico (o campo da filosofia é a vida cotidiana como pensamento e prática), diferente do sentido que vc usa, que é científico (o campo da ciência é a descrição fúncio-matemático-técnica do universo, campo que desde a revolução industrial se separou da filosofia como uma esfera independente e auto-suficiente do conhecimento). O que você chama de determinismo, chamo de pré-determinismo. E o que você chama de indeterminação, chamo de determinação.
ResponderExcluirNa filosofia, determinismo nada tem a ver com pré-determinismo (enquanto que na visão científica que você usa não há distinção entre as duas coisas, como se fossem sinônimos).
Determinar vem do latim = "des-terminar", ou seja, apreender os eventos em suas inter-relações e especificidades e não em seu isolamento como se fossem coisas "terminadas", formas indiferentes, fechadas.
O determinismo filosófico simplesmente leva isso radicalmente até o fim, com a ideia de que, no mundo e na vida, há vários (talvez infinitos) fatores heterogêneos atuantes (ou seja, presentes, e não-passados) se encontrando frequentemente e de muitíssimos modos, e que são precisamente esses encontros, dependendo do tempo, espaço e maneira específicos (determinados) como se dão, que faz surgir algo novo ou não, faz subsistir algo ou não, faz destruir algo ou não (pense nas explicações dos acidentes de avião). Este é o conceito de determinação. Note que ele inclui o próprio acaso como determinação (e por isso é completamente diferente do pré-determinismo).
É neste sentido que, na vida cotidiana (que é o campo da filosofia), a atitude determinista é a única que favorece a razão - que é a apreensão da "ratio", relação, inter-relação ou "des-terminação" dos eventos e de como eles se relacionam com nossa vida -, que nos permite buscar determinar nossa própria vida transformando/influenciando o que nos transforma/influencia. Ou seja, sem o determinismo prático cotidiano, jamais poderíamos ser autônomos e nem racionais.
Em contraste, se for adotado na vida cotidiana, o indeterminismo tem a mesma implicação prática do pré-determinismo, porque ele só pode levar à passividade vegetal em que apenas reagiríamos aos eventos que nos afetam, porque seríamos incapazes de ver qualquer inter-relação entre eles e entre eles nós mesmos, incapacitando toda e qualquer ação, e nos fazendo acatar tudo que sofremos como se fossem fatos incondicionais, formas indiferentes, sem relação com nada, ou seja, indeterminações. Essa disposição indeterminista cotidiana é a que os senhores sempre inculcam nos escravos, para que estes permaneçam incapazes de pensar e agir, incapazes de razão, incapazes de se auto-determinar (ou seja, determinar o que os determina), incapazes de se comunicar, e portanto incapazes de se libertar dos senhores.
[continua no próximo comentário]
Concluindo: quando você critica o determinismo e eu defendo o determinismo, estamos falando de campos diferentes (você, o da ciência, e eu o da filosofia) que usam palavras semelhantes mas com sentidos completamente diversos e até opostos.
ResponderExcluirFilosoficamente, a palavra determinismo é muito rica semanticamente; Considere, por exemplo a frase do determinista Demócrito: "Tudo que existe no universo é fruto do acaso e da necessidade". Não é possível conciliar essa afirmação com o pré-determininismo e nem com a teleologia, mas apenas com o determinismo.
Quanto ao livre arbítrio ou livre escolha, de um ponto de vista filosófico materialista é possível entender o livre arbítrio como mera servidão, como completa falta de liberdade. Pois em última análise, a livre escolha é meramente uma situação em que somos forçados a vacilar entre dois ou mais caminhos dados, pré-determinados, ou hetero-determinados (determinado por outros). A verdadeira liberdade não é livre arbítrio, mas determinação de si e das condições que nos determinam, ou seja, criatividade e transformação das circunstâncias, e não mera escolha de aspectos pré-estabelecidos nessas circunstâncias.
E sem falar que "livre arbítrio" é um conceito meramente religioso. Porém, os filósofos cientificistas, como Dennet, não percebem isso.
"O livre-arbítrio é um pequeno presente com o qual, por um honroso favor, Deus gratificou a espécie humana. Com a ajuda desse livre-arbítrio, nós desfrutamos - acima dos outros animais e das plantas - da faculdade de podermos nos perder para sempre, quando o nosso livre-arbítrio não está de acordo com as vontades do Todo-Poderoso - este tem, então, o prazer de punir aqueles que ele deixou livres para atormentá-lo." (Holbach, Teologia portátil ou dicionário abreviado da religião cristã).
Desculpa o atraso para respondê-lo. Estive ocupado durante a semana. Já havia lido uma primeira vez suas duas respostas e fiquei refletindo a respeito enquanto isso. Antes só gostaria de esclarecer que não redigi o texto como uma "refutação" em si, não estruterei de forma a refutar, mas sim argumentar em cima do seu texto, cotejando com outros temas para promover alguma análise.
ExcluirRealmente há uma distinção entre determinismo e pré-determinismo. Eu já havia me deparado com este último termo, porém não havia ainda integrado seu conceito. Imaginei que, pela semântica, o pré-determinismo seria uma espécie de causação inicial, deixando o resto por conta do acaso, mais ou menos como o deísmo considera (Deus transcendente como única função a de ter criado o Universo, sendo o resto dos eventos naturais nada mais do que operação das leis físicas, o ‘Deus relojoeiro’).
Não acho que deva haver nenhuma separação entre as abordagens dos conceitos pela Filosofia e pela Ciência. Conforme lhe expus naquele meu outro comentário, no seu texto sobre materialismo, defendo uma relação de ‘feedback’ entre ambos, isto é, uma retroalimentação direta, ou seja, a Filosofia e a Ciência são imprescindíveis um do outro. Note que não estou propondo uma abordagem cientificista. Não considero que a interpretação científica dos fenômenos seja sempre a correta ou a melhor por via de regra. Cada uma tem o seu campo de estudos. Acontece que não importa o quanto se queira, pensar que algo a que se pensa seja diferente daquilo que ela é, exterior e independente à mente, não a muda.
Por exemplo, a filosofia aristotélica pregava o Sol como astro em órbita da Terra. Mesmo àquela época já existiam alguns pensadores que propuseram o contrário (muito mais tarde restaurado por Copérnico). A desavença, então, se dava porque os aristotélicos pensavam que se a Terra girasse em torno de seu eixo e atirássemos um corpo para cima, este corpo cairia atrás de nós pela rotação realizada. Certamente isto não procede, trata-se de uma afirmação gratuita acerca da realidade. Coube a Newton celebrar a descrição da mecânica dos corpos e introduzir o conceito revolucionário de “referencial”, sepultando o aristotelismo de vez. Talvez você diga que estou falando de Física e não de Filosofia. Devo lembrar que não havia distinção nítida até mais ou menos o século XVIII, onde a Física ainda era chamada de “filosofia natural”. Não só muitos físicos ao longo da história foram grandes pensadores, como também muitos dos antigos gregos também foram grandes físicos (por mais que estivessem equivocados). E, atualmente, muitos campos de estudo da física moderna são tenazmente filosóficos, levantando questionamentos relevantes para a filosofia. Há uma série de conceitos filosóficos na física, como "tempo", "espaço", "força", "energia", "Universo", "matéria", "entropia", "informação", "causa", "sistema", etc. Recomendo os livros do físico brasileiro Marcelo Gleiser, são excepcionais, acessíveis, e revelam um lado emocionante e sensibilizante dos cientistas, além de filosóficos, ao contrário da conotação fria e calculista, e pragmática, que costumam atribuir.
Também há o problema da mente. Ao longo de toda a história humana, desde que o homem começou a questionar o mundo a sua volta, busca-se compreender o que é a mente e como ocorrem os processos mentais. Centenas de explicações sobrenaturais foram apregoadas, como os conceitos de ‘alma’ ou ‘espírito’, que, contudo, não possuem a menor facticidade empírica. Houve até mesmo cientistas que aferiram a massa de ratos e humanos antes e depois da morte para descobrir a massa da alma. Não houve nenhuma mudança significativa sequer. Um pensamento pode ser exposto em versos rigorosamente lógicos e não corresponder ao funcionamento autônomo real do Universo. Aristóteles e Tomás de Aquino que o digam. Este último é famoso por suas deduções elaboradas com a profunda rigidez lógica, sem contudo se ater aos fatos, sempre retirando uma conclusão a partir de uma carta na manga.
ExcluirPelo que pude depreender, o determinismo que você aborda relaciona processos com base no desenvolvimento que os leva a ser tal qual o são. O acaso que você comentou seria então como o lançamento de um dado. Mesmo que o lançamento de um dado seja um evento probabilista, ainda é um evento determinístico, isto é, o "acaso" que se emprega aqui quer dizer um fenômeno imbricado, isto é, que exerce uma série de interações com os sistemas vizinhos, entrelaçando-se e então exibindo um comportamento complexo, dificultando sua previsão. Em tese, poder-se-ia medir as variáveis físicas envolvidas no processo de lançamento e então determinar a posição e orientação espacial em que o dado cairia, contudo, os cálculos são extremamente complexos. Mesmo para um corpo rígido mais simples como uma moeda a física é complicada. Veja este vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=AYnJv68T3MM Veja também o paper do experimento: http://statweb.stanford.edu/~susan/papers/headswithJ.pdf Neste caso, uma abordagem estatística facilita os cálculos. É o caso do comportamento das moléculas de um gás ideal. Antes se tentava sem sucesso obter a trajetória das moléculas com base em cada colisão e movimento realizado, o que criava equações diferenciais complicadíssimas e difíceis de testar. Mais tarde é que o cientista e filósofo Boltzmann conseguiu obter uma descrição satisfatória e aplicável, desenvolvendo o famoso "teorema H". Você sabia que temperatura nada mais é do que um conceito estatístico? Vamos supor que você retirasse todos os corpos do Universo, com excessão de um. Tal corpo não teria temperatura, pois a temperatura nada mais é do que a densidade média de energia cinética translacional (mas não vibracional ou rotacional) de um sistema. Se tiver interesse, leia este meu texto: http://mcarsten.blogspot.com.br/2015/04/a-vida-os-astros-e-entropia.html
Se estou certo no sentido que atribuí ao determinismo que você emprega, este determinismo nada mais é do que o que comentei em meu texto, ou seja, como sendo o resultado de centenas de bilhões de eventos oriundos de subsistemas de um sistema maior, realizando inúmeras interações conexas. Portanto, é um conceito admissível, contanto que se compreenda que resulta de um número muito grande de processos menores, dando-se em escalas compostas por uma quantidade de pelo menos uns 10^20 átomos (1 seguido de 20 zeros), mas que a nível fundamental, ou seja, ao nível das menores tijolos da matéria, é inexistente. Alguns filósofos propuseram experimentos mentais para eventos não-determinísticos a nível macroscópico, como a "cúpula de Norton", mas ainda não se tem um consenso. Leia isto: http://www.pitt.edu/~jdnorton/papers/003004.pdf
O indeterminismo não implica em se tornar um vegetal alheio aos fenômenos naturais, muito menos um ser sujeito à opressão. Não existir elo causal entre eventos como obrigatoriedade não significa tornar o mundo incompreensível, e sim em reconhecer seu funcionamento tal qual é, sem preconceitos. Grande parte do sucesso do método científico se deve à percepção de causa e efeito. Concordo com Hume que esta relação de causação nada mais é do que um hábito, ou melhor, um artifício, que desenvolvemos para interpretar o que ocorre em nosso entorno, isto é, um conceito nomológico. Em suma, o Universo não é um programa de computador efetuando tarefas com base em imposições compostas, linearmente ou não. É um computador que faz tudo isso e ainda joga dados, parafraseando Einstein. O pré-determinismo é que é a ferramenta de dominação dos senhores. O indeterminismo é que é o comportamento natural, mas que se torna aparentemente determinista à medida que se emerge significativamente de sistemas básicos (no sentido de fundamentais). Não havendo determinação causal, não há espaço para Deus, para ditadores, para seres esotéricos de qualquer ordem, agirem à revelia do comportamento natural, pois não existe imposição. No pré-determinismo Deus sabe de tudo e realiza tudo. No determinismo Deus é incapaz de saber e realizar tudo pois não pode interfirir em nada. No indeterminismo Deus é igualmente incapaz de saber e realizar tudo pois há elementos da própria realidade que se moldam continuamente de forma imprevisível, independendo do mais preciso, mesmo infinitamente preciso (o que supostamente Deus seria capaz), instrumento de medida. Mesmo não sendo determinista, ainda há espaço para agir, comunicar, alterar, transferir, impingir, modificar, trocar, raciocionar, caso contrário seríamos todos zumbis movidos como peças de tabuleiro.
ExcluirAdorei sua definição de livre-arbítrio (do modo que se aplica aqui). Realmente definir o livre-arbítrio como uma mera capacidade de escolha entre uma coleção de possibilidades é limitado. De fato o livre-arbítrio seria não só isso, como também a capacidade de abrir novas possibilidades e transformar as circunstâncias para o que desejamos. Esta é a que a verdadeira liberdade. Dei-me por satisfeito e mudei meu modo de conceber o livre-arbítrio, agora como este que expliquei. Estou ciente de que o livre-arbítrio, originalmente, está vinculado ao problema do mal na teologia. Mas o uso que faço é filosófico e não teológico. Mais especificamente, o "libertarianismo metafísico" o termo adequado.
Bom, me alonguei um pouco, mas é porque é um assunto que tenho profundo interesse. Fico contente em ter aprendido um pouco mais com suas argumentações e respostas. Espero que continue com o bom trabalho. Estou inclusive com algumas posts favoritadas para ler depois, ando ocupado no momento com os estudos. Lerei assim que possível. Um abraço.
Tuas respostas sempre me claream as ideias e aprendo bastante. Valeu. Ainda não li o Marcelo Gleiser. Já li o Stephen Hawking (o Grande Projeto), Richard Feynman (12 lições...), o Mlodinow (um livro sobre estatística), Carl Sagan (vários) e alguns outros de fisiologia, biologia, botânica, neurologia.
ExcluirO que me parece claro é que o método científico, principalmente na física, busca a descrição matemática dos fenômenos em termos de funções (formalismo matemático), descrição comprovadamente certeira no caso da física quântica e aceita pela comunidade científica como um todo.
A controvérsia na comunidade científica, no caso da física quântica, surge sobre como traduzir essas funções matemáticas não só em termos macroscópicos (por ex. física relativística) e ultra-microscópicos (outras hipotéticas funções matemáticas que descreveriam o que ocorre abaixo das particulas elementares), mas também traduzi-las para os termos do mundo humano. Há mais de 20 interpretações (hipóteses) da mecânica quântica ( https://en.wikipedia.org/wiki/Interpretations_of_quantum_mechanics ), sendo que algumas já foram descartadas, enquanto a maioria espera condições de teste que não são tecnicamente disponíveis ainda.
É certo que essas interpretações recorrem inevitavelmente aos conceitos filosóficos. Acho inclusive que muitas delas se enrolam porque tomam de forma não-crítica varias palavras tomadas da filosofia (por exemplo, essa confusão entre pré-determinação, determinação, e também matéria, indeterminação, livre arbítrio...). Mas acontece que a física recorre a esses conceitos filosóficos apenas provisoriamente, apenas para criar hipóteses que serão traduzidas em novas funções matemáticas a serem testadas. Tão logo testadas e comprovadas, o que é aceitável pela comunidade científica como realmente científico são as funções matemáticas, não a filosofia.
Por outro lado, independentemente da comunidade científica, estamos na nossa vida cotidiana: há vizinhos, namorada, carros buzinando, lojas, escolas, gente trabalhando, história, máquinas, aposentados, pirilampos, economia, músicas, demônios-da-Tazmânia, casamentos, cultura, sociedade... O que fazer? Que fins são os melhores para nossa vida e o mundo? Como viver da maneira mais feliz possível? Estas questões são a filosofia propriamente dita. A ciência aqui é no máximo um meio para a vida filosófica, meio técnico e meio descritivo.
Sobre a questão do indeterminismo ser ou não uma ferramenta de dominação, se o indeterminismo for entendido como a afirmação de que cada evento ocorre de modo indiferente a tudo o mais, esse conceito tem uma história longuíssima no pensamento filosófico. Na china antiga, por exemplo, o taoista Guo Xiang dizia que tudo que existe é "por si mesmo assim" (ziran), que todo ser se cria por si mesmo (zizao), gera-se por si mesmo (zisheng), obtém-se por si mesmo (zide). Superficialmente esse pensamento pareceria favorecer a liberdade, mas Guo Xiang conclui após uma análise detalhada desse conceito que "o governo perfeito deixa funcionar as distinções hierárquicas que existem como fazendo parte da ordem natural". Na história da filosofia, sempre que se afirmou que tudo o que é, é porque é assim, sem razão de ser, sempre se chegou à mesma implicação social hieráquica e autoritária, porque sempre se chega a conclusão que a hierarquia e o poder surgem da própria natureza simplesmente porque "é assim".
Valeu, cara, um abraço.