O tráfico de drogas existe em todo o mundo, da Noruega até o Japão, do Canadá até o Chile, da Finlândia até a África do Sul. Em quase todos os lugares, o tráfico não anda com fuzis de assalto e muito menos metralhadoras, mas opera escondido, para chamar o mínimo possível de atenção, operando da mesma maneira como todos os demais contrabandos.
Estudos com amostras retiradas da rede de esgoto em muitas capitais de países ricos provam que, em capitais como Londres, Barcelona, etc., o consumo de cocaína e outras drogas é altíssimo. [1] Então surge a questão: por que nesses lugares não se vê o tráfico fortemente armado que se vê no Brasil e, especialmente, no Rio de Janeiro?
Muito pensam que o motivo disso é que o Brasil ou o Rio é um lugar amaldiçoado, ou que seus moradores por alguma natureza do lugar ou alguma falha moral incorrigível de nascimento ou cultura são levados por natureza ou ira divina a cometer crimes violentos mais que os de outros lugares. [2] Mas não é nada disso. Até meados dos anos 1970, o tráfico no Rio era como é no resto do mundo.
Como é no resto do mundo? A polícia prende alguns (para mostrar que seu poder de prender não é nenhuma bravata) e, a seguir, ameaça prender os demais se não pagarem propina (também conhecida como "arrego"). É assim que as drogas chegam aos usuários de drogas em cidades como Estocolmo, Londres, ou mesmo Tóquio. Há quem se iluda achando que corrupção só existe no Brasil, mas a existência do tráfico em todo o mundo, inclusive nos países mais ricos e tranquilos [3], prova, pelo contrário, que a corrupção é a regra universal.Na maioria do mundo, como apenas são ameaçados de prisão, e não de morte, os traficantes não veem necessidade de se armarem e nem de entrar numa corrida armamentista com a polícia. Para não serem presos, basta pagarem polpudas propinas. A corrupção, que nada mais é do que fazer algo por medo da ameaça de punição e por esperança da promessa de recompensa, é justamente o fundamento de todas as sociedades de classes em todos os tempos e espaços, mas especialmente da capitalista, que se estrutura por inteiro no toma-lá-dá-cá sem maquiagens - a empresa, a mercadoria, o capital.
O tráfico no Rio também era como o resto do mundo. Porém, em meados dos anos 1970, militares de alta patente suspeitaram que seus filhos estavam entrando na moda "hippie" e experimentando drogas. Implicâncias domésticas ridículas com filhos mimados na hora da janta normalmente são coisas insignificantes e dificilmente alteram a história, mas visto que vivíamos sob ditadura militar, os pais militares ditadores, com pompa e lógica militar, ordenaram à polícia também militar (a melindrosa PM): "Exterminem os traficantes para nossos filhos não virarem bunda-moles!!!". [4]
Com os traficantes agora sendo ameaçados de morte e não mais de prisão, a propina extorquida deles se multiplicou. Acharam a galinha dos ovos de ouro. Para mostrarem aos traficantes que a ameaça de morte não era nenhuma bravata, operações policiais com muitas execuções ficaram cada vez mais frequentes e rotineiras nas favelas (onde matavam ao acaso qualquer morador, pois a PM só quer demonstrar aos traficantes seu poder de matar, e na opinião deles e de seus mandantes ditadores, favelado não é gente e pode ser morto à vontade), rendendo à polícia "arregos" cada vez maiores.
No entanto, na mesma época, os militares e policiais especializados no tráfico de armamentos (na maior parte armas da própria polícia ou das forças armadas "com numeração raspada", outra parte delas era contrabandeada do exterior) perceberam o novo nicho de mercado e certamente festejaram: "Os traficantes não tem outra escolha senão se armarem tanto ou mais que a polícia, pois a única forma de reduzirem o arrego que pagam à polícia é contrapor ameaça de morte com ameaça de morte".
Então, a cada operação policial, traficantes e policiais foram se armando cada vez mais poderosamente para matarem cada vez mais: os traficantes, para diminuírem o "arrego", e os policiais, para aumentá-lo. Isso durante 40 anos, todos os dias, tiroteios sem fim, na briga por repartir os ovos de ouro. Obviamente, todos sempre tendo a extrema delicadeza de não matar a galinha dos ovos de ouro no meio da refrega. [5]
Na década de 1980, com a explosão do consumo de cocaína, droga muito mais lucrativa que a maconha, essa dinâmica já estabelecida na época da ditadura se consolidou e se ampliou de maneira ainda mais explosiva.
Assim, nos surpreendemos que haja quem se surpreenda que, ao longo de 40 anos, as milhares de operações policiais em favelas, somando milhares de mortos, jamais tenham "resolvido" nem por sequer um instante o "problema da criminalidade", mas pelo contrário, só o tenham aumentado, multiplicando a quantidade de facções, máfias, milícias (em que a própria polícia e militares prescindem dos intermediários traficantes), a violência e a sensação de medo na cidade.
Essa situação de violência e medo (cuja sensação é multiplicada ensurdecedoramente pelos noticiários) certamente aterroriza não só a população dos subúrbios e das favelas, mas também a classe proprietária oficial, as facções capitalistas e burocratas legais, os poderosos, que no mínimo precisam atravessar a cidade do aeroporto para à zona sul e vice-versa, passando pelo subúrbio e cruzando favelas. Além disso, essa situação provavelmente reduz os negócios e lucros da classe proprietária como um todo na cidade. Isso parece um mistério que nenhuma razão humana pode explicar, mas só uma não-humana. Apenas algum "cálculo econômico racional", como se diz, poderia explicar que a classe dominante tenha deixado intacto, desde 40 anos atrás até hoje e provavelmente no futuro, esse círculo vicioso de "tiroteio-arrego-tiroteio-arrego" que ela própria morre de medo.
O frio cálculo econômico feito pela classe proprietária é simples mas rigoroso, ouçamo-la:
"O Rio de Janeiro é uma Comuna de Paris em potencial mais do que qualquer outra cidade, por sua geografia em que uma grande parcela do proletariado mora em verdadeiras fortalezas verticais esculpidas pela natureza, pela proximidade entre essas imponentes fortificações geográticas e o aparato econômico e repressivo que mantém a dominação de nossa classe. Situação que também expõe literalmente à céu aberto, emoldurando o horizonte, lado à lado como que em um desenho que tivéssemos feito para explicar a quem ainda não entendeu, a privação de propriedade fruto da propriedade privada dos meios de vida e produção, a propriedade privada que se acumula graças à privação de propriedade posta para trabalhar para construir um mundo cada vez mais alienado, privado, a miséria que nasce da abundância. Então, calculamos que é melhor que, nessas fortalezas orográficas, haja capitais ilegais empregando proletários para se sacrificarem mortalmente por seus chefes em troca de um salário, capitais que são como cavalos de tróia de nossa classe introduzidos nessas fortalezas. A causa da violência será instantaneamente imaginada pelo resto do proletariado dos subúrbios como se fosse uma causa endógena às favelas, como se resultassem da simples existência de seus irmãos favelados, que já nasceriam com "maldade na alma". Os favelados se tornam os bodes expiatórios ideais, o objeto de ódio como tal. Sob constante látego emotivo de um medo aterrorizante, sempre parecerá perda de tempo e energia entender e combater a verdadeira causa do problema, a privação de propriedade, i.e., a propriedade privada, o capital, o Estado. Então, somando enfim todos os itens prós e contras para calcular o custo-benefício total da violência, é evidente que manter um grau suficiente de barbárie que provoque um medo tal que justifique a constante aceitação pela maior parte da sociedade de todo o aparato de dominação como representando o baluarte da paz e da civilização, é o preço que temos que pagar para que a sociedade de classes não seja nunca posta a perder na cidade que, por qualquer instante de negligência nossa pode irromper como a Comuna de Paris dos Trópicos."
Sem dúvida, em termos de razão humana, ou seja, em termos dos interesses universais dos seres humanos de carne e osso, esse raciocínio não faz o menor sentido e parece uma loucura digna de teorias da conspiração. Mas não é necessária nenhuma conspiração. A lógica desumana do capital não precisa de conspiradores, porque opera pelas regras impessoais, mudas e desumanas do mercado que obriga os capitalistas e burocratas de todos os Estados a sempre servirem à acumulação do capital mesmo contra a sua vontade ou opinião pessoais se não quiserem ver-se substituídos por outros capitalistas e burocratas mais eficientes que os derrubem jogando-os no inferno de se tornarem proletários. O cálculo frio do custo-benefício que guia a decisão de todos os capitalistas e Estados do mundo não decorre da opinião, consciência, vontade, nem muito menos da "bondade" ou "maldade" pessoal desta ou daquela pessoa da classe dominante, mas é exatamente o contrário: sua opinião, consciência, vontade ou perversidade pessoais é que decorre das forças mudas da mão invisível do mercado, da propriedade privada, da acumulação do capital que, se não seguirem, os joga no proletariado.
humanaesfera, março de 2018
[1] Veja, por exemplo, http://www.emcdda.europa.eu/activities/wastewater-analysis
[2] Na realidade, o Rio de Janeiro é uma das capitais menos violentas do Brasil, segundo o 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A sensação de violência no Rio decorre principalmente pela peculiaridade ensurdecedora de haver constantes tiroteios entre traficantes, polícia e máfias chamadas de "milícia", e também pelo fato de o que acontece no Rio ser reportado para todo o Brasil, ao contrário de outras capitais.
[4] E mais ainda nos países em que a retórica intransigente de repressão violenta às drogas predomina como na Indonésia e Filipinas.
[4] Em contraste com o Rio de Janeiro, onde a espiral de violência ligada ao tráfico foi disparada por essa inacreditável tragicomédia doméstico-ditatorial, pornochanchada ubuesca de muito mau gosto, na Colômbia e no México, o disparador do tráfico de drogas violento foi mais "sublime": a política de guerra às drogas dos Estados Unidos.
[5] Além do incrível documentário Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles e Kátia Lund, há alguns livros que abordam muitas dessas coisas que tratamos no texto:
- Fobópole - o medo generalizado e a militarização da questão Urbana. Marcelo Lopes de Souza.
- A república dos meninos - juventude, tráfico e virtude. Diogo Lyra.
- Rio de Janeiro - histórias de vida e morte. Luiz Eduardo Soares.
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