Foi integralmente traduzido para o português o livro de Roger Gregoire & Fredy Perlman Comitês de ação dos trabalhadores e estudantes. França, maio de 68 que é um dos melhores relatos e análises de maio de 1968. Abaixo, alguns trechos:
"A consciência do poder coletivo é a primeira etapa em direção à apropriação do poder social (mas apenas a primeira etapa, como será mostrado logo a seguir). Conscientes do seu poder coletivo, os ocupantes da universidade, trabalhadores e estudantes, começam a se apropriar do poder de decidir, eles começam a aprender a dirigir suas próprias atividades sociais. O processo de desalienação política começa; a universidade é desinstitucionalizada; o prédio é transformado em um lugar que é dirigido pelos seus próprios ocupantes. Não há “especialistas” nem “responsáveis”. A comunidade é responsável coletivamente pelo que acontece, e pelo que não acontece, dentro do prédio ocupado. Atividades sociais anteriormente especializadas se tornam integradas nas vidas de todos os membros da comunidade. As atividades sociais não são mais executadas pela coerção direta e nem pela coerção indireta do mercado (i.e., a ameaça de pobreza ou fome). Como resultado, algumas atividades sociais, como arrumar o cabelo ou enfeitar as unhas, não são mais executadas. Outras atividades, como cozinhar, varrer os quartos, limpar os banheiros - tarefas executados por pessoas que não tem outra escolha em um sistema coercitivo - são deixadas sem fazer por vários dias. A ocupação mostra sinais de degradação: a comida é ruim, os quartos estão sujos, os banheiros estão inutilizáveis. Essas atividades se tornam a ordem do dia para a assembleia geral: todos estão interessados em sua execução eficiente, e ninguém é coagido institucionalmente para desempenhar essas tarefas. A assembleia geral é responsável pelo seu desempenho, o que significa que todos são responsáveis. Comitês de voluntários são formados. Um Comitê de Cozinha melhora a qualidade das refeições; a comida é de graça: ela é provida por comitês de vizinhança e por camponeses. Um serviço de arrumação se incumbe de manter os banheiros limpos e guarnecidos com papel higiênico. Cada comitê de ação limpa sua própria sala. As tarefas são executadas por professores, estudantes e trabalhadores. Nesse ponto, todos os ocupantes do Censier são trabalhadores. Não há mais trabalhos de status superior e inferior; não existem mais tarefas intelectuais e manuais, trabalho qualificado e não qualificado; há apenas atividades socialmente necessárias.
Uma atividade que for considerada socialmente necessária por um punhado de ocupantes se torna a base para a formação de um comitê de ação. Cada pessoa é um pensador, um iniciador, um organizador, um trabalhador. Companheiros estão sendo feridos gravemente por policiais nas lutas na rua: um andar do Censier é transformado num hospital; doutores e estudantes de medicina cuidam dos pacientes; outros sem experiência médica ajudam, cooperam e aprendem. Um grande número de companheiros têm bebês e como resultado não podem tomar parte nas atividades que os interessam: os companheiros se juntam para formar uma creche. Os comitês de ação precisam imprimir panfletos, anúncios, relatórios: máquinas de mimeógrafos e papéis são encontrados e um serviço de impressão livre é organizado. Pessoas da cidade - observadores e participantes em potencial - afluem no Censier constantemente e são incapazes de se localizar em meio ao complexo sistema social que começou a se desenvolver no prédio: uma janela de informação é mantida na entrada e escritórios de informação são mantidos em cada andar para orientar os visitantes. Muitos militantes vivem longe do Censier: um dormitório é organizado.
O Censier, anteriormente uma universidade capitalista, é transformado num sistema complexo de atividades e de relações sociais auto-organizadas. Entretanto, o Censier não é uma Comuna autossuficiente removida do restante da sociedade. A polícia está na ordem do dia em cada assembleia geral. Os ocupantes do Censier estão plenamente cientes que suas atividades sociais auto-organizadas estão ameaçadas enquanto o Estado e o aparato repressivo não forem destruídos. E eles sabem que sua força, e mesmo a força de todos os estudantes e de alguns trabalhadores, não é suficiente para destruir o potencial do Estado para a violência.
A única força que pode colocar os ocupantes do Censier de volta no sono é uma força que é fisicamente forte o bastante para quebrar sua vontade: a polícia e o exército nacional ainda representam tal força.
Os meios de violência produzidos por uma indústria altamente desenvolvida são ainda controlados pelo Estado capitalista. E os ocupantes do Censier estão cientes de que o poder do Estado não será quebrado enquanto o controle sobre estas atividades industriais não passar aos produtores: eles “estão convencidos de que a luta não pode ser concluída sem a massiva participação dos trabalhadores”. [14] O poder armado do Estado, o poder que nega e ameaça aniquilar o poder da criação coletiva e de auto-organização manifestadas no Censier, só pode ser destruído pelo poder armado da sociedade. Mas antes que a população possa ser armada, antes que os trabalhadores tomem controle dos meios de produção, eles devem se tornar conscientes de sua capacidade de fazê-lo, eles devem se tornar conscientes do seu poder coletivo. E essa consciência do poder coletivo é precisamente o que estudantes e trabalhadores adquiriram depois que eles ocuparam o Censier e transformaram-no em um lugar de expressão coletiva. Consequentemente, a ocupação do Censier é uma ação exemplar, e o objetivo central dos militantes do Censier torna-se comunicar o exemplo. Todas as atividades auto-organizadas giram em torno dessa tarefa central. Antigas salas de aula se tornam oficinas de comitês de ação recém formados; em cada sala, projetos são sugeridos, discutidos e iniciados; grupos de militantes surgem com um projeto, e outros surgem para iniciar um novo." (Censier Libertado: Uma Base Revolucionária. O caráter exemplar da ocupação da universidade)
"[...]Na Sorbonne, no Censier, em Nanterre, e em outros lugares, a universidade foi proclamada uma propriedade social; os prédios ocupados tornaram-se ex-universidades. Os prédios foram abertos para toda a sociedade - estudantes, professores, trabalhadores - para qualquer um que desejasse ir lá. Além do mais, as ex-universidades foram geridas pelos seus ocupantes, fossem eles estudantes ou não, trabalhadores, camponeses. No Censier, de fato, a maioria dos ocupantes não era “estudante”. Essa socialização foi acompanhada por uma ruptura da divisão do trabalho, da divisão entre “trabalhadores” e “intelectuais”. Em outras palavras, a ocupação representou a abolição da universidade como uma instituição especializada restrita a um segmento específico da sociedade (estudantes). A ex-universidade se tornou socializada, pública, aberta a todos.
As assembleias gerais nas universidades foram momentos de auto-organização pelas pessoas dentro de um prédio específico, independente de suas especializações anteriores. Elas não foram momentos de auto-organização a respeito de “seus próprios” assuntos.
Entretanto, isso foi o mais longe que a “escalada” foi. Quando as pessoas que organizavam as atividades dentro da universidade ocupada foram “aos trabalhadores”, fosse nas barricadas ou nas fábricas, e quando eles disseram para os “trabalhadores”: VOCÊS devem tomar SUAS fábricas”, eles mostravam uma completa falta de entendimento sobre o que eles já estavam fazendo nas ex-universidades.
Nas ex-universidades, a divisão entre “estudantes” e “trabalhadores” foi abolida na ação, na prática cotidiana dos ocupantes; não havia mais “tarefas de estudantes” e “tarefas de trabalhadores”. Entretanto, a ação foi mais longe que a consciência. Ao ir aos “trabalhadores” as pessoas viam os trabalhadores como um setor especializado da sociedade, eles aceitaram a divisão de trabalho.
A escalada foi tão longe a ponto da formação de assembleias gerais de seções da população dentro das universidades ocupadas. Esses ocupantes organizaram suas próprias atividades.
Entretanto, as pessoas que “socializaram” as universidades não viram as fábricas como meios SOCIAIS de produção; elas não perceberam que essas fábricas não foram criadas pelos trabalhadores empregados lá, mas por gerações de trabalhadores.Tudo que eles viram, dado que isso é visível na superfície, é que os capitalistas não fazem a produção mas os trabalhadores fazem. Mas isso é uma ilusão. A Renault, por exemplo, não é em nenhum sentido um “produto” dos trabalhadores empregados na Renault, ele é um produto de gerações de trabalhadores (não apenas na França), incluindo mineiros, produtores de máquinas, produtores de comida, pesquisadores, engenheiros. Pensar que as fábricas automobilísticas da Renault “pertencem” às pessoas que hoje trabalham lá é uma ilusão. Porém, essa ficção foi aceita por pessoas que rejeitaram a especialização e a “propriedade” nas universidades ocupadas.
Os “revolucionários” que transformaram as universidades em espaços públicos, e consequentemente em propriedade de ninguém, não estavam conscientes do caráter SOCIAL das fábricas. O que eles contestaram foi o “sujeito” que controlava a propriedade, o “proprietário”. A concepção dos “revolucionários” era que “os trabalhadores da Renault devem gerir as fábricas ao invés dos burocratas do estado; os trabalhadores da Citroen devem gerir a Citroen no lugar dos proprietários capitalistas”. Em outras palavras, as propriedades privada e estatal devem ser transformadas em propriedade do grupo: a Citroen deve se tornar uma propriedade dos trabalhadores empregados na Citroen. E visto que essa “corporação” de trabalhadores não existe no vácuo, ela deve estabelecer maquinarias para se ligar a outras corporações, “externas”, de trabalhadores. Consequentemente, eles devem estabelecer uma administração, uma burocracia, que “representa” os trabalhadores de uma fábrica particular. Um elemento dessa concepção corporativista foi afetado pelo “modelo” das universidades ocupadas.Tão logo o sindicato estudantil foi rejeitado como o “porta-voz” dos estudantes que ocuparam a universidade, o sindicato tradicional (A Confederação Geral do Trabalho) foi rejeitado como o “porta-voz” dos trabalhadores incorporados: ”os trabalhadores devem ser representados não pela CGT; eles devem ser representados por eles mesmos,” quer dizer, por uma nova burocracia eleita democraticamente.
Assim, mesmo na perspectiva dos ocupantes da universidade, as fábricas não deveriam ser socializadas. Desse modo, as “assembleias Gerais” dentro das fábricas não possuíam o mesmo significado que nas universidades. As fábricas deveriam se tornar uma propriedade de grupo, como as empresas iugoslavas. Tais empresas não são socialmente controladas; elas são geridas por burocracias dentro de cada empresa.
[...]
A ideia de que “os meios de produção pertencem aos trabalhadores” foi traduzida como significando que os trabalhadores são donos da fábrica em particular na qual eles trabalham. Essa é uma vulgarização extrema. Tal interpretação implicaria que a atividade particular à qual a luta pelo salário condenou alguém na sociedade capitalista é a atividade a que esse alguém estaria condenado quando a sociedade é transformada. E se alguém que trabalha nas fábricas de automóveis quisesse pintar, plantar, voar ou fazer pesquisa no lugar de produzir numa linha de montagem de carros? Uma revolução deveria significar que os trabalhadores, a partir desse momento, poderiam ir a toda a sociedade, e é duvidoso que muitos deles retornassem para a fábrica de carro particular que o capitalismo os tinha condenado a trabalhar."(Parte 2. Avaliação e Crítica. Limites da escalada)
O texto do livro completo está neste link: Comitês de ação dos trabalhadores e estudantes. França, maio de 68
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