terça-feira, 29 de julho de 2014

Propriedade privada, escassez e democracia

(English version)

"Ninguém vota; nunca a maioria e nem a minoria fazem a lei. Se esta ou aquela proposta reúne um número suficiente para executá-la, quer seja a maioria ou a minoria, então a proposta será executada, se for esta a vontade daqueles que aderem a ela." Descrição de uma livre associação no comunismo futuro por Joseph Déjacque (em Le Humanisphère, 1857).

Apenas uma condição fundamenta a exigência de democracia (inclusive direta): a escassez. A exigência democrática só faz sentido no próprio terreno em que viceja a propriedade privada - a inacessibilidade, a privação, a tirania. A votação e o lucro são dois polos da mesma privação de acesso da população às suas condições de existência. Ambos supõem o Estado, isto é, a violência - num polo, policiamento para garantir pela força a monopolização que cria o escasso (propriedade privada e preço, isto é, o "livre mercado"), no outro polo, policiamento para compensar a monopolização (repartição igualitária, votação, chatíssimas assembléias, distribuição de rações e esmolas de "bem estar social"). São os dois polos da legitimação de um mesmo status quo. 

O que subjaz aos dois polos é o modo de produção privado, capitalista. Só o que é monopolizado tem um preço - a escassez é a própria condição de existência do mercado, a própria definição de propriedade privada. O valor das mercadorias é proporcional à dificuldade ("trabalho") de acesso à sua produção. Logo, seu modo de produzir nunca passa de mero trabalho, isto é, uma atividade que, desprovida de todo valor intrínseco, só vale por outra coisa (recompensa, retribuição, mérito, salário, dinheiro, lucro), portanto, sempre abstrata e servil. As máquinas substituem o trabalho, mas, no modo de produção privado, sua função é apenas açoitar com desemprego os proletários para que “se ofereçam” para trabalhar ainda mais por ainda menos. Para ultrapassar a base material de tudo isso, é preciso arrancar essa camisa-de-força, a propriedade privada, e liberar as forças produtivas mundiais para que se tornem condições práticas livremente acessíveis a qualquer um que queira satisfazer suas inclinações, necessidades, desejos e desenvolver suas faculdades, capacidades e paixões - como atividades que valem por si mesmas. 

Nessa perspectiva, mesmo a reivindicação democrática mais radical de autogestão ("fábrica aos operários!", "terra aos camponeses!") se revela intrinsecamente refém da propriedade privada e, portanto, do Estado (isto é, da violência), inclusive da mitologia nacionalista ("a nação aos nacionais!"). A autogestão das empresas é hoje claramente indefensável, porque, se há empresas (sejam autogeridas ou não), as condições de existência da população continuam privadas para ela, isto é, os proletários continuam coagidos a vender a si mesmos no mercado de trabalho em troca da sobrevivência (salário). Só é possível abolir essa privação (a propriedade privada) mediante a abolição da empresa (não importa se particulares, cooperativas, estatais...), como também o fim das próprias fronteiras nacionais, liberando as forças produtivas em escala mundial ao interconectá-las numa rede de fluxos imanentes que suplanta a troca de equivalentes (não mais a redução da produção a uma régua extrínseca, por exemplo, o mercado, o lucro e a hierarquia). Daí em diante, os meios de produção não poderão mais ser propriedade de ninguém porque se tornaram, em si mesmos, a própria comunidade mundial material dos indivíduos em livre associação. 

Abolida a empresa, não fará mais sentido falar em empregados e nem desempregados *, mas apenas de indivíduos, que se associam livremente através de suas inúmeras paixões, necessidades, projetos, desejos, inclinações... cujas livres expressões serão a própria produção, a própria atividade (não mais sujeita a nenhum equivalente, visto que assim será desmantelada a base da dominação que é o sistema de recompensas e punições) . Isso terá por consequência que, sem haver mais nada que constranja ninguém a vender (a si mesmo no mercado de trabalho) para sobreviver, ninguém mais será constrangido a comprar, o que torna o mercado completamente obsoleto (provavelmente, como hobby à toa, o mercado ainda existirá, mas nunca mais como elo social obrigatório). A base material para o florescimento da individualidade livre é o comunismo, porque ele é a ultrapassagem do terreno da massificação comparadora, da coerção chamada competição (mercado, nações, hierarquia...). 

É verdade que, por razões naturais ou de insuficiência técnica, algumas (ou muitas, provavelmente) produções inevitavelmente continuarão raras, escassas e pouco acessíveis e serão portanto ainda sujeitas ou à democracia (votação para decidir um critério: sorteio, repartição igualitária, redistribuição conforme o "trabalho", ou conforme os mais urgentemente necessitados...) ou à apropriação privada direta. Porém a capacidade de superação do capitalismo pelo comunismo será tanto maior quanto mais seu fundamento material, que é a produção livre, predominar sobre a democrática, isto é, quanto mais a riqueza for desfrutada enquanto criatividade livre na comunidade humana mundial. Em contraste, se o aspecto democrático predominar, isso significa que o terreno em que brota o capital e o Estado (democracia ou ditadura) não foi superado e provavelmente eles retornarão de uma maneira ou de outra (a começar pelo "mercado negro", a sobrevivência do Estado e o mito da nação), por serem a forma social mais adequada ("legítima", dirão) à escassez, ao monopólio, à propriedade privada, à tirania.

Um esclarecimento final: todas as idéias aqui apresentadas se resumem a posições clássicas do proletariado desde pelo menos o século XVIII (Ver a bibliografia logo abaixo). E como nenhuma dessas necessidades mínimas foi ainda satisfeita - sendo, ao contrário, reprimidas quase ao ponto de se tornarem inconscientes - e como a extensão e intensidade da proletarização hoje são a maior da história, o comunismo continua mais urgente do que nunca. 

Humanaesfera, julho de 2014

Notas:
* Justamente porque não haverá mais emprego nem desemprego, a divisão do trabalho será suplantada por uma divisão de tarefas decorrente de uma coordenação explícita e consciente de ações heterogêneas com vistas a fins específicos que uma livre associação dos participantes decidir executar (eles mesmos, já que a sociedade de classes foi abolida) através da rede mundial de meios de produção gratuitamente acessível à qualquer um. É precisamente esse fluxo imanente das forças produtivas mundiais e das capacidades humanas, ao abolir a divisão do trabalho, que torna obsoleta a troca de equivalentes, o mercado... e o próprio trabalho.

[Resposta à uma objeção a este texto: Contra a metafísica da escassez, copiosidade prática]

Bibliografia (com links):

-A reprodução da vida quotidiana, por Fredy Perlman
-Eclipse e Reemergência do Movimento Comunista (1972), por Jean Barrot e François Martin
-Contra o trabalho - Teses (1979), por GCI
-Atividade Humana contra o Trabalho (1982), por GCI
-Agora e Depois: O ABC do comunismo libertário (1929), por Alexander Berkman
-Le Humanisphère (1857), por Joseph Déjacque
-Nova Babilônia (1959-74), por Constant Nieuwenhuys (publicado no Dossiê "Constant", revista Sinal de Menos nº 5)
-Um Mundo sem Dinheiro: o Comunismo (1975-76), por Os Amigos dos 4 Milhões de Jovens Trabalhadores
-Questionário (1964), por Internacional Situacionista (dossiê Internacional Situacionista)
-Crise e Autogestão (1973), por Négation
-A rede de lutas na Itália ( anos 1970), por Romano Alquati
-Kropotkin: Textos Escolhidos - org.: Mauricio Tragtenberg
-Grundrisse, A Ideologia Alemã (capítulo: Feuerbach) e Comentários sobre James Mill, por Karl Marx
-Marx comunista individualista! (trechos sobre o indivíduo em Marx)
-O Anti-Édipo, por Deleuze e Guattari




Continuação das reflexões deste texto: 


 Perspectiva prática: