[english version]
Não existe nada mais inútil e equivocado do que o ativismo, a militância, a ânsia de “prática”. Existir é agir. Os proletários não são bestas que fazem coisas cegamente ou por instinto. Não há ações sem objetivos, finalidades, desejos... isto é, existir (ou seja, agir) pressupõe e implica teorias, que os proletários criam e aprimoram (ou degradam e dogmatizam) conforme sua capacidade de agir é objetivamente aumentada (ou diminuída). Expliquemos:
Não existe nada mais inútil e equivocado do que o ativismo, a militância, a ânsia de “prática”. Existir é agir. Os proletários não são bestas que fazem coisas cegamente ou por instinto. Não há ações sem objetivos, finalidades, desejos... isto é, existir (ou seja, agir) pressupõe e implica teorias, que os proletários criam e aprimoram (ou degradam e dogmatizam) conforme sua capacidade de agir é objetivamente aumentada (ou diminuída). Expliquemos:
A capacidade de
agir dos proletários é aumentada quando confiam em si mesmos
(internacionalisticamente), não acreditam em "bodes expiatórios", e
impõem a satisfação de suas necessidades (que são comunistas: não trabalhar e
que tudo seja livre, "free"), opondo-se radicalmente, por este
simples ato, à classe dominante (para a qual, obviamente, isto é
"opressivo"); quando ataca, portanto,
o poder pela dissolução do que o sustenta (a oposição mútua entre proletários
em empresas, pátrias, raça, gênero etc, se engalfinhando por seus próprios senhores)
mediante um universalismo material (comunismo) que garante o livre acesso a
qualquer um aos meios de produção e de vida, a expressão livre e autônoma das
capacidades e necessidades humanas, a livre individualidade que se liberta
enfim da comparação massificadora, reificante, identitária, da concorrência,
propriedade privada, hierarquia, mercado e Estado.
Por outro lado, a
capacidade de agir é diminuída quando os proletários desconfiam de si mesmos (a
ponto de massacrarem a si próprios a um simples pedido dos chefes e poderosos), clamam ao
poder contra "bodes expiatórios" (estrangeiros, "judeus",
imigrantes, "vagabundos", “favelados”, “políticos maus”, “empresários
maus”), e reprimem seus desejos em nome da ficção de um "bem maior"
(pátria, empresa, etnia, ideologia, religião...), isto é, quando se unem às
“suas” classes dominantes (burocrática ou particular, de esquerda ou de
direita) contra si mesmos. Quanto menos capazes de ação, mais se entregam à
reação.
No primeiro caso
(aumento da capacidade de agir), a teoria necessariamente se desenvolve e se
aprimora, enquanto que no segundo caso (redução da capacidade de agir), a
teoria só pode se degradar e se dogmatizar.
Critério do conhecimento e práxis
Os critérios para
distinguir mentiras ou boatos de verdades, o especulativo do provável, o que é
verdadeiro em certos contextos e falso em outros, o que é baseado em mera fé do
que é baseado em evidências etc., esses critérios são expressões intrínsecas do
grau de autonomia ou heteronomia do proletariado, de sua autodeterminação ou sua
sujeição às classes dominantes. Quanto
a isso, há três tipos de crítica da sociedade
capitalista:
A) Existe uma
crítica da sociedade capitalista cuja verdade pode ser verificada materialmente
por qualquer um em seu cotidiano, no mundo inteiro, por qualquer proletário: a
crítica do capital enquanto coerção que nos força a nos vender como objetos
úteis no mercado de trabalho, que nos coage, se quisermos sobreviver, a alienar
nossas capacidades em troca do dinheiro, a exercer nossas potencialidades contra
nós mesmos , transformando o mundo em uma força hostil que se acumula nos privando (propriedade
privada) das próprias condições materiais de existir, um poder hostil que nos domina,
usa e descarta: o capital e o aparato repressivo que os garante (Estado). Essa
é uma crítica da essência do capital, ela é radical, e dela
decorre invariavelmente a necessidade irrevogável de abolir o trabalho, a
propriedade privada, a empresa, as fronteiras e o Estado, ou seja, realizar o
comunismo [1]. Detalhe: não requer nenhuma fé em "fontes especiais de
informação".
B) Existem outras
críticas que requerem alguma "fé", como são as críticas parciais do
capitalismo (que são basicamente críticas socialdemocratas do capitalismo:
distribuição de renda desigual, obsolescência programada, piora das condições
de vida, do meio ambiente, capitalistas e burocratas burlando as leis, governos
tramando a derrubada de outros...) que nada mais são do que críticas de
acidentes do capital, e não de sua essência. Enquanto no caso A, os proletários
são plenamente autônomos quanto ao poder de verificar a verdade do seu
conhecimento (que exprime a matéria de sua própria vida cotidiana) e de agir
conforme o que sabem, no caso B, é preciso confiar em especialistas. Ainda
assim, a verossimilhança dessa crítica pode ser pesada na vida cotidiana (por
exemplo, verificando pioras de fato nas condições de vida, ou não verificando a
obsolescência programada). Mas quanto menos radical e mais parcial a crítica,
por ser mais "inacessível", mais requer que a prática dos proletários
se submeta a "esferas superiores", e menos exprime uma prática
autônoma capaz de se opor ao capital para impor a satisfação das necessidades
humanas.
C) E existem
críticas do capitalismo que só requerem fé, uma fé baseada totalmente em
"fontes especiais de informação", fé aceita com base numa vaga
"intuição psicológica" ou no apelo aos sentimentos. Por exemplo,
críticas especulativas (as que, por exemplo, profetizam o "colapso
inevitável do capitalismo", como a nova "crítica crítica" - Kurz, Postone, Jappe... -, as especulações do aceleracionismo, transhumanismo, etc), o conspiracionismo ("forças ocultas"
que estariam tramando o sofrimento e aniquilação dos pobres, do povo ou da
natureza) e as críticas identitaristas (as que afirmam uma identidade – de
gênero, de raça, de etnia, de nacionalidade, de cultura – contra outras que
“representariam o capitalismo”). Em termos práticos, essas críticas requerem a
completa submissão, a completa aniquilação da capacidade de pensar e de agir do
proletariado, e a assunção como verdade de qualquer boato, qualquer mentira que
confirme os preconceitos “intuitivos” (por exemplo, as mentiras paranoicas
sobre transgênicos, produtos químicos, vacinas, medicina, ciência, produtos
naturais, tecnologia que muitos ecologistas propagam). O exemplo máximo é a
própria religião, em que a fé na revelação de uma verdade absoluta oculta requer
a total obediência àqueles que dizem ter acesso especial a ela (daí vem a
própria palavra “hierarquia”, de hieros,
sagrado ou segredo, e arché, fonte,
princípio ou ordem).
Composição de classe VERSUS estratégia
Há quem argumente
que o caso A, de plena autonomia, é insuficiente, porque é abstrato e
filosófico, e que precisamos do caso B, porque é necessário que haja estratégia
(por exemplo, “transição”), que seria algo até muito mais fundamental.
Mas falar em
estratégia só faz sentido contra uma estratégia do lado oposto, isto é, quando
há uma contra-estratégia pressuposta. Não se trata, então, de luta de classes,
mas de uma guerra de frentes, que pressupõe um mesmo tabuleiro, uma mesma linguagem,
uma mesma lógica compartilhada, na qual se apoiam os dois lados para que seja
possível se enfrentarem. Para guerrearem entre si, precisam estar num mesmo
plano, apoiar-se numa mesma estrutura, estarem numa mesma altura, falarem de
igual para igual. Daí todas as contrarrevoluções em todas as revoluções
"vitoriosas" que já existiram, em que as mesmas estruturas
(dominação, sociedade de classes, Estado etc) do inimigo são reproduzidas em
nome de atacá-lo.
A grande virtude
dos proletários é que eles, enquanto classe autônoma, não podem atacar a
estrutura no plano da própria estrutura, mas como produto, como produção
molecular resultante de sua própria atividade cotidiana simultânea no mundo
inteiro. Caso ataquem a estrutura no mesmo plano da estrutura, aceitando se
submeter a uma estratégia, eles são condenados a reproduzir sua própria
sujeição sob a mesma ou alguma nova classe dominante, pois seu campo de
atuação, a atividade cotidiana simultânea universal, é condenado a permanecer inalterado
(trabalho, auto-sacrifício, sujeição...) para efetivar a própria estratégia,
reproduzindo automaticamente, apenas com novos nomes, as mesmas estruturas que
resultam necessariamente da atividade cotidiana alienada.
Em contraste com a
ideologia da estratégia, os proletários não podem contar senão com a sua
própria capacidade autônoma de agir e pensar, impulsionada pela rápida difusão
de sua luta em escala mundial. Nesse mesmo ato, eles comunicam mundialmente uns
com os outros o conhecimento do modo como suas atividades cotidianas
simultâneas se interligam (por exemplo, conforme o local em que estão, as
supply chains, as relações entre indústria, agricultura e as vias materiais de
livre expressão das necessidades, desejos, pensamentos e capacidades dos
habitantes e viajantes do mundo, etc ) [2],
conhecimento que é simultâneo à supressão em ato das condições de existência
materiais (moleculares) da propriedade privada, do capital e do Estado e à
criação de uma nova sociedade em que os
meios de vida e de produção, indissoluvelmente interconectados em escala
mundial em uma rede de fluxos imanentes, se tornam livremente (gratuitamente)
acessíveis à qualquer um que queira satisfazer suas necessidades, desejos,
pensamentos, projetos, paixões, e desenvolver livremente suas habilidades,
capacidades e potencialidades.
Um evento assim,
que desabilita pela base o poder da classe dominante (empresários, burocratas e o Estados), tem desde o princípio
uma linguagem incompreensível e “inconversável” com a classe dominante e o
Estado, sendo de fato uma ditadura contra eles - a verdadeira ditadura do
proletariado. A classe dominante sequer tem tempo para começar a entender o que
está sofrendo para elaborar uma estratégia antes de o proletariado ter se
auto-abolido e, portanto, abolido a classe dominante, a sociedade de classes.
Muito diferente disso, o ativismo ou militância se caracteriza por se exibir
espetacularmente à classe dominante como “oposição”. Obviamente, as armas da
classe dominante, o Estado, os grupos de extermínio etc são infinitamente mais
poderosos e aprimorados do que qualquer “movimento estratégico de oposição” [3],
que, consequentemente, não passa de espetáculo, só útil para a classe dominante
ensaiar seus cães de guarda e métodos de controle, que, encenando, legitima o
próprio status quo como "democrático". E quando não é encenação, um “movimento estratégico de oposição” é apenas a reprodução da
estrutura à qual procura se opor, como vimos nos parágrafos anteriores.
É óbvio que,
quanto mais reduzida a capacidade de agir do proletariado, menos ele consegue se
dar ao luxo de pensar por si mesmo, e mais só lhe resta ser objeto de
estratégias, de burocratas, empresários e políticos que dizem pensar e agir
pelo seu “bem”, prometendo, por exemplo, reformas, melhorias etc. Assim, dizem
que devemos ser realistas, que o proletariado deve fazer o possível, votando,
participando em campanhas, militando, “se esforçando mais”, "se sacrificando com mais empenho" etc, em suma,
participando de estratégias. Isso é um equívoco. Porque, se não há
luta autônoma, é pura sorte, além de extremamente improvável, que ocorra
qualquer das melhoras prometidas; e se há luta autônoma, não faz sentido
deixar-se reduzir a objeto de estratégias. O efeito colateral imediato da luta
autônoma é que todos os burocratas, empresários e políticos, para conter a
emergência do proletariado enquanto classe, passam enfim a servir as tais
“melhorias”, mas, é claro, no mesmo prato da repressão. A questão é a autonomia
do proletariado se difundir tão rapidamente em escala mundial que torne
impossível que caia mais uma vez nessa armadilha.
Adendo: O fetichismo dos "exemplos práticos"
As revoluções e contrarrevoluções que experimentamos nos últimos 300 anos mostraram que a ideologia mais destrutiva para a luta autônoma mundial é a dos "exemplos práticos". Tão logo se ouve falar sobre uma "revolução" qualquer em algum lugar do mundo, é abandonada toda capacidade crítica e consideração pela verdade, que passam a ser consideradas irrelevantes frente ao "exemplo prático real de como transformar o mundo na realidade". A realidade do exemplo é considerada tão complexa que toda crítica e busca da verdade é descartada como masturbação mental reducionista e utopismo. Abandonada a capacidade de pensar, é aberta a via para o tarefismo supersticioso, destruindo a luta autônoma, seja pela luta imaginária que imita a aparência espetacular do exemplo, seja pela aceitação de se subordinar aos burocratas considerados representantes do exemplo (como quando o leninismo se espalhou no mundo e destruiu a luta autônoma por toda parte graças à "realidade inquestionável de seu exemplo", 1917 na Rússia).
Como antídoto, há um critério mínimo certeiro para avaliar todo e qualquer suposto exemplo (como o Curdistão, zapatistas, revolução russa, espanhola etc): se uma suposta revolução não se espalha rapidamente além das fronteiras para o mundo inteiro (com os proletários se opondo a seus opressores em cada vez mais lugares do mundo e se constituindo como classe autônoma sem fronteiras, se recusando a matar nas guerras, voltando as armas contra os generais em todos os lados, comunizando etc), se a suposta revolução se perpetua apenas num lugar, isso já é suficiente para saber que ali está um Estado e o capital (independente do nome que se use, "autogestão", "socialismo", "comunismo", "anarquismo"...), ou seja, uma sociedade de classes. Pelo simples fato de que, isolados, eles são condenados a se adequar à troca no mercado mundial, acumulando capital e explorando o proletariado para não falir na concorrência internacional, e também porque são condenados a se constituir como Estado para se aliar, se defender ou atacar outros Estados.
Adendo: O fetichismo dos "exemplos práticos"
As revoluções e contrarrevoluções que experimentamos nos últimos 300 anos mostraram que a ideologia mais destrutiva para a luta autônoma mundial é a dos "exemplos práticos". Tão logo se ouve falar sobre uma "revolução" qualquer em algum lugar do mundo, é abandonada toda capacidade crítica e consideração pela verdade, que passam a ser consideradas irrelevantes frente ao "exemplo prático real de como transformar o mundo na realidade". A realidade do exemplo é considerada tão complexa que toda crítica e busca da verdade é descartada como masturbação mental reducionista e utopismo. Abandonada a capacidade de pensar, é aberta a via para o tarefismo supersticioso, destruindo a luta autônoma, seja pela luta imaginária que imita a aparência espetacular do exemplo, seja pela aceitação de se subordinar aos burocratas considerados representantes do exemplo (como quando o leninismo se espalhou no mundo e destruiu a luta autônoma por toda parte graças à "realidade inquestionável de seu exemplo", 1917 na Rússia).
Como antídoto, há um critério mínimo certeiro para avaliar todo e qualquer suposto exemplo (como o Curdistão, zapatistas, revolução russa, espanhola etc): se uma suposta revolução não se espalha rapidamente além das fronteiras para o mundo inteiro (com os proletários se opondo a seus opressores em cada vez mais lugares do mundo e se constituindo como classe autônoma sem fronteiras, se recusando a matar nas guerras, voltando as armas contra os generais em todos os lados, comunizando etc), se a suposta revolução se perpetua apenas num lugar, isso já é suficiente para saber que ali está um Estado e o capital (independente do nome que se use, "autogestão", "socialismo", "comunismo", "anarquismo"...), ou seja, uma sociedade de classes. Pelo simples fato de que, isolados, eles são condenados a se adequar à troca no mercado mundial, acumulando capital e explorando o proletariado para não falir na concorrência internacional, e também porque são condenados a se constituir como Estado para se aliar, se defender ou atacar outros Estados.
humanaesfera,
julho de 2016
Notas:
[1] “Não se trata
do que este ou aquele proletário, ou até mesmo do que o proletariado inteiro
pode imaginar de quando em vez como sua meta. Trata-se do que o proletariado é
e do que ele será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ser. Sua
meta e sua ação histórica se acham clara e irrevogavelmente predeterminadas por
sua própria situação de vida e por toda a organização da sociedade burguesa.”
(Marx e Engels, A Sagrada Família – Crítica da Crítica Crítica).
[2] Trata-se da
composição de classe. Para mais detalhes, veja: Textos sobre composição de classe.
[3] Em contraste
com encenação da “oposição estratégica”, o único modo de suprimir
a força repressiva do status quo é
por uma emergência tão rápida e generalizada do proletariado autônomo (portanto, do comunismo) que os poderosos
não encontrarão sequer por onde começar a reprimir, de modo que os seus cães de
guarda repressores deixarão de ver qualquer sentido em continuar obedecendo,
deixando de ser cães de guarda, voltando as armas contra os generais e distribuindo
as armas para a população, pela simples razão de passarem a ser irrefreável e irreprimivelmente
atraídos, como o restante dos explorados, pela emergência apaixonante do comunismo luxuriante generalizado, a
comunidade humana mundial.
Bibliografia:
A reprodução da vida cotidiana (Fredy Perlman,, 1969)
Capitalismo e comunismo (Jean Barrot/Gilles Dauvé, 1972)
O «renegado» Kautsky e seu discípulo Lênin (Jean Barrot, 1969)
Leninismo e Ultra-esquerda (Jean barrot & François Martin, 1972)
Notas sobre Composição de Classe (Kolinko, 2001)
A Impotência do Grupo Revolucionário (Sam Moss, 193?)
Sobre Organização: As Gangues (dentro e fora do Estado) e o Estado como Gangue (Jacques Camatte & Gianni Collu, 1969)
Origem e função da forma partido (Programma Comunista, 1961)
A revolução não é tarefa de partido (Otto Ruhle, 1920)
Outros textos sobre o mesmo tema: