(tradução por Humanaesfera de “Have You Checked Your Labels Lately?”, publicado no zine Commie Rag, 1983)
Socialismo, comunismo e capitalismo estão
entre as palavras mais usurpadas do mundo. Todas elas se referem a sistemas sociais que,
ao menos em teoria, se desdobrariam historicamente um do outro. Neste período
de crise, com potencial para uma transformação social imensa, é necessário
esclarecer esses termos se quisermos obter uma visão mais clara do futuro.
Socialismo é uma palavra cujo radical significa sociedade.
Originalmente, se referia a um modo de vida no qual todos os meios de produzir
nossas necessidades seriam controlados pela sociedade como um todo. Isso
acarretaria a livre associação mundial dos seres humanos, cada associado sendo
um co-proprietário do vasto leque de recursos do mundo, sejam eles naturais ou
fabricados. A comunidade global iria coletivamente decidir como satisfazer suas
necessidades com os recursos disponíveis. Isso acarretaria o desaparecimento do
trabalho assalariado - isto é, a venda da capacidade de trabalhar em troca de
um ganho de acesso à riqueza social -, o desaparecimento da separação em nações
e empresas, o desaparecimento do dinheiro e de todas as formas de troca. Uma vez
que as novas relações sociais amadurecessem, elas se tornariam um elemento
inconsciente da atividade cotidiana, e este modo de vida seria conhecido como
comunismo.
O capital é uma relação social, uma relação entre pessoas
expressa através de coisas. Produtos eram trocados nos sistemas sociais
anteriores, embora o campo da troca era muito mais limitado e sua ocorrência
era muito menos frequente. Mas no capitalismo, a força de trabalho se torna uma
mercadoria, algo que é comprado e vendido. Os trabalhadores vendem seu tempo
disponível em troca do dinheiro necessário para reproduzir eles próprios como
trabalhadores. Por outro lado, aqueles poucos que são donos ou controlam os
meios de produção e/ou fundos de investimento, sejam eles proprietários
corporativos ou burocratas estatais, obtém controle sobre o tempo e a energia
dos trabalhadores, e assim podem forçá-los a produzir além de suas
necessidades. O controle dos capitalistas sobre os produtos significa que, ao
vendê-los, eles são capazes de extrair um lucro do excedente (além das
despesas) que é produzido desse modo. Uma parte desse lucro é usado para seu
próprio consumo e despesas improdutivas, tal como sustentar o governo e controlar
o dinheiro. Mas os lucros servem primariamente para o reinvestimento na
atividade fazedora de lucros. É assim que os investimentos crescem. E o
crescimento é a razão do capital existir, sua prioridade suprema, mesmo se o crescimento
requerir guerras.
A sobrevivência do capital, bem como sua potencial
derrubada, depende da classe trabalhadora. Esta classe social inclui todos
aqueles que tem pouco mais do que sua força de trabalho, sua capacidade de
executar trabalho. Muitos deles são escravos assalariados. Outros, como as
donas de casa, realizam tarefas necessárias para manter a força de trabalho sem
serem pagos. Outros estão sendo treinados para se venderem - por exemplo, os
estudantes. E outros, definhando nas margens da sociedade, não podem nem sequer
ser usados.
A classe trabalhadora não apenas produz toda a riqueza que
existe na forma útil, mas também enriquece e dá poder aos proprietários/controladores
de capital. A atividade dos trabalhadores os esgota, enquanto fortalece as
forças impessoais que dominam suas vidas. Suas próprias energias criativas são
transformadas numa entidade aparentemente independente, o capital, que se torna
cada vez mais forte e imponente, e confronta-o como uma fato “dado” da vida,
semelhante às condições meteorológicas. Fora do trabalho, atividades tais como
deslocamento e entretenimento passivo reforçam nosso papel como trabalhadores
para o capital. Mesmo quando a sobrevivência não está em questão, a vida de um
escravo assalariado é tão tediosa quanto uma esteira ergométrica em
comparação com as vidas criativas apaixonadas que poderíamos viver dentro de
uma estrutura social diferente. (...)
Esforçando-se para assegurar o crescimento contínuo de seu
capital, a elite dominante em todo o mundo é dirigida pela dinâmica da
competição global (e também pela cobiça) para extrair o máximo das forças de
trabalho, substituí-las por máquinas onde for possível, e, onde isso não for
viável, tentar fazer as pessoas agirem como máquinas. Isso levou a conflitos
sociais desde o início sangrento do capital, já que os trabalhadores são
forçados a tomar ações drásticas para proteger seus padrões de vida.
O socialismo e o comunismo foram de início propostos como
objetivos por ativistas no movimento da classe trabalhadora do início do século
XIX. Eles acreditavam que os conflitos de classe iriam escalar, e apresentariam
à classe trabalhadora tanto uma oportunidade quanto uma necessidade de destruir
a estrutura social e viver de modo diferente. Marx e a maioria de seus
contemporâneos viam o socialismo e o comunismo como surgindo da continuidade do
conflito social. Junto com outros, Marx insistia que a revolução deve ser obra
dos próprios trabalhadores. Ele via sua obra teórica como suprindo o movimento
com ferramentas analíticas para ajudar a alcançar o objetivo de “ abolição do
sistema salarial”.
No fim do século XIX, o movimento degenerou, em parte devido
ao aparente sucesso do capitalismo em resolver suas crises periódicas de
superprodução (depressão). Os socialistas mais proeminentes vieram a redefinir
socialismo como um processo evolucionário cujo objetivo seria a redistribuição
do dinheiro. Na visão deles, um partido, composto de intelectuais e
especialistas, ou seja, eles mesmos, conquistaria o governo, e gradualmente o
Estado iria adquirir controle dos meios de produção em nome da sociedade.
Essa identificação da sociedade com o Estado, uma
instituição cujo propósito é justamente a opressão de classe, foi e é uma
posição que serve aos interesses de burocratas ávidos por poder, hoje
conhecidos como social democratas. Eles ainda recrutam em partidos pelo mundo
que são auto-intitulados socialistas (e até comunistas). Tal como os partidos abertamente
pró-capitalistas, esses partidos no poder do Estado sempre significaram
austeridade para a classe trabalhadora, centralização do poder, e salvaguarda
do “interesse nacional” no combate militar e comercial com outros Estados. Afinal,
a chegada deles ao poder simplesmente significa que eles se tornaram
controladores do capital nacional. Um exemplo perfeito disso é o governo
Mitterand na França.
Na década de 1910, a crise capitalista voltou pior do que
nunca. Foi a primeira depressão global e fonte da subsequente guerra mundial. Muitos
romperam com os social democratas, que geralmente apoiavam os vários esforços
nacionais de guerra. Entre estes, estavam gente como Lenin e Trotsky, que
concordavam com o conceito de socialismo como controle estatal, mas rejeitavam
a idéia de evolução pacífica. Desse modo, eles favoreciam um partido de elite e
relativamente secreto cujo objetivo seria dirigir os trabalhadores para o
socialismo pela conquista do poder do Estado. Eles admiravam a produção em
massa, a administração científica e a disciplina fabril, e consequentemente
modelaram seu partido como uma hierarquia industrial.
Onde essas vanguardas conquistaram o poder, como na União
Soviética, Cuba, Angola e nos assim chamados Estados socialistas, o capitalismo
de Estado reina. A sobrevivência material da população é permitida em troca do
controle draconiano sobre cada aspecto da vida cotidiana. O Estado exige
trabalho árduo e baixos salários do mesmo modo que os patrões privados. E, dado
que as entidades do Estado capitalista são dependentes o mercado mundial (do
mesmo modo que a IBM e a Exxon), elas estão se tornando incorporadas na estrutura global
de dívida e fazendo negócios com multi-nacionais. Muitos executivos de
multinacionais são atraídos pelo prospecto de uma força de trabalho controlada
(livre de greves) e por contratos de investimento favoráveis em lugares como o
Zimbabwe (Citicorp Bank), Bulgária (Pizza Hut – Pepsi) e China (Volkswagen).
Nos EUA, essas vanguardas são divididas em pequenas seitas
em conflito. Elas organizam campanhas de apoio a todos os tipos de lutas exceto
ao combate contra o trabalho assalariado. Elas usam o sentimento de culpa das
pessoas e seu desejo por ação imediata para recrutar tropas para suas máquinas.
É improvável que consigam influência substancial – e muito menos sobre o poder
do Estado -, mas elas conseguem desviar a atenção e confundir (isso sem
mencionar a péssima imagem que passam da palavra revolução).
Uma distorção atualizada do socialismo é a visão
predominante dentro da esquerda americana, tal como a exemplicada pelo
congressista de Berkeley Ron Dellims, o escritor “socialista” Michael
Harrington, e o Citzens Party. Ele vêem o socialismo como a propriedade de cada
empresa por uma cooperativa de trabalhadores , a divisão das grandes empresas e
o apoio às pequenas, a nacionalização de alguns setores, e a coordenação de
toda essa salada pelos planejadores estatais. Em outras palavras, eles propõem
tratar tanto dos problemas do mercado “livre” (competição encarniçada) como da ineficiência
do controle estatal combinando os aspectos desejados de ambos.
Mas o controle e/ou
propriedade de uma empresa pelos trabalhadores não reduz as pressões de mercado
que todas as companhias encaram – vencer as rivais ou falir. Trabalhadores numa
cooperativa com frequência recorrem a intensificação de seu próprio trabalho,
ao corte de seus próprios salários, e até mesmo despedem a si mesmos, para que
a empresa possa sobreviver. E forçar as empresas a se tornarem e/ou serem
pequenas pouco ajuda na sua competitividade. Enquanto isso, os planejadores
estatais teriam enormes dificuldades para reconciliar sua necessidade de
centralizar a tomada de decisões com o padrão descentralizado de propriedade
cooperativa. Além disso, qualquer esforço de economia planejada rapidamente
descobriria que os EUA são uma mera parte do mecanismo do mercado mundial, e,
fora de suas fronteiras, outros planos estão em andamento. Infelizmente, esta
gororoba é o que os media apresenta como “socialismo”.
Não surpreende que o significado das palavras seja
distorcido. O verdadeiro significado de socialismo foi articulado em palavra e
prática ao longo do último século. O movimento anarquista, um elemento do
movimento socialista original, está experimentando hoje uma reemergência global.
Ele constestou de forma consistente a legitimidade do poder estatal e das
estruturas sociais autoritárias. Socialistas tais como Rosa Luxemburgo, Anton Pannekoek, Sylvia Pankhurst, Paul Mattick e Guy Debord mantiveram vivo o
conteito de socialismo como abolição da escravidão do salário e como
estabelecimento de uma comunidade mundial.
Várias vezes na história, surgiram movimentos que desafiaram a própria
essência das relações sociais existentes. Durante até um ano, trabalhadores
estabeleceram o controle social dos recursos produtivos em lugares como Espanha,
Rússia, Polônia, Itália, Alemanha, Brasil, China, Canadá e mesmo os EUA (a
greve geral de Seattle de 1919). E em muitas outras vezes, a população
contestou o controle social. E hoje, com uma nova depressão mundial, vemos uma
nova onda de rebelião.
Como Rosa Luxemburgo mostrou, o próprio capitalismo é um
“estágio transitório” entre todas as formas prévias de sociedade e o começo do
que Marx chamou “história realmente humana” – a história dos indivíduos humanos
livremente associados, infinitamente ricos em sua diversidade e suprimindo todas
as divisões em classes e nações.
A maioria das pessoas que se consideram de esquerda
desprezam a possibilidade de uma transformação anti-capitalista
anti-autoritária. Isto se deve a uma mistura de falta de compreensão do
capitalismo, cinismo sobre a natureza humana e um desejo por poder. Afinal,
muitos “ativistas” são formandos de faculdade que apenas transferiram suas
ambições de carreira para outros campos.
Uma insurreição social nunca será televisionada nem dirigida.
Muito provavelmente, os líderes vão tentar correr para alcançar as “massas
ignorantes”. Os líderes foram deixados para trás quando os trabalhadores russos
estabeleceram conselhos operários em 1905 e comitês de fábrica em 1917; foram
deixados para trás quando os estudantes franceses e os trabalhadores fizeram
uma greve geral e a ocupação de campus universitários e fábricas em maio de
1968; e quando jovens proletários negros, brancos e asiáticos expulsaram a
polícia de seus bairros e redistribuiram bens na Inglatera em 1981. Quando os
vários movimentos autônomos pelo mundo começam a cooperar, eles começam a
clarificar sua compreensão do passado e suas visões do futuro. Quando eles
afirmarem seus desejos coletivos, este será o dia em que o capitalismo acabará e o
socialismo se realizará.
Leia também: O MITO DO SOCIALISMO CUBANO
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