domingo, 24 de abril de 2016

Sobre a troca (1858) - Joseph Déjacque

Traduzimos Sobre a troca, um clássico comunista libertário, escrito por Joseph Déjacque, o criador da própria palavra "libertário" (palavra que sempre foi sinônimo de comunista anarquista até que a classe proprietária - milionários e burocratas particulares e estatais -, começou a tentar roubá-la para nos impor a crendice absurda de que "liberdade" é a tirania totalitária chamada empresa e mercado)

Alguns trechos:

"[...] Na comunidade anárquica, [...] cada um é livre para produzir e consumir à vontade e segundo suas fantasias sem controlar nem ser controlado por ninguém, e o equilíbrio entre a produção e o consumo se estabelece naturalmente, não mais pela detenção preventiva e arbitrária por uns ou por outros, mas pela livre circulação das capacidades e das necessidades de cada um. Os fluxos humanos não necessitam de diques; deixemos as marés passarem livres: a cada dia, elas reencontram o seu nível!"


"Primeiramente, em princípio, o trabalhador tem direito ao produto de seu trabalho?[...]


Por exemplo, suponha que há um alfaiate, ou um sapateiro. Ele produz muitas roupas e muitos pares de sapato. Ele não pode consumi-los todos de uma vez. Talvez, além disso, não sejam do seu tamanho e nem conformes a seu gosto. Evidentemente, ele só os fez porque é sua profissão fazê-los, e em vistas de trocar por outros produtos de que ele sente a necessidade; e assim é com todos os trabalhadores. As roupas e sapatos que ele produz não são posses dele, porque para ele não tem nenhum uso pessoal;mas são uma propriedade, um valor que ele monopoliza e que ele dispõe conforme seus caprichos, que ele pode à rigor destruir se lhe apraz, que ele pode no mínimo usar e abusar se assim quiser; seja como for, é uma arma para atacar a propriedade dos outros, nessa luta de interesses divididos e antagônicos, onde cada um é entregue a todas as sortes e azares da guerra. 

Além disso, esse trabalhador, em termos de direito e justiça, é bem justificado para se declarar o único produtor do trabalho feito por suas mãos?  Ele criou algo do nada? Ele é onipotente? Ele possui o conhecimento manual e intelectual de toda a eternidade? Sua arte e profissão lhe é inata? Operário, ele saiu totalmente equipado do ventre de sua mãe? É unicamente filho de suas obras? Ele não é em parte obra de seus predecessores e obra de seus contemporâneos? Todos aqueles que lhe mostraram como manusear a agulha e a tesoura, a faca e o furador, que o iniciaram de aprendizagem em aprendizagem até o grau de habilidade que alcançou, todos eles não tem algum direito à uma parte de seu produto? As sucessivas inovações das gerações anteriores também não tiveram parte nessa produção que ele fez? Ele não deve nada à geração atual? Ele não deve nada à geração futura? É justo que ele acumule então em suas mãos os títulos de todos esses trabalhos acumulados e se aproprie exclusivamente dos benefícios?"

"Se se admite o princípio da propriedade do produto pelo trabalhador [...], conforme um certo produto seja mais ou menos procurado, um certo produtor será mais ou menos lesado, mais ou menos beneficiado. A propriedade de um não pode aumentar senão em detrimento da propriedade de outro - a propriedade necessita de exploradores e explorados. Com a propriedade do produto do trabalho, a propriedade democratizada, isso não será mais a exploração da maioria pela minoria, como é com a propriedade do trabalho pelo capital, a propriedade monarquizada; mas ainda assim será exploração da minoria pela maioria. Será sempre a iniquidade, a divisão dos interesses, a concorrência inimiga, com desastres para uns e sucessos para outros. [...]"

"[...] No dia em que se compreender que o organismo social deve ser transformado não sobrecarregando com complicações, mas o simplificando; no dia em que não se buscar mais demolir uma coisa para a substituir por outra similar, renomeando e multiplicando, nesse dia ter-se-á destruído da base ao topo o velho mecanismo autoritário e proprietário, e ter-se-á reconhecido a insuficiência e a nocividade tanto do contrato individual quanto do contrato social. Então o governo natural e a troca natural – o governo natural, isto é, o governo do indivíduo pelo indivíduo, de si mesmo por si mesmo, o individualismo universal, o si-humano [moi-humain] se movendo livremente no todo-humanidade [tout-humanité]; e a troca natural, quer dizer, o indivíduo trocando de si mesmo consigo mesmo, sendo ao mesmo tempo produtor e consumidor, co-operário e co-herdeiro do capital social, a liberdade humana, a liberdade infinitamente divisível na comunidade dos bens, na indivisível propriedade – então, vos digo, o governo natural, a troca natural, organismo movido pela atração e pela solidariedade, se elevarão majestosos e benéficos no coração da humanidade regenerada. Então, o governo autoritário e proprietário, a troca autoritária e proprietária, maquinação sobrecarregada de intermediários e de signos representativos cairá solitária e abandonada no leito seco da antiga arbitrariedade."

Link para o texto completo:  
Sobre a troca (1858) - Joseph Déjacque 




Outros clássicos que traduzimos:


terça-feira, 19 de abril de 2016

O crepúsculo das personificações (1972) - Fredy Perlman


O Flautista de Hamelin traduziu e nós fizemos a revisão para publicação  desse grande texto de Fredy Perlman: 

O crepúsculo das personificações


Alguns trechos:
"Os produtores criam uma tecnologia industrial que elimina a necessidade material do trabalho forçado enquanto reproduzem as condições sociais do trabalho forçado. As forças produtivas que eliminam as condições materiais de escassez tornam-se instrumentos sociais para a manutenção de escassez. A pobreza deixa de ser uma função da natureza e torna-se uma função das relações sociais."

"O paradoxo consiste no fato de que, tão logo os indivíduos abdicam de seus poderes autônomos [self-powers] para personificações destes poderes, os indivíduos se tornam vítimas das personificações; eles se tornam instrumentos, ou meios, pelos quais os poderes da personificação são executados. Assim é possível para os mesmos indivíduos envenenar o ar durante o dia e respirar o ar envenenado ao descansar a noite, uma vez que não são estes indivíduos que envenenam o ar - é a General Motors. Assim é possível para os mesmos indivíduos produzir armas em tempos de paz e massacrar uns aos outros com as armas em tempos de guerra, uma vez que não são esses indivíduos que produzem as armas ou combatem nas guerras; as armas são produzidas pela General Dynamics e a guerra é combatida pelo General Eisenhower, o Marechal de Campo Rommel e o Marechal Stalin."

"Uma vez que as forças produtivas da sociedade são alienadas dos produtores, apropriadas por outra classe, e representadas por “pessoas” que ocupam as funções [offices] para as quais o poder é delegado, parece aos produtores que são, não os produtores, mas as personificações que produzem. Isso é uma aparência, uma alucinação, mas é difícil para alguém ver além das alucinações de sua própria época quando se nasce nela. Em uma época anterior, quando foi dito que a França conquistou a Borgonha em um campo, o evento real foi o encontro militar entre dois exércitos recrutados entre as populações da França e da Borgonha, mas essa afirmação descrevia o encontro entre dois indivíduos, a personificação da França e a personificação da Borgonha. Em outras palavras, parece que as capacidades, os poderes, não estão nos indivíduos que o possuem, mas nas personificações.

Essa alucinação não poderia surgir se o poder atribuído à personificação se apoiasse na força bruta ou coerção. Se o poder da personificação consistisse na força bruta, no caso da conquista pela França da Borgonha, a história desse período antigo seria estupenda, pois de forma a conquistar o Duque, o Rei deveria primeiro ter conquistado a França – um único indivíduo contra uma multidão de camponeses. Se este fosse o caso, a conquista dos camponeses pelo Rei seria tão mais espetacular que a conquista do Duque que este último evento não seria sequer registrado na história.

Mas nesse caso o Rei deveria ter sido descrito em termos de seus próprios poderes autônomos [self-powers], não importa quão grande estes fossem, e não como uma personificação, como um Rei, como França.

O poder da personificação reside precisamente nessa alucinação, e não no indivíduo que ocupa a função [office]. Certas palavras pronunciadas por um indivíduo específico não são uma declaração política ou declaração de guerra a menos que o indivíduo seja visto como a autoridade que tenha o direito de ditar uma política ou declarar guerra; as palavras do indivíduo não podem ter conseqüências a menos que outros seres humanos se submetam a essa autoridade e considerem seu dever obedecer. A personificação é apta a deter o poder delegado a uma função específica apenas quando a legitimidade da função é aceita. A legitimidade não é uma propriedade possuída pela função ou por um ocupante específico da função. A legitimidade é uma propriedade conferida à função e à sua pessoa por todos os outros indivíduos."

"[...] A violência acompanha o poder exercido por uma personificação, mas não torna essa personificação legítima. A função e sua pessoa tornam-se legítimas apenas quando a autoridade da função e de seus ocupantes são internalizadas por todos os outros indivíduos. Ao aceitar a legitimidade de uma função para exercer um poder social específico, os indivíduos abdicam de seu próprio poder sobre essa parte da vida social. [...] A abdicação não é um evento histórico que ocorreu num tempo específico do passado; ela é um evento cotidiano que toma forma toda vez que as pessoas se submetem à autoridade.

Ao transformar o poder produtivo da sociedade em uma mercadoria alienável, em atividade vendida por um salário, o capitalismo estendeu a personificação do poder alienado a todos os campos da vida social. Tão logo um indivíduo consente em vender energia produtiva por uma dada soma de dinheiro, essa soma de dinheiro se torna “equivalente” à energia produtiva, o dinheiro possui a potência da energia produtiva. O dinheiro se torna o representante do poder produtivo, dos instrumentos de produção e dos produtos. Assim que todos os indivíduos consentem em vender sua própria energia produtiva, o dinheiro se torna o representante universal do poder produtivo da sociedade. É nesse ponto que as forças produtivas da sociedade se tornam Capital, que é apenas outro nome para o poder das forças produtivas representadas por uma soma de dinheiro. Tão logo essas forças produtivas assumem a forma de Capital, os possuidores de grandes somas de dinheiro são Capitalistas, personificações do poder produtivo representado por sua soma de dinheiro, personificações das forças produtivas da sociedade. É a venda do poder produtivo que torna o dinheiro o agente histórico universal. Nesse ponto, cidades são criadas e destruídas, ambientes são transformados, a história é feita, pelo gasto de somas de dinheiro. Nesse ponto, os indivíduos, ou mesmo comunidades, abdicaram de seu poder de construir ambientes que os satisfaçam. Apenas os investidores, personificações de toda construção social, cujo poder reside na potência criativa de seu dinheiro, são capazes a construir ambientes."

"Cada ato que ocorre na esfera de influência de uma personificação está fora de alcance para um indivíduo. Os indivíduos não apenas veem a ação de seus próprios poderes sobre o ambiente como ilegítima, moralmente errada; eles se sentem inaptos para exercer tais poderes: as personificações são capazes de fazer tudo; o indivíduo é incapaz de fazer qualquer coisa."

"Entretanto, a criação da impotência universal não é a única conquista histórica do capitalismo. O outro lado da figura é uma democracia verdadeiramente representativa na qual cada indivíduo é apto para participar em ao menos um fragmento do poder personificado da sociedade. Essa democracia é tornada possível por duas características dos representantes universais das forças produtivas da sociedade: ela é líquida, e assim pode correr de mão em mão independentemente da posição ou função social, e ela é infinitamente divisível, permitindo a todos tê-la. Assim enquanto todos são privados de poderes autônomos [self-powers] sobre o ambiente social, ninguém é excluído de uma partilha dos poderes personificados."

"Por exemplo, um “bom eletricista” é aquele que faz nem mais nem menos do que é prescrito à função, ou técnica, dos “eletricistas”. O propósito de um “bom eletricista” não é sob qualquer circunstância o resultado singular de um encontro particular de um indivíduo específico com certos instrumentos. O “serviço” é o resultado padrão esperado dessa função. Qualquer outro “bom eletricista” deverá efetuar exatamente o mesmo resultado. Em outras palavras, os poderes residem na função, e o indivíduo é meramente um instrumento mais ou menos eficiente da função. Consequentemente, a medida que o ser humano se torna uno com uma função, identifica seus próprios poderes com os poderes da função, ao ponto de os seres humanos se tornarem uma personificação de certos poderes sociais e negarem a si mesmos ou si mesmas como seres humanos. Um indivíduo que se torna o que “nós os eletricistas”, “nós os doutores” ou “nós os professores” são, se torna uma coisa que responde de um modo padrão específico, que executa sua rotina especial esperada, sempre que ela é ativada pelo dinheiro. Essa internalização dos poderes personificados é o cimento que mantém coesas as relações sociais."



Link para o texto completo:
O crepúsculo das personificações

sexta-feira, 18 de março de 2016

Concisíssimo resumo da ópera


Resumo da ópera em que estamos: 

"[...] o fascismo foi a conseqüência de dois fracassos: o primeiro, dos revolucionários, que foram massacrados pelos sociais democratas e seus aliados liberais; o segundo, dos liberais e social-democratas incapazes de gerenciar efetivamente o capital."  (Jean Barrot/Gilles Dauvé - Fascismo & Antifascismo).

O nazifascismo foi justamente um movimento da "classe média", a união do "povo" em torno da nação, raça, etnia, cultura "ancestral" contra bodes expiatórios imaginários, situação surgida após o massacre da luta de classes (que é internacionalista) pela social-democracia (dirigida por um operário, Ebert, responsável inclusive pelo assassinato de Rosa Luxemburgo), que prometia à burguesia conciliar as classes, desarmando o proletariado, mas que, após executar isso, já não tinha nenhuma serventia para a classe dominante, principalmente quando a crise econômica piorava a cada ano. É importante lembrar que, imediatamente antes disso tudo, o fator determinante foi que a I Guerra mundial terminou devido aos soldados de todos os lados das trincheiras terem passado a se recusar a matar uns aos outros, voltando as armas contra seus próprios generais, e os operários passaram a se recusar a obedecer nas fábricas, buscando fazer conselhos de operários e soldados (sovietes) para transformar a sociedade, entre 1917-1924. Esse movimento mundial simultâneo consistiu em revoluções e rebeliões por toda parte, China, Brasil, França, Argentina, África do Sul, México, Itália etc etc e na própria Alemanha (revolução espartaquista), com a perspectiva de que a revolução mundial iria vencer. A revolução russa foi apenas uma revolução entre essas, mas como foi logo isolada (as outras no resto do mundo foram massacradas pela contra-revolução, seja social-democrata, liberal ou fascista como na Itália), resultou necessariamente em mero capitalismo estatizado, ou mais uma variedade de sociedade de classes.


A situação atual no Brasil desde os anos 2000 pode ser entendida como repetição preventiva dessa dinâmica contra-revolucionária. Preventiva porque a classe dominante aprendeu com os acontecimentos da primeira metade do século XX que deve fazer tudo que puder para que o proletariado nunca mais surja como classe autônoma mundial (pois isso coloca diretamente a superação da sociedade de classes), e para isso, financia e instaura governos social-democratas (no caso, o PT) que, preventivamente, buscam fazer uma conciliação de classes, "reunir a nação". Épocas de crescimento da economia são propícias para o objetivo conciliador de fazer os salários e benefícios subsidiados acompanharem o aumento da produtividade, mas em épocas de estagnação ou decrescimento não resta à burguesia senão a repressão salarial e social, em especial quando o proletariado já está (como hoje) profundamente esmagado e dominado pela social-democracia, que se torna desnecessária para garantir a continuidade "normal" dos negócios. Os proletários, ao serem esmagados como classe, se reduzem à átomos vendedores e compradores tão "livres e iguais" quanto os burgueses (daí, no capitalismo, só pode haver uma classe reconhecida: "classe média", infinitamente subdivisível numa escala que vai de classe média alta alta alta até baixa baixa baixa, em que até o mais miserável é "classe média" em relação à alguém ainda mais miserável), com a particularidade "privada" de que a única mercadoria que os proletários tem para vender é a si mesmos (sua força de trabalho) e os únicos compradores dessa mercadoria viva são os empresários, estatais ou particulares, que, outra particularidade "privada", os coloca para trabalhar para acumular trabalho morto, capital, para que os trabalhadores construam ativamente o próprio poder hostil que os priva de meios de vida e os força a se submeter sempre mais intensa e extensamente aos empresários e ao Estado.

humanaesfera, março de 2016



Bibliografia: 
Referência essencial para entender a história do Estado no capitalismo e o que ocorre hoje:  
Fascismo & Antifascismo (Jean Barrot/Gilles Dauvé):
Uma análise histórica de como o Estado é tornado ditadura ou democracia conforme as necessidades do capital a cada momento, da relação disso com a luta autônoma do proletariado, e da ilusão daqueles (inclusive anarquistas) que aderem ao Estado democrático (contra o fascismo) como se isso não fosse aderir à repressão e eliminação da luta autônoma do proletariado.

Curiosidade: parece que a história se repete mais uma vez como farsa até nos detalhes mais superficiais: fotos do ex-operário Friedrich Ebert





quinta-feira, 10 de março de 2016

Luta de classes e forma-valor


Sobre luta de classes (isto é, o antagonismo cotidiano internacionalista, não confundir com instituições "mediadoras", como sindicatos e partidos), não se trata de positivisticamente apoiar um "dado", um "fato", mas de afirmar a única posição honesta e necessária diante da situação com que nos deparamos, essa situação é: 


A) massacre mútuo dos proletários, que, esmagados como classe, se unem a suas classes dominantes étnicas, empresariais ou nacionais em nome de combater bodes expiatórios ("estrangeiros", "vagabundos", "favelados", "concorrentes", "imperialistas", "financistas judeo-comunistas que querem dominar o mundo"....), esmagando a si mesmos; (um anticapitalismo sem luta de classe desemboca necessariamente em algum anti-capitalismo identitário, etno-socialismo, nacional-socialismo, ou seja, fascismo - inclusive estalinista); (Isso é melhor explicado aqui)

B) a interdependência mundial decorrente do mercado mundial, fazendo a superação (contra retrocesso reacionário) deste ser possível apenas por uma ação mundial que liberta os fluxos produtivos da propriedade privada. Só isso permitiria à população mundial superar a mercadoria, a forma valor, e formar um novo modo de produção libertário. (Isso é melhor explicado aqui)

C) Mas a tese principal é que a única força que sustenta a forma-valor é a proletarização: a propriedade privada (isto é, o Estado e seu subterrâneo inseparável, o crime) coage a população a ter que vender algo para sobreviver, mas sem ter nenhuma mercadoria a oferecer, só lhe resta vender a si mesma, oferecendo suas capacidades como objeto de consumo para os capitalistas em troca do salário. Ou seja, oferecem uma mercadoria (força de trabalho) cujo valor de uso é obedecer aos ditames do capital para gerar valor. A coação à vender as capacidades humanas é o único fundamento da valorização incessante do valor. Consequentemente, a luta pela superação do valor é necessariamente a luta do proletariado (daqueles que são privados das condições de vida e produção), enquanto que a classe dominante luta necessariamente pela preservação do valor. Em suma: é impossível a superação da mercadoria sem a luta de classes.

humanaesfera

quinta-feira, 3 de março de 2016

Sobre organização


"[...]A gangue política, em suas relações externas, tende a mascarar a existência da “panelinha”, já que ela deve seduzir para recrutar. Ela se enfeita com um véu de modéstia a fim de aumentar seu poder. Quando a gangue apela a elementos externos por jornais, revistas e panfletos, ela pensa que deve falar no nível da massa para ser entendida. Ela fala do imediato porque quer mediatizar. Considerando todos que estão fora da gangue imbecis, ela se sente obrigada a publicar banalidades e asneiras a fim de seduzi-los. No fim, a gangue mesma é seduzida por suas próprias asneiras e é assim reabsorvida pelo meio social circundante. Contudo, outra gangue tomará seu lugar, e seu primeiro vagido será atribuir àqueles que a precederam todos os erros e crimes, procurando desta maneira uma nova linguagem a fim de começar novamente a grande prática da sedução; para seduzir, ela deve parecer diferente das outras.

Uma vez dentro da gangue (isto é, qualquer tipo de negócio), o indivíduo é amarrado a ela mediante todas as dependências psicológicas da sociedade capitalista. Se ele mostra qualquer habilidade, esta é explorada imediatamente sem que o indivíduo tenha tido a chance de dominar a "teoria" que aceitou. Em troca, ganha uma posição na “panelinha” dominante e se torna um chefete. Se ele não mostra habilidades, ganha uma posição, do mesmo jeito - entre sua admissão na gangue e seu encargo de divulgar a posição dela. Mesmo naqueles grupos que querem escapar do estabelecido, ainda assim um mecanismo de gangue tende a prevalecer por causa dos diferentes graus de desenvolvimento teórico entre os membros que compõem o grupo. A incapacidade de confrontar com independência as questões teóricas leva o indivíduo a se refugiar atrás da autoridade de outro membro, que se torna, objetivamente, um chefe, ou então da entidade grupal, que se torna uma gangue. Nas relações com pessoas de fora do grupo, o indivíduo usa seu pertencimento nele para excluí-las e se distinguir delas, no mínimo - em última análise - para evitar que sua fraqueza teórica seja percebida. Pertencer para excluir, esta é a dinâmica interna da gangue; que é fundada numa oposição, seja ou não admitida, entre o exterior e o interior do grupo. Mesmo um grupo informal degenera em bando político: o caso clássico da teoria se tornando ideologia.

O desejo de pertencer a uma gangue vem da vontade de ser identificado com um grupo que carrega um certo grau de prestígio, prestígio teórico para os intelectuais, e prestígio organizacional para o assim chamado homem prático. A lógica comercial também entra na formação "teórica". Com uma crescente massa de capital para realizar, isto é: mercadorias ideológicas para vender, é necessário criar uma profunda motivação a fim de que as pessoas comprem essas mercadorias. Para isto, a melhor motivação é: aprenda mais, leia mais, para ser o melhor, para se distinguir da massa. Prestígio e exclusão são os signos da competição em todas as suas formas; e é assim também entre essas gangues, que devem se vangloriar de sua originalidade, de seu prestígio, para chamar a atenção. É por isto que o culto da organização e a glorificação das distinções da gangue se desenvolvem. Deste ponto em diante, a questão não é mais defender uma "teoria", mas preservar uma tradição organizacional (cf. O PCI e sua idolatria da esquerda italiana).

Com freqüência, a teoria também é adquirida para ser usada em manobras políticas, por exemplo, para apoiar a tentativa de alguém para chegar à liderança ou para justificar a derrubada do chefe atual.

A oposição interior-exterior e a estrutura de gangue levam o espírito de competição ao extremo. Dadas as diferenças de conhecimento teórico entre os membros, a aquisição de teoria se torna, com efeito, um elemento político de seleção natural, um eufemismo para divisão do trabalho. Enquanto se está, por um lado, teorizando sobre a sociedade existente, por outro, sob o pretexto de negá-la, inicia-se dentro do grupo uma competição desenfreada que acaba numa hierarquização ainda mais extrema do que a da sociedade; sobretudo à medida que a oposição interior-exterior é reproduzida internamente na divisão entre o centro da gangue e a massa de militantes.

A gangue política atinge sua perfeição naqueles grupos que dizem querer superar as formas sociais existentes (formas como o culto do indivíduo, do líder, e da democracia). [...]

O que mantém uma aparente unidade no seio da gangue é a ameaça de exclusão. Quem não respeita as normas é expulso com difamação; e mesmo que saia, o efeito é o mesmo. A ameaça também serve de chantagem psicológica para aqueles que ficam. O mesmo processo aparece de diferentes maneiras em diferentes tipos de gangues.

Na gangue de negócios, moderna forma de empresa, o indivíduo é demitido e vai para o olho da rua.

Na gangue juvenil, o indivíduo é espancado ou morto. Aqui é onde encontramos a revolta em sua forma bruta, de delinqüência; o indivíduo sozinho é fraco, desprotegido, e assim é forçado a entrar na gangue.

Na gangue política, o indivíduo é expulso e caluniado, o que nada mais é do que a sublimação do assassinato. A calúnia justifica sua exclusão, ou é usada para forçá-lo a sair “por sua livre e espontânea vontade".

Na realidade, naturalmente, os diferentes métodos se cruzam de um tipo de gangue a outro. Há assassinatos vinculados a negociações e ajustes de contas que resultam em assassinato.

Assim, o capitalismo é o triunfo da organização, e a forma que a organização assume é a gangue. É o triunfo do fascismo. Nos estados Unidos, a gangue é encontrada em todos os níveis da sociedade. O mesmo acontece na Rússia. A teoria do capitalismo burocrático hierárquico, no sentido formal, é um absurdo, pois a gangue é um organismo informal.

[...] A formação da gangue é a constituição de uma comunidade ilusória. No caso da gangue juvenil, é o resultado da fixação no instinto elementar de revolta na sua forma imediata. A gangue política, pelo contrário, procura manter sua comunidade ilusória como modelo para toda a sociedade. É um comportamento utópico sem qualquer base real. Os socialistas utópicos esperavam que, através da emulação, toda a humanidade seria finalmente incluída nas suas comunidades, mas todas essas comunidades foram absorvidas pelo capital. Assim, esta frase dos estatutos da Primeira Internacional é mais válida do que nunca: "A emancipação dos trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores."

Na época atual, ou o proletariado prefigura a sociedade comunista e realiza a teoria comunista, ou então permanece parte da sociedade existente. O movimento de maio de 1968 foi o começo desta prefiguração. Resulta que o proletariado de modo algum pode se reconhecer em qualquer organização já que as sofre todas sob outras formas. O movimento de maio claramente demonstra isto.
[...]

O revolucionário não deve se identificar com um grupo, mas se reconhecer numa teoria que não depende de um grupo ou de um periódico, porque é a expressão de uma luta de classes real. É neste sentido que o anonimato é posto corretamente, e não como negação do indivíduo (o que a própria sociedade capitalista acarreta). O acordo, assim, é em torno de uma obra que está em andamento e precisa ser desenvolvida. É por isto que o conhecimento teórico e o desejo de desenvolvê-lo são absolutamente necessários se a relação professor-estudante - outra forma da contradição mente-matéria, lider-massa - não deve ser repetida, nem reviver a prática de sequazes. Além disso, o desejo de desenvolvimento teórico deve acontecer de modo autônomo e pessoal e não por meio de um grupo que se põe como uma espécie de diafragma entre o indivíduo e a teoria.[...]"

Trechos de Sobre Organização, Jacques Camatte & Gianni Collu


quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Contra a metafísica da escassez, copiosidade prática

(English version)

O texto Propriedade privada, escassez e democracia suscitou por toda parte a seguinte objeção:
Cornucópia

"A abundância (superação da escassez) é impossível, uma vez que vivemos em um universo com recursos limitados, não só econômica mas fisicamente;  portanto superar a escassez é uma exigência metafísica, absurda, que necessitaria uma automatização total do universo infinito para entregar à cada indivíduo, elevado ao status de um deus, a realização de seus menores caprichos e arbitrariedades."

Essa objeção interpreta “abundância” como uma categoria metafísica, solipsista, teogônica e psicototalitária. É como falar em “liberdade” abstraindo das relações materiais, sociais e históricas específicas, tomando “liberdade” como uma entidade que existisse em um mundo transcendente e identificando-a no nosso mundo com nonsenses, impossibilidades e aporias, como se na prática ela fosse sempre um nome para disfarçar a escravidão (a conclusão logicamente é o realismo: os escravos devem buscar a liberdade continuando a obedecer ao senhor, porque liberdade só não é um nonsense em um universo metafísico que não tem nada a ver com o da escravidão). 

Mas assim como liberdade, escassez e abundância – fora dos devaneios metafísicos – são coisas radicalmente concretas. 

Pois vejamos: se tu e mais alguém necessitam de algo específico, e há o suficiente para vós todos, então há abundância. Se não há o suficiente, há escassez. Abundância e escassez são sempre de algo específico, material, e não universais metafísicos.


Mas o que importa não são coisas encontradas já prontas, pois não se trata de automatizar por automatizar a produção (afinal, produção nada mais é do que criatividade, expressão humana multilateral no mundo - poética, racional, lúdica, culinária, apaixonada, matemática, artística, paisagística etc etc), mas sim de abolir o trabalho, ou seja, acabar com toda e qualquer atividade que é tão repulsiva, irritante e maçante que ninguém cogita em executá-la exceto em troca de recompensas (salário, cargo, "mérito"...) e sob ameaça de punições (demissão, prisão...), isto é, sob o poder de uma classe dominante (seja ela burguesa, como o empresariado particular nos EUA e Brasil, ou burocrática, como o empresariado estatizado em Cuba e URSS). 


Assim, por exemplo, em um mundo libertário (em que as forças produtivas mundiais deixaram de ser propriedade privada, sendo gratuitamente acessíveis a qualquer um no mundo que deseje se associar autonomamente com quem quiser para buscar satisfazer seus desejos, necessidades, paixões, projetos etc), há gente que deseja algo específico, algo que talvez nem mesmo existe ainda. Eles fazem uma proposta para o mundo (coisa hoje mais do que nunca factível com  telecomunicaçõestecnologia da informaçãointernet...). No mundo, a proposta pode (ou não) despertar em outros o desejo de contribuir para realizá-la, dispondo-se para isso conforme as atividades produtivas às quais são apaixonados (e não por medo nem chantagem, como na sociedade de classes e, em especial, na tirania chamada empresa, seja estatal ou particular). Eles se comunicam e coordenam suas atividades para transportar de várias partes do mundo os materiais necessários, produzir e distribuir essa produção aos que necessitam (tudo isso é hoje muito simples: supply chains).

A produção resultante pode ou não ser suficiente para todos os que a necessitam. Se é suficiente, não há o que discutir: ela é desfrutada livremente, gratuitamente, sem complicações. Mas se não é suficiente, surge a complicada questão da “justiça”: quem tem prioridade? 

[Nota: na sociedade capitalista isso não é uma questão: nela, tem prioridade quem tiver mais dinheiro para pagar. Ou seja, quem mais tiver comando sobre as capacidades criativas alienadas (vendidas) da população, que o endinheirado (capitalista) tiraniza para que trabalhe o mais gratuitamente possível (sobretrabalho: máximo de tempo, na máxima intensidade e pelo mínimo salário possível) para gerar o máximo de lucros para ele (mais-valia). Essa população é o proletariado, a classe daqueles que, privados de toda propriedade das condições de existir por si mesmo (graças à propriedade privada, mantida pelo Estado, concentração da violência armada da classe proprietária), se veem forçados, pela simples necessidade de sobreviver, a vender a única coisa que ainda possuem - a sua vida, oferecendo no mercado de trabalho como objeto de consumo as suas próprias capacidades humanas (força de trabalho) para fazer tudo o que o comprador (a classe proprietária) mandar. Trabalho: a troca da vida pela sobrevivência. Mas deixemos um pouco de falar da tirania atual para voltar a falar de um mundo verdadeiramente libertário, isto é, comunista.]

Como a justiça também não é uma forma platônica eterna sobrenatural que bastaria trazer pronta de um reino metafísico para aplicá-la aqui, não há nenhuma maneira de resolver a questão senão com uma democracia material em que os envolvidos decidam por si mesmos um critério do que é justo e também para evitar que alguns monopolizem o que for escasso para forçar outros, mediante ameaças e promessas baseadas na privação dos outros desse escasso (fazendo reaparecer a propriedade privada), a trabalhar para eles (ou seja, comprar deles) e restabelecer a sociedade de classes. 

Então é necessário aos envolvidos votar para decidir algum critério considerado mais justo sobre o que fazer com algo escasso: sorteio, repartição igualitáriadistribuição conforme os mais necessitados, ou conforme a participação em alguma atividade específica vista como necessária por todos, ou mesmo armazenar para suportar algum período de dificuldade... (nota: a tecnologia da informação já existente, torna facílimo disponibilizar mundialmente aos envolvidos meios de votar e debater)


O ideal, claro, é que a escassez de cada produção seja superada, isto é, que haja o suficiente para todos que necessitam dela e que não seja necessária essa complicação democrática entre produção e desfrute. Provavelmente, como ninguém quer passar necessidade (e como as complicações que o escasso envolve são chatíssimas), haverá sempre propostas para que a escassez de cada produção seja superada, e aqueles em todo o mundo que são apaixonados por meios de produção, ciência, máquinas, informática, robótica, meios de comunicação etc podem ser atraídos pela proposta, ajudando a criar e desenvolver materialmente as condições para isso. 

A questão de não destruir o ambiente natural em que vivemos só pode ser levantada e assumida pelos próprios envolvidos, a partir do que considerarem (mediante conhecimento, ciência, ética, técnica etc) necessário fazer e capacitados para fazer. Porque não existe nenhum ponto referencial "superior" (como a fantasia mitológica/teológica de uma providência chamada "natureza", "gaia") fora das necessidades e capacidades dos próprios seres humanos para eles mesmos decidirem suas vidas e suas ações.

Apesar do que parece, este assunto não é especulação futurista, mas uma necessidade do proletariado de hoje em todo o mundo. Porque seus velhos métodos de luta (greves, manifestações, ocupações etc) estão mais do que domesticados pelos empresários e burocratas. Estes perdem cada vez mais o medo da revolução social e portanto já estão há 30 anos retirando todos os "direitos democráticos" que Estados e empresas foram forçados a adotar para evitar o comunismo e a anarquia durante os 50 anos anteriores (dos anos 1920 aos 1970). 


Por isso, essa perspectiva é uma necessidade prática aqui e agora: "a superação da greve por uma tática de continuar a produção, mas como produção livre (gratuita) para e pela população, suprimindo a divisão emprego/desemprego nesse momento (abolição da empresa). Começando primeiro numa cidade, a difusão dessa experiência será tão apaixonante (incontível), que rapidamente, em um ou dois dias, se difundirá pelas principais metrópoles do mundo. O mapeamento da interconexão dos fluxos e estoques da produção mundial, cada vez mais completo, vai permitindo à população descobrir quais produções não servem para ela, desativando-as, e modificando outras. Os governos e as forças repressivas não tiveram tempo para estudar e coordenar um ataque e nem há mais condições para isso, pois a produção que sustenta essa condições está nas mãos da população. Os soldados, fraternizando, dão as armas para a população e se juntam a ela. Os que resistem tem suas condições de existências cortadas até que se rendam. Em menos de uma semana, o mundo inteiro estará sob o modo de produção associado, o comunismo. Senão, quanto mais a difusão global se retarda, chegando a apenas uma parte do mundo, a medida que os estoques vão acabando, mais insustentável (materialmente falando e em termos de repressão) se torna o modo de produção comunista. Pois mais se é privado dos materiais que a outra parte do mundo ainda não transformado possui como propriedade privada (estatal ou particular), forçado-a a trocar (comprar/vender) com ela para repor os estoques. Ou seja, é forçada, para comprar dela, a trabalhar para ela - e a reproduzir internamente o mesmo modo de produção capitalista, havendo o risco de o comunismo se tornar mera cobertura ideológica de uma nova variedade de exploração capitalista." (Breve crítica à ideia de economia paralela anticapitalista)

humanaesfera, janeiro de 2016



Bibliografia (com links):
-A reprodução da vida quotidiana, por Fredy Perlman
-Eclipse e Reemergência do Movimento Comunista (1972), por Jean Barrot e François Martin
-Dois textos contra o trabalho (1979 e 1982), por GCI
-Agora e Depois: O ABC do comunismo libertário (1929), por Alexander Berkman
-Le Humanisphère (1857), por Joseph Déjacque
-Nova Babilônia (1959-74), por Constant Nieuwenhuys (publicado no Dossiê "Constant", revista Sinal de Menos nº 5)
-Red Star (1908), por Alexander Bogdanov
-Um Mundo sem Dinheiro: o Comunismo (1975-76), por Os Amigos dos 4 Milhões de Jovens Trabalhadores
-Questionário (1964), por Internacional Situacionista (dossiê Internacional Situacionista)
-Crise e Autogestão (1973), por Négation
-A rede de lutas na Itália ( anos 1970), por Romano Alquati
-Kropotkin: Textos Escolhidos - org.: Mauricio Tragtenberg
-Grundrisse, A Ideologia Alemã (capítulo: Feuerbach) e Comentários sobre James Mill, por Karl Marx
-Marx comunista individualista! (trechos sobre o indivíduo em Marx)
-O Anti-Édipo, por Deleuze e Guattari



[Para uma resposta filosófica aos que insistem na metafísica da escassez, clique aqui para ver o texto DISSECANDO A METAFÍSICA DA ESCASSEZ]





Continuação das reflexões deste texto: 


quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Contra a adesão a qualquer lado da concorrência territorial entre as classes dominantes da Palestina e de Israel


É triste ver tanta gente defendendo que devemos (o proletariado) abraçar algum lado da concorrência (a guerra, literalmente) entre os burgueses de israel e os burgueses da palestina pela posse de territórios. 

A história prova que o próprio território "palestino" foi antes roubado de outros "povos", tal e qual o território "israelense" foi roubado dos "palestinos".
A disputa por territórios e propriedades sempre foi, é e será o negócio das classes dominantes.

A posição crítica racional e verdadeira contra essa situação é defender que proletários de todos os lados devem se recusar a matar, que eles devem voltar as armas contra seus próprios generais.

Ou seja, a verdadeira crítica não é defender "povos", "etnias", "culturas" contra outros (povos, culturas e etnias são estereótipos, ficções forjadas pelas classes dominantes para fazer seus escravos se matarem pelo território e propriedade de seus próprios senhores). A verdadeira posição crítica é contribuir para que os proletários palestino, israelenses e de todo o mundo se solidarizem na luta contra os seus próprios patrões e poderosos, não importa se estes são palestinos, israelenses ou de qualquer lugar do mundo.

Vocês que defendem um lado contra outro só colocam mais lenha na fogueira da matança mútua. Vossos "argumentos" na verdade são puramente emotivos e consequentemente a posição de vocês é reacionária.

SOBRE BOICOTE

Boicote virou panaceia. Na verdade, ele só contribui para delegar o poder, a responsabilidade, a autonomia da população (de ambos os lados) aos empresários e burocratas. Afinal o boicote visa "pressionar" os empresários e burocratas de Israel para que estes "ajam", e consequentemente para que a população continue cúmplice de seus desmandos, de suas "ações", ao invés de romper com elas e criar uma situação sem volta, acabando de fato com a guerra. 

Mas a ideia de boicote é ainda mais absurda. Aqui mesmo no Brasil ocorre uma matança em escala bélica da população pobre, talvez até maior do que entre Israel e Palestina. Faz sentido um boicote contra todos que moram aqui? Boicote é tática baseada em pensamento mágico, que não serve para nada senão acirrar ainda mais a matança, só intensifica os efeitos e nem raspa nas causas. Boicote é ilusão de "classe média", que só reconhece um único modo de ser - "o consumidor" - e uma única forma de agir possível, tão ilusória quanto qualquer superstição: consumir "conscientemente".

humanaesfera, janeiro de 2016

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

A tática por trás do "vandalismo nas escolas ocupadas"


Para entender como funciona a tática por trás do "vandalismo nas escolas ocupadas" veiculado pela mídia (comparar com o que é narrado nas páginas dos próprios estudantes veja: aqui e aqui):

A estreita ligação entre polícia e crime é um fato desde quando surgiu a polícia na história, no século XIX, junto com a prisão. A prisão tornou o crime uma profissão, porque é uma escola do crime, que prende o prisioneiro à criminalidade mesmo após sair de lá. Essa marginalidade é não só produto da prisão, e dirigida de lá (por ex. as facções de traficantes, que surgiram justamente da prisão) mas é apoiada, extensamente monitorada, sustentada e até controlada e dirigida diretamente pela polícia. A razão disso é bastante clara: quando a população luta por sua autonomia (por ex., a Comuna de Paris) se opondo ao poder do Estado e do capital, os poderosos tem a sua disposição essa criminalidade para mobilizar, destruir, desmoralizar e criar uma situação de violência cuja solução, segundo eles, é unicamente aceitar se render à polícia e ao Estado.

domingo, 8 de novembro de 2015

Contra o familismo novo e velho - abaixo a família!




(English translation)


Quem é privado dos meios de satisfazer suas necessidades se depara com a propriedade privada. Ele é coagido, se não quiser morrer (social e fisicamente), a se submeter aos caprichos, arbitrariedades e volubilidades de quem tem o poder de prover suas necessidades: no caso do filhos, os pais. 

Não por coincidência, a palavra "família" deriva do latim famulus, "escravo, servo". Nela, por sua vez, está o radical latino fames, que significa "fome", segundo a etimologia popular romana [nota 1]. Para os antigos romanos, a familia se constitui primariamente pelo poder de punir (com a fome) e recompensar (com matar a fome) os escravos/servos (que incluía a mulher, os filhos e os famuli adquiridos). 

Hoje, muitos criticam a família patriarcal defendendo a família moderna, pós-moderna, libertária, matriarcal, queer, poligínica, poliândrica, tribal, zoogâmica, comunitária, digital, neo-hippie etc. Desejam adicionar à família um pluralismo de novos adjetivos, perpetuando a servidão a que são submetidas as novas gerações há milênios [nota 2]. 

O FAMILISMO

Desde o surgimento do capitalismo (ou seja, do capital industrial, do proletariado e do Estado moderno, simultaneamente, século XVIII), o familismo é o fetiche central pelo qual os proletários, aqueles privados de propriedade de qualquer meio de vida, aceitam de bom grado se engajar em manter e aprimorar a empresa e o governo, criando e acumulando com dedicação o próprio poder hostil que os submete, desgasta, recicla, descarta e abandona sistematicamente. Isso porque colocam sua libido (catexia), seus desejos, na família, pseudo-propriedade privada na qual eles fantasiam estarem acumulando seu próprio capital em igualdade com os capitalistas; o que os leva a apoiar a classe dominante e a polícia, ou seja, o Estado, como garantidores dessa sua propriedade fictícia. 

Graças ao familismo, que é essa crendice na pseudo-propriedade privada sobre um conjunto que engloba os filhos, parceiros sexuais, escovas de dentes, automóvel, casa etc, os proletários se imaginam tão capitalistas quanto os proprietários dos meios de vida e de produção que o exploram, e imaginam ter os mesmos interesses que eles. 

Decorre do familismo a crendice de que há apenas "classe média" e "bandidos": uma hierarquia infinitamente escalonada, que vai de famílias com "sucesso" - "classe média alta alta" - às famílias "fracassadas" - "classe média baixa baixa" -, hierarquia que supõem ser estabelecida "objetivamente, naturalmente, legitimamente" na competição cruenta, mas justa porque "meritocrática", pela sobrevivência, pelo que é para poucos (escassez - propriedade privada imaginada como fenômeno natural, eterno). Mas toda "classe média" se congrega e torce pela polícia (à qual atribuem um status teocrático, sobre-humano, completamente livre para matar e torturar) contra os  "bandidos" . Estes são quaisquer bodes expiatórios que as facções da classe proprietária (agrupadas como identidades, pátrias, etnias, "gente de bem", ou vestidas com outras fantasias, como as simétricas metades esquerda e direita do capital e do Estado) exibam nos meios de comunicação social como causa de todo mal: de "favelados" à "judeus", passando por "vagabundos", "estrangeiros", "forasteiros", "maconheiros", "imperialistas", "comunistas", "golpistas", "baderneiros" etc. É assim que, em caso de guerra, cada facção burguesa concorrente recruta facilmente proletários para agredirem e massacrarem a si mesmos, a seus próprios irmãos de classe atrás das fronteiras inventadas pelos próprios exploradores, supondo estarem atacando aqueles estereótipos, espantalhos ideológicos, bodes expiatórios. 

Se em seu acme o familismo é a sagração do açougue bélico, em sua base ele é a da guerra de todos contra todos chamada mercado e do poder armado que garante essa guerra, o Estado.  Eles imaginam que essas entidades são naturais, eternas, sagradas e imutáveis porque todas elas seriam os fundamentos consolidadores da família, que consideram a única coisa que dá sentido à suas vidas, a única razão para não se suicidarem. Os capitalistas necessitam que os indivíduos reprimam e limitem seus desejos ao familismo, para que eles se engajem com todo empenho em manter e aprimorar o Estado e o capital como meios de realizarem esse desejo estreito, limitado, formatado, mesquinho e em última instância suicida e homicida [nota 3].


Assim, enquanto para o capital (acumulação do trabalho morto, valorização do valor, sujeito automático, auto-expansão do lucro auto-referente sem fim) o que importa é que haja átomos vendedores/compradores, existentes socialmente apenas pela troca de mercadorias, simples engrenagens interligadas apenas pela acumulação do capital (daí que o capital facilmente adote uma atomizante emancipação feminina, homossexual, operária, racial, étnica, sexual etc), para a classe capitalista - que é a personificação do capital enquanto poder direto, prático, sobre os seres humanos, vampirizando-os em carne e osso para implementar a acumulação do capital, classe que inclui os burocratas e os proprietários, governo e empresa - para a classe capitalista há a clareza cristalina de que, sem a crendice na pseudo-propriedade chamada família, dificilmente alguém se disporia a se sacrificar até o esgotamento por aumentar um poder que só vai desgastá-lo até o osso para descartá-lo ao fim no olho da rua [nota 4]. Analisemos então como os capitalistas fazem o familismo ser inculcado nas crianças pelos próprios pais de geração em geração.


"SOCIEDADE DISCIPLINAR" E "SOCIEDADE DE CONTROLE"

Aparentemente, o poder dos pais sobre os filhos hoje (desde a década de 1970-80) é principalmente "objetivista". Os pais simplesmente lembram aos filhos interminavelmente da existência do denominado "mundo real": mundo-cão/ruas-cheias-de-assassinos-estupradores-monstros/guerra-de-todos-contra-todos/mercado-selecionador-imparcial-critério-último-da-verdade. "Mundo real" sempre  confirmado pelos meios de comunicação, por boatos chocantes ou pela degradação real dos arredores. O medo então acarreta o trancafiamento e submissão "voluntários" dos filhos na "segurança doméstica" e na escola. Ora, esse é exatamente o velho modo de sujeição dos proletários aos proprietários. O proletário se sujeita ao poder do proprietário não porque o proprietário se imponha "pessoalmente", mas "objetivisticamente". Jogado num mundo-cão desolado e desumano, sem propriedade de nada, privado de meios de vida, não resta ao proletário saída senão se vender "voluntariamente" no mercado de trabalho. Mas essa situação aparentemente "objetiva" e "natural", na realidade é armada e garantida pelo Estado (e seu subterrâneo inseparável: o crime), órgão armado da classe proprietária responsável pelo "enforcement" da propriedade privada.

Então, a atual "sociedade de controle" (que sucede a "sociedade disciplinar" a partir da década de 1970-80), com seu "objetivismo", pode ser vista como extensão da proletarização da esfera da produção para a esfera da reprodução da sociedade (família, educação, saúde, repressão sexual) [nota 5]. Diferentemente, a antiga família da "sociedade disciplinar" pode ser considerada uma sobrevivência da família feudal ou de castas, com um tipo de sujeição ainda não plenamente capitalista (em outros termos, havia subsunção formal mas ainda não subsunção real da reprodução do proletariado ao capital). Porque nela, os pais exerciam um poder principalmente pessoal, não "objetivista". Os filhos ficavam a maior parte do tempo soltos pela rua ("mundo de curiosidades e maravilhas") brincando com seus amigos (enquanto as filhas eram tratadas como "bonequinhas" ultraprotegidas, ajudando a mãe no trabalho doméstico, para serem futuras donas de casa, e não "mulheres do mundo"). A predominância do poder pessoal é evidente porque, no fim do dia, quando o pai chegava do trabalho, os pais recriminavam exigindo "respeito a ele" e até agrediam brutalmente os filhos para que "tomassem jeito". Era o momento da disciplina.


FAMILISMO GENERALIZADO: A DOMESTICAÇÃO DA VIDA COTIDIANA UNIVERSAL PELA INTERNET


A proletarização da reprodução que caracteriza a atual "sociedade de controle" seria incontivelmente explosiva se não fosse acompanhada por uma familização generalizada. E é a internet que leva a uma absolutização do familismo antes inimaginável. No advento da internet, a chamada "web 1.0" resultou numa confluência vulcânica de dimensões díspares da existência: vida cotidiana e tecnologia da informação se chocaram sem controle, provocando um universalismo ou comunismo de ideias livremente produzidas por qualquer um e acessíveis a todos no mundo. A cada um se abria um universo infinitamente além do familismo, da familiaridade das "panelinhas" de amigos e da reificação identitária. Disparidade vulcânica potencialmente revolucionária, porque tornava a perspectiva de uma livre associação mundial dos indivíduos através de suas necessidades, desejos, projetos e paixões mais apaixonante do que o miserável e amedrontrado auto-encarceramento familiar. As pessoas se definiam, se encontravam e se relacionavam pelo que desejavam ser e fazer: o pseudônimo e o anonimato eram a regra.  Porém, com o aparecimento da chamada "web 2.0", o capital cuidou de destruir essa disparidade vulcânica, obrigando todos a se identificarem, se encontrarem e se relacionarem como "pessoas com famílias, amigos e registradas pelo Estado", minando na raiz a perspectiva de uma internet universalista de indivíduos livremente associados em função do suas necessidades e paixões livres e comuns [nota 6].

A "web 2.0" é o esvaziamento da internet (websites, fóruns, emails etc) pelas chamadas "redes sociais" (hoje dominadas pelo facebook, whatsapp etc), que levam a uma privatização ou mesmo uma feudalização do que se compartilha e se acessa na internet. O familismo (e o panelismo ou "amiguismo" inerente a ele) passa a ocupar todo o tempo e libido das pessoas: não é mais possível à quase ninguém existir socialmente se não aceitar se deixar chafurdar numa "timeline" frenética e interminável de exibicionismos pessoais e familiares infinitamente descartáveis a cada segundo. Quase toda internet universalista e livremente acessível (por buscadores) e feita autonomamente (homepages, grupos de discussão...) foi abandonada e esvaziada. Nessas condições, dá-se uma redução brutal da capacidade dos indivíduos de se expressarem, se associarem e pensarem fora da burrice da dimensão pessoal, familiar, amiguista e identitária. Ocorre uma infantilização geral.

Há ainda um aspecto ainda mais estarrecedor do familismo das "redes sociais". Como todos praticamente só são acessíveis e só se comunicam por elas (facebook, whatsapp...), cada proletário ficaria isolado e incomunicável se não se tornasse também usuário delas. Isso dá um poder de vigilância absurdo sobre o que pensa, faz e sente cada um. O facebook é o maior e mais poderoso sistema de vigilância e monitoramento que já existiu na história da humanidade. E não só pelo Estado e serviços secretos. Quem é forçado, para sobreviver, a se vender como objeto de consumo vivo no mercado de trabalho, tem, por isso mesmo, sua sobrevivência sob o poder e arbítrio de outras pessoas (a classe capitalista, tanto burocratas quanto proprietários), que, é claro, vigiam e monitoram o facebook de seu escravo. Qualquer ideia levemente questionadora que encontrar, no dia seguinte, por um pretexto qualquer, o proletário está demitido, no olho da rua. Então, o familismo se torna o único pensamento e sentimento que é permitido ao proletariado expressar em público, a não ser que queira se suicidar socialmente (se tornando mendigo) ou fisicamente.

SAÍDA : ABOLIÇÃO DA FAMÍLIA

Nos perguntam: "Que nova família substituirá a família tradicional?" Nenhuma.  A família enquanto tal terá de ser superada: as novas gerações encontrarão livremente (gratuitamente) em comum na sociedade os meios de desenvolverem por si mesmas suas diversas potencialidades, aptidões e paixões, crescendo como seres autônomos. Ou seja, encontrarão livremente os meios de não serem obrigadas à se sujeitar à arbitrariedade nem capricho de ninguém. Então, pais e filhos enfim poderão ter verdadeiro amor uns pelos outros, porque não será mais fingido pelo interesse dos filhos em receber dos pais os meios de se satisfazerem. É claro que tudo isso só poderá ocorrer com a auto-abolição mundial do proletariado e, portanto, do capital e do Estado, mediante a livre associação global dos indivíduos que acessam livremente, gratuitamente e universalmente as condições práticas materiais (meios de produção mundialmente interconectados) necessárias para a auto-realização e livre desenvolvimento de seus desejos, necessidades, paixões, aptidões, projetos... Somente assim os apaixonados em ajudar a tornar autônomas as novas gerações (os que hoje são os escravos assalariados chamados educadores, professores,  babás etc), poderão se associar livremente por todo o mundo para exercer e aprimorar suas capacidades que tanto amam, fornecendo gratuitamente às novas gerações o fundamento para que cresçam e desenvolvam sua autonomia. A lição básica: que jamais aceitem o servilismo de fazer seja o que for em troca de dinheiro, cargos ou qualquer outro tipo de chantagem ou ameaça. [nota 7]

humanaesfera, novembro de 2015

NOTAS



[nota 2]  Já era assim nas comunidades tribais, onde a família geralmente se identificava com a própria tribo, podendo todos os tios e tias terem status de mães e pais (ou dependendo do sistema de parentesco, patrilinear ou matrilinear, apenas os parentes do pai ou da mãe). Para cada tribo, todos os outros humanos não-familiares eram  bestas, não-humanos ou falsos humanos, contra os quais se estava em estado de guerra constante ou latente (quando então, através da "dádiva", criava-se um laço de dívida mútua, por exemplo, o potlatch). Para marcar o pertencimento à suposta única tribo dos "verdadeiros humanos", que seriam os mais fortes e superiores, a família tribal submetia as novas gerações a ritos de passagem como provação do "merecimento" de pertencer à sua família em exclusão de toda humanidade. Esses ritos escreviam literalmente na carne e na alma as marcas de pertencimento (mutilações, humilhações, várias provas de resistência à dor, prova de que não se é "frouxo" assassinando inimigos sem hesitação, adquirindo cicatrizes de guerra etc). Evidentemente, as novas gerações eram forçadas a se submeter porque não havia nenhum outro meio de satisfazerem suas necessidades fora da tribo, exceto se desejassem a solidão da natureza inclemente, vulneráveis às tribos e feras inimigas. E se se juntassem para criar uma outra tribo independente, eles seriam obrigados a recriar as mesmas provações dos ritos de passagem e as mesmas violências para com as outras tribos.  Porque isso não depende só da vontade, mas das condições de existência materiais, ou seja, da capacidade humana de, com as forças produtivas existentes, transformar a natureza, a circunstâncias, as condições concretas das relações humanas. É o estado de natureza com que se deparavam que materialmente os obrigava a adotar todas essas coerções, se agrupando na forma social família-tribo.

[nota 3] Ver o livro O Anti-Édipo (volume I de Capitalismo e esquizofrenia), Gilles Deleuze e Felix Guattari.

[nota 4] Em O Capital, Marx explica que na esfera da circulação de mercadorias, essa aparência de igualdade e trocas voluntárias é real, não uma simples mentira. E como a esfera da produção é invisível, privada, isolada e sem comunicação com a sociedade, não é à toa que a aparência do capitalismo seja mesmo essa de trocas voluntárias e que a maioria dos proletários se considere "classe média" e até mesmo "capitalista". O livro O Capital começa analisando a aparência imediata do modo de produção capitalista, a produção simples de mercadorias (em que cada um, sozinho, produz, vende e compra mercadorias, buscando satisfazer suas necessidades), mostrando que a ilusão  é baseada nessa aparência. Marx explica que só do ponto de vista do proletariado, quando ele se impõe como classe autônoma contra o trabalho que lhe é imposto, contra a empresa e as fronteiras nacionais, pode-se ter uma perspectiva teórico-prática que torna publicamente visível a esfera da produção - exploração, trabalho alienado, reificação, fetichismo do capital etc - como fundamento da sociedade capitalista.

[nota 5] Essa perspectiva parece permitir uma compreensão da "sociedade de controle" de modo muito menos holístico e misterioso do que se costuma fazer (que parece levar muitos a crer equivocadamente que a sociedade atual é "permissiva" - como defendem por exemplo os estrelistas espetaculares Zizek, Safatle - ou que a auto-sujeição é verdadeiramente auto-sujeição - por exemplo. a visão auto-culpista "tirano dentro de si"), possibilitando compreender o que é determinante e o que é acidental. Ou seja, parece abrir uma perspetiva prática libertária mais potente. Aos que ainda não sabem de onde veio essas expressões "sociedade de controle" e "sociedade disciplicar", ver as obras de Deleuze e Guattari e Foucault.  A repressão da sexualidade, o sentimento de culpa etc, tudo isso continua sob a forma brutal objetivista segundo a qual, como todos seriam essencialmente monstros estrupradores, assassinos e vagabundos, "bandidos", é preciso se reprimir e reprimir os outros, sofrer e fazer sofrer, para "subir na vida" e se juntar aos poucos "vencedores". Quanto maior a capacidade de sacrificar a si e aos outros, maior seria provado e legitimado o mérito, a subida de posição na pirâmide da meritocracia.

[nota 6] Ver Infoenclosure 2.0 (Dmytri Kleiner & Brian Wyrick) e Fetishism of Digital Commodities and Hidden Exploitation (Wu Ming).

[nota 7] A abolição da família não é nenhuma ideia nova, mas parte do comunismo invariável do proletariado autônomo, isto é, anti-estatal e internacionalista, desde o século XVIII e XIX. Joseph Déjacque, Karl Marx, Wiliam Morris, Piotr Kropotkin e Alexander Bogdanov, entre muitos outros, contribuíram com suas obras para sistematizar e aprimorar essas ideias. 



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