sexta-feira, 13 de setembro de 2019

O senhor Puntila e seu criado Matti, de Bertolt Brecht (arquivo PDF)


Clique aqui para baixar o arquivo PDF da peça de teatro de Bertolt Brecht, O senhor Puntila e seu criado Matti.

Trechos da apresentação:

"Foi em 1940, na emigração, enquanto se encontrava na Finlândia, que Bertolt Brecht escreveu O senhor Puntila e seu criado Matti, baseando-se num esboço dramático e em narrações da escritora Hella Wuolijoki, em cuja casa se hospedara. Entre as grandes obras da maturidade, Puntila é a de cunho mais popular e humorístico.[...]

Seu motivo central, ao mesmo tempo jocoso e profundo, já fora explorado anteriormente por Chaplin (Luzes da cidade) a quem Brecht muito admirava. Não é, portanto, novo o caso dos dois caracteres de Puntila, homem afetuoso quando embriagado, homem egoísta quando sóbrio. Nova é a maneira de como Brecht aproveita a curiosa duplicidade que desintegra a personalidade do fazendeiro. A partir dela analisa a dialética inerente às relações entre senhor e criado tão bem exposta por Hegel — e, concomitantemente, procura elucidar certos aspectos da sociedade de classes.
[...]
Com horror na voz, Puntila confessa que no estado vil da sobriedade é um homem responsável, forçado a prestar conta de seus atos. Por isso mesmo é então uma pessoa de quem se podem esperar as piores coisas. Paradoxalmente, ser responsável implica ser imoral. Daí o seu empenho heroico em beber e em tornar-se deste modo irresponsável, isto é, virtuoso. [...] Puntila está em constante contradição consigo mesmo, produzindo na própria pessoa o distanciamento, já que os dois caracteres se refutam e estranham, se criticam e ironizam mutuamente. É no estado irresponsável — quando é um animal irracional — que se torna humano e é no estado racional, isto é, humano, que passa a ser desumano. [...] Puntila é, portanto, associal em todas circunstâncias. A sua maldade é “normal”, isto é, típica, institucional, e sua bondade é “anormal”, isto é, particular e caprichosa e por isso sem valor, sem conseqüência. De fato, nos estados maldosos anula tudo quanto fez de bom nos estados generosos. Tudo fica na mesma e às vezes até piora.
[...]
Os momentos estruturais apontados, totalmente contrários à unidade e continuidade do drama aristotélico — com início, meio e fim — tornam esta peça em uma das mais conseqüentes do teatro épico, cuja teoria Brecht então já levara ao amadurecimento. Duas razões fundamentais fizeram com que a elaborasse. A primeira decorre da convicção antropológica de que a pessoa humana é o conjunto de todas as relações sociais. Cabe integrá-la, pois, num mundo amplo, mostrando não só os “navios inclinados” — como se fazia no teatro clássico — mas também a “tempestade que os inclina”, isto é, as fôrças anônimas que atuam sôbre o indivíduo. Esta razão do teatro épico encontra ampla expressão em Puntila. [...]

A segunda razão do teatro épico decorre dos objetivos didáticos de Brecht, do seu desejo de apresentar um palco capaz de esclarecer o público sobre a nossa sociedade e o dever de transformá-la. Êste fim didático impõe eliminar o efeito hipnótico do teatro tradicional. Impõe anular a sua função de sedativo e evasão. Por isso mesmo convém montar uma estrutura em curvas, episódica, dialética — a afetuosidade de Puntila se chocando com a sua aspereza — para romper a continuidade linear da dramaturgia tradicional. Esta, mercê do seu encadeamento rigoroso, prende o espectador no avanço ininterrupto da ação tensa, enreda-o no enredo, não lhe concedendo liberdade crítica. Coloca-lhe o jugo da identificação com as situações e os personagens, de modo que vive com estes o seu destino inexorável, em vez de, vivendo embora emocionalmente o seu destino, ter ao mesmo tempo a possibilidade de distanciar-se o suficiente para, pela objetivação, chegar ao raciocínio. Assim compreenderá que êste destino de maneira alguma é eterno e inexorável, mas conseqüência de uma situação histórica, de um sistema social (p. ex. o da relação senhor-criado). O homem, sem dúvida, é determinado pela situação histórica; mas pode, por sua vez, determiná-la. O fito principal do teatro épico e do distanciamento é, portanto, estudar o comportamento do homem em certas condições e mostrar que estas podem e devem ser modificadas. É, pois, a “desmistificação”, a revelação de que as desgraças humanas não são eternas e sim históricas, podendo por isso ser superadas. O distanciamento, mais exatamente, procura tornar estranha a nossa situação habitual, anular-lhe a familiaridade que a torna corriqueira e “natural” e por isso incompreensível na sua historicidade. Pois tudo que é habitual apresenta-se como fenômeno natural e por isso imutável. Temos que ver o nosso mundo e comportamento objetivados, por uma momentânea alienação deles, para vê-los na sua relatividade e para, dêste modo, conhecê-los melhor. Todo conhecimento inicia-se com a perplexidade diante de um fenômeno. Distanciar, tornar estranho é, portanto, tornar ao mesmo tempo mais conhecido.
[...]
Brecht não visa a apresentar com Puntila um homem mau ou um homem bom, mas simplesmente um fazendeiro que, para ele, representa uma organização social. É um “modelo” proposto para demonstrar exemplarmente a atitude do superior que, não importa se com sinceridade ou para disfarçar a realidade, “concede” ao inferior paternalmente ocasionais benefícios, enquanto de fato, como vimos, tudo fica na mesma. [...] O fazendeiro seria provavelmente um “sujeito ótimo” [...] mas as condições não permitem que o seja (e se o fosse, perderia a fazenda, sem grande benefício para ninguém). O problema, para Brecht, não é, portanto, moral e sim social. Puntila quer ser bom, é por isso que se embriaga, pois “terrível é a sedução da bondade” e é duro ser mau [...]

Entretanto, por mais que Puntila se esforce por evitar este esforço, as suas tentativas de ser cordial se corrompem ante o “vício da responsabilidade”. [...] Todos os esforços do fazendeiro de ser generoso, por mais autênticos que sejam, fracassaram. A situação torna-os ambíguos, contamina-os de suspeitas, ao ponto de poderem ser interpretados como artimanha para desarmar os criados. “Se (os patrões) tivessem corpo de urso, ou cobra, a gente tomava mais cuidado”, diz a telefonista. A bondade chega a revestir-se de aspectos quase ameaçadores.

É nesta desconfiança que vive Matti, o criado cético, solidário com os seus colegas, que tem a sabedoria e um pouco também a esperteza dos oprimidos. Apesar de ser um “operário consciente”, tem dificuldade em resistir ao encanto de Puntila. Mas pelo menos sabe desta falha. “Ele é familiar demais”, assegura, desfamiliarizando a nossa familiaridade com essa familiaridade. [...]

Na dialética de suas relações, bem de acordo com Hegel, o senhor se torna cada vez mais dependente de quem dele depende, e quando Matti abandona Puntila a perda será maior para o patrão do que para o criado.
[...]
Mais que o esquema didático, exposto nesta apresentação, importa compreender o humanismo de Brecht. É verdade, a peça não visa a uma tese moral. Para Brecht, as soluções supremas pressupõem as humildes. Os valores sociais, embora inferiores aos morais, são precisamente por isso os básicos. Sem a realização do inferior, mas básico, não se desenvolve e frutifica o superior. Só depois de estabelecida a justiça social podem revelar-se o amor e a bondade na sua pureza e autenticidade. Toda a ênfase de Puntila é humanista. No horizonte da obra, não visível mas onipresente, espécie de imagem sugerida pelos contornos negativos da sombra que projeta no universo ambíguo da peça, pressente-se um mundo mais generoso em que Puntila pode ser bom e Matti, seu amigo."

Anatol Rosenfeld (A Cordialidade Puntiliana)

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